A análise da figura do pai em psicanálise e mesmo na filosofia proporcionou concepções das mais diversas, muitas delas contrastantes. Ainda assim todas elas contribuem para uma melhor compreensão de nossos anseios e dilemas.
Freud trabalha a figura do pai a partir do viés da disputa, inibição da sexualidade e projeção em diversos de seus escritos, com destaque para as obras Totem e Tabu e A novela familiar do neurótico. Lacan vai discorrer amplamente sobre este tema em Freud nos seminários que participa, abordando a questão do ponto de vista do pai real, do pai simbólico/imaginário e do Nome-do-pai. Não se pretende aqui dissertar sobre todas estas visões e suas consequências. Opta-se apenas por colher um dos aspectos em comum observados nas conclusões destes autores. Este se traduz na imagem projetada pela figura paterna de um ser quase onipresente, onipotente, eterno provedor e legislador/executor perene. Para o desenvolvimento do filho este precisará ser copiado e superado (no mito da horda primeva em Totem e Tabu isso fica bem explicitado). Freud via nesta projeção uma maneira de lidar com a impossibilidade neurótica de afirmação da paternidade.
O próprio Freud, constante analista de si mesmo, descreve sua confusão e angústia ao ouvir do pai o relato da ocasião em que uma turba arranca seu gorro e joga o mesmo na sarjeta, mandando-o sair da calçada por ser um “judeu imundo”. Freud relata como a impotência do pai diante da situação o incomodou por muito tempo, gerando nele dúvidas e insegurança. Também Lacan percebe essa admiração como relacionada com a projeção do pai simbólico ou imaginário que figura no psiquismo do filho na maior parte de seu desenvolvimento rumo à idade madura, uma vez que inacessível ao aparato intelectual deste, enquanto não constituído como sujeito pleno, a concepção do pai real (com suas deficiências e limitações).
O ponto que se quer destacar é que a imagem de uma figura paterna poderosa, virtuosa e protetora é ressaltada pela psicanálise como uma visão típica da fase imatura de vida (perdurando em alguns por longo tempo). Note-se que esta percepção convive com antinomias peculiares no aparelho psíquico do filho: admiração e inveja; aproximação e repulsa; medo e conforto. Em Kafka também encontramos uma forte figura paterna paradoxal. Por um lado, Kafka, em sua Carta ao Pai, diz:
De outro modo, o autor também admite com claro ar de veneração na mesma obra:
Essa ambivalência paterna produz angústias e incertezas que, a depender de como se desenrola o relacionamento, desembocam na formação de personalidades neuróticas, amedrontadas, inseguras e, por vezes, incapazes de assumir o próprio rumo de vida. Obviamente isso não é automático ou obrigatório, dependendo inclusive de uma série de outros fatores. Mais uma vez se ressalte que aqui objetiva-se simplesmente demonstrar que a figura paterna ocupa um lugar fundamental no desenvolvimento da autoimagem, da segurança pessoal e da capacidade de assumir responsabilidade por atos e decisões. Feita esta breve incursão psicanalítica, surge a questão: pode haver uma ligação destas conclusões com a constante ânsia percebida na sociedade por “heróis”, ou seja, por pessoas externas à trama principal dos problemas que emerge, quase de modo repentino, para “salvar” e “proteger”? É interessante notar a renovação do interesse da indústria cinematográfica por filmes protagonizados por super-heróis nas últimas décadas. O herói é, por definição, alguém com capacidade que supera de alguma forma a dos mortais. Muitas vezes a explicação por trás de suas habilidades está contida no fato de que sua origem não é a “natural”; ou está ligada a um acidente que lhe proporcionou alterações qualitativas em sua constituição física ou mental. Fato é que a partir daí ele é chamado a ocupar uma posição paterna (ainda que em sua vertente mitológica ou metafísica), provendo segurança e a solução dos conflitos. Na “vida real” não se espera, pela maioria, o aparecimento de um ser com capacidades sobrenaturais. Porém, cada vez mais se observa a reinauguração do desejo de que determinados atores da cena estrutural tomem as rédeas e solucionem os problemas graves em que nos vemos inseridos. Recentemente Lênio Streck escreveu um artigo onde criticava as manifestações em que muitos diziam que a operação “Lava Jato” sofreria inevitável decadência com a morte do Ministro Teori Zavascki, justamente chamando atenção para o ponto aqui aventado. Lá Streck apontava uma possível causa desta problemática visão na herança de nosso patrimonialismo[5]. Mas seria possível enxergar algo ainda mais visceral nessa busca por personagens salvadores da pátria? Não estaríamos diante de um cenário parecido quando analisamos a vitória de Trump nos EUA? Não se apresenta ele como a personificação do ideal neoliberal capaz de salvar os norte americanos da escória estrangeira e dos males econômicos? Uma última questão “paralela”: não seria possível vislumbrar a massiva presença de “líderes” (heróis) do sexo masculino nos altos escalões de poder ao redor do mundo como amostra desta incapacidade de amadurecimento da visão que se tem da mulher? Voltando ao Brasil para exemplificar a tendência comentada. Ao menos do julgamento da AP 470 (“mensalão”) para cá temos vivenciado esta experiência de deificação de protagonistas políticos (ainda que oriundos do judiciário ou da força policial). Assim, não espanta que tenhamos chegado ao ponto de vermos nomeado para ocupar um cargo na Corte Constitucional um cidadão que se vestiu de seu “super-uniforme” preto para ser filmado lutando bravamente contra o “inimigo público número um”[6]. Uma sociedade que precisa de heróis para resolver os seus problemas estruturais é uma sociedade imatura. Uma democracia que precisa de heróis é uma democracia imatura. Uma sociedade que acredita e confia em heróis pode acabar se vendo rapidamente dominada por estes. A história está repleta de “pais terríveis”, na plena acepção da expressão. Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Referências: BETTS, Mariana Kraemer; WEINMANN, Amadeu de Oliveira; ANALICE, de Lima Palombini. O pai em psicanálise: interrogações acerca das instâncias real, simbólica e imaginária da função paterna. Revista Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 26, n.1 FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 11 – totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). 1ª ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2012. KAFKA, Franz. A Metamorfose; Um Artista da Fome; Carta ao Pai. São Paulo: Martin Claret, 2009 LACAN, Jacques. Escritos; trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1998. [1] BETTS, Mariana Kraemer; WEINMANN, Amadeu de Oliveira; ANALICE, de Lima Palombini. O pai em psicanálise: interrogações acerca das instâncias real, simbólica e imaginária da função paterna. Revista Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol. 26, n.1, pág. 217. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pc/v26n1/14.pdf. Acesso em 07/02/2017, [2] Idem, p. 219 [3] KAFKA, Franz. A Metamorfose; Um Artista da Fome; Carta ao Pai. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 79 [4] Idem, p. 81 [5] STRECK, Lênio. STF: ainda há espaço para ações institucionais ou vivemos de heróis? Diposnível em: http://www.conjur.com.br/2017-jan-26/senso-incomum-stf-ainda-espaco-acoes-institucionais-ou-vivemos-herois. Acesso em 07/02/2017. [6] Palavras do Presidente Nixon ao se referir a sua campanha de guerra às drogas; que além de não ter reduzido o problema de saúde pública, contribuiu de forma marcante para o hiperencarceramento de negros e pobres nos EUA Comments are closed.
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