Tomo como impulso para o presente escrito o romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, mais precisamente uma questão presente na obra que reiteradamente é lembrada por Lenio Streck, a saber, o fato de que as coisas em Macondo, uma aldeia fictícia onde se passa a história, eram tão novas, mas tão novas, que elas ainda não tinham nome, de modo que as pessoas tinham de apontar para essas coisas quando se referiam a elas. E em que sentido isso pode ser comparado ao Direito? Cito aqui Lenio Streck que pontua com maestria tal questão:
Eis a questão devidamente exposta. No Direito há muita coisa que se aponta como fosse nova. O desconhecimento, a ingenuidade ou até mesmo a má-fé muitas vezes são os fatores responsáveis por esse fenômeno que precisa ser superado. Os juristas, os atores jurídicos, de fato desconhecem para as coisas que apontam? Não estamos em Macondo onde as coisas eram novas. Nossa Constituição Federal é de 1988, mas a presunção de inocência, que sempre esteve presente de igual forma no inciso LVII do artigo 5º (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), foi apontada no ano que passou como se fosse algo novo. Entendeu-se que ainda não tinha um nome, de modo que nova nomenclatura foi dada. E muitos foram juntos nessa entoada. Tribunais passaram a seguir o “novo entendimento adotado”, antecipando a execução da pena após a confirmação de condenação em segundo grau. Juristas acataram de bom grado aquilo que se decidiu, como se nada de errado houvesse. Mas esperem. Não se tratava de coisa nova. Acordem. Sei que o vagão do trem já descarrilhou e está causando vários acidentes por onde passa. Mas nunca é tarde lembrar dos erros que tivemos, que praticamos e que sofremos. Olhando para trás é possível nos atentarmos mais para aquilo que vem pela frente. Coisas desconhecidas não se tratam necessariamente de coisas novas. Não que a presunção de inocência fosse. Contra ela o dedo foi apontado mesmo ciente de que se tratava de uma velha guerreira e pouco compreendida. Daí que há mais de um fator que pode explicar o fenômeno de se olhar para as coisas dizendo que são novas. Aceitar de maneira indiferente é o que não pode acontecer. O constrangimento epistêmico, como bem explana Lenio Streck, precisa ser feito por aqueles que lançam suas vozes. As coisas no Direito possuem nomes. A partir do momento em que se ignora isso, é preciso que haja um levante, que se brade, que se insurja, que ao menos se diga: “Ei, o que é isso? Isso não é bem assim. Está errado”. Ainda com Lenio, “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”, pois as coisas possuem um chão, uma característica própria, não sendo assim possível que elas sejam ditas como fossem qualquer coisa ao bel prazer de quem diz essa coisa. Claudio Melim já disse que “não se pode olhar para uma maçã e ver um abacaxi, porque as vivências ensinam que uma maçã é uma maçã e não um abacaxi”. Assim, não se pode, por exemplo, ver a redação legal do artigo 212 do Código de Processo Penal (“As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”) e dizer que as perguntas devem ser feitas por intermédio do juiz, ou que quem iniciam perguntando é o juiz. Não pode se ignorar tais questões sob a alegação do desconhecido. Não estamos em Macondo. Por mais que tenhamos coisas novas no Direito, não se tratam de reinvenções da roda. E quando o são, ou mesmo ainda quando se diz de modo dúbio que algumas coisas são novas, o fenômeno de apontar o dedo pode estar calcado em desconhecimento, ingenuidade ou até mesmo má-fé. Atentemo-nos, portanto, quanto a isso. Deixemos de apontar para as coisas como em Macondo. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Referências: MARQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. 6ª Ed. São Paulo: Rio de Janeiro, 1970. MELIN, Claudio. A essência moral da verdade jurídica. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/a-essencia-moral-da-verdade-juridica-por-claudio-melim/ ISSN 2446-7408. Acesso em 01/01/2017. STRECK, Lenio Luiz. TRINDADE, André Karam. (Organizadores). Direito e Literatura: da Realidade da Ficção à Ficção da Realidade. São Paulo: Atlas, 2013. p. 231 Comments are closed.
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