Recentemente fiz um post em meu facebook expondo uma situação que vivenciei em uma delegacia de polícia, a qual retrata a discriminação do ser humano inserido dentro do contexto do Inquérito policial/ Processo criminal, especialmente, nesse caso, a falta de humanidade com a família da vítima. A partir disso, o querido Paulo Silas Filho, me pediu gentilmente para aprofundar o tema em forma de artigo. Quando o “Sala de aula Criminal” pede, a gente faz, afinal é um prazer escrever para um canal tão rico que contribui para a democratização do ensino jurídico, principalmente na esfera criminal. Diante do caos atual em que o sistema carcerário e o sistema penal se encontram, minha concepção, baseada em alguns anos de estudo, está intimamente ligada à máxima proteção aos direitos humanos, afinal esse ramo da ciência jurídica é o alicerce para o bom desempenho do direito, e deve reger as ações, todas as ações, dos operadores da lei. Dentro desse contexto tem-se que a vítima e seus familiares além de enfrentarem situação de abandono, não recebendo qualquer apoio do Estadoe da sociedade, sofrem visível constrangimento ao passo que estão inseridos no contexto social do crime, principalmente quando falamos de homicídios ocorridos em locais dominados pelo tráfico de drogas e pela pobreza. Se a vítima é usuária, é tratada como traficante. Logo bandido; se a vítima era amiga de traficantes e usuários, é tratada como bandido; se a vítima foi cravejada com 9 tiros, é tratada como responsável pelo crime que a vitimou. Essa é a realidade que deve ser enfrentada e deve ser mudada, com sensibilidade e humanidade. Afinal, uma das transformações que o sistema enfrenta é a verdadeira restauração para aqueles que ficam. Condenação, por si só não faz a justiça que a família da vítima e que a vítima (quando sobrevive), esperam. Atenção, amparo, apoio, do Estado e da sociedade, é o que essas pessoas precisam para recomeçarem as suas vidas. Nessa semana comecei a atuar em um caso representando a família da vítima. Chegando à delegacia de homicídios, a mãe da vítima me recebeu com um abraço, tão forte e tão desesperador, como se toda a sua esperança de ver justiça sendo feita estivesse apenas comigo. A vítima foi assassinada brutalmente. Levou nove tiros. Muitas das testemunhas dizem que foi por engano, os tiros eram para outra pessoa, que também estava dentro do carro alvejado. Mesmo assim, os responsáveis pelo inquérito, insistem em martirizar os pais da vítima, comentando: "Mas seu filho só pode ter feito alguma coisa para levar 9 tiros; ninguém leva 9 tiros de graça". Nesse ponto, cabe esclarecer o quão no fundo do poço encontra-se o sistema penal. Ainda que o ofendido receba o estigma de “mal”, “criminoso” ou “bandido”, ainda que ocupe por algum momento o papel de réu – no sentindo axiológico do que a palavra representa – vítima é vítima, familiares da vítima são vítimas, sofrem e padecem com a perda. A perda de um filho, de um pai, uma mãe, um irmão, fato esse que transcendem quaisquer condições pessoais. De um lado temos uma família e um ser humano que irá sofrer as consequências do sistema carcerário, de outro temos a tristeza que grita pela morte ou o sofrimento de alguém. Logo, respeito torna-se primordial, não pode ser perdido. Todos já sofrem o suficiente e não precisam passar por mais qualquer tipo de aflição ou constrangimento. Dizem que quem trabalha com "isso", delegados, servidores públicos, advogados, promotores, juízes, estagiários, perdem a humanidade, pois estão acostumados com processos e situações que retratam mortes, violência e falta de amor ao próximo. Mas na verdade, nós, justamente por sermos conhecedores desse mundo tão cruel e tão injusto, é que nunca deveríamos perder a humanidade e o respeito pelo outro. Cuidado e cautela tem que andar de mãos dadas com todas as nossas ações, principalmente nas delegacias de polícia e nas salas de audiência, locais onde essas pessoas se sentem extremamente fragilizadas, e precisam de atenção. A vítima, a família da vítima, o réu e a família do réu, perdem as esperanças, sucumbem à dor, cada um com a sua. Por isso, nós operadores do direito devemos ter "tato" em nosso cotidiano profissional, para tentar minimizar essa dor, exercendo desde logo a justiça restaurativa. Quando estávamos indo embora, abracei a mãe do ofendido, mais uma vez, era só o que eu podia fazer naquele momento. Mas o que pra mim foi tão pouco, pra ela foi muito, afinal, pelo menos agora, ela se sente amparada e segura para lutar. A questão da violência moral para com a vítima e o réu deve ser enfrentada pontualmente, desde o nascimento do fato, sob pena dos familiares do ofendido, além dele próprio se encontraremabandonados em seus próprios dramas e sob pena do réu se ver sozinho, jogado no inferno que é o cárcere, fatos que deixarão cada vez mais a sociedade na escuridão e com um abismo enorme travado entre aqueles inseridos no mundo do crime, e entre aqueles que não estão, pelo menos aparentemente. Insta ressaltar, essa distância tem um preço: a incidência de mais e mais crimes. Mariana Cantú Advogada Criminalista
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