A presença de Bauman é inconteste. Mesmo agora no limiar de sua imortalidade como filosofo/sociólogo de nossos hodiernos tempos, pode-se assertivamente dizer que há muito ainda a ser desvendado nos escritos do diligente e eterno aprendiz da vida, como ele próprio se revelou dia desses.
Seus estudos perfazem um olhar de uma pessoa que viveu, incrédulo, as maiores atrocidades que o homem, junto com toda a sua parafernália tecnológica pôde fazer com seu semelhante. As duas guerras mundiais sentidas pelo polonês aguçaram seus sentidos, o que se pode notar em suas obras desde Modernidade Liquida, onde compreende o Holocausto como uma época febril de falta e desapego, considerando o real início de toda a modernidade que se liquefaz conforme seus dias vão ruindo num imensurável egoísmo, medo e insegurança. Apesar de cada vez mais apto a adentrar o novo mundo tecnológico que se posta a frente, irrompendo as barreiras do desconhecido através de sua modernização e desenvolvimento, controlando os aparatos mais engenhosos que podem ser criados a partir das revelações do intelecto humano em forma de tecnologia, o homem moderno posta-se atrasado quando o tema são os relacionamentos e a vida em sociedade. O que antes era comunidade vivendo em conjunto hoje passa a ser uma rede de desconhecidos vagando sem perspectivas reais de interação, em redes de engenhosos aparatos de conexões que da mesma forma com a qual se conectam, também se desconectam. Isso significa que o homem não se liga mais por contatos pessoais, conhecendo outras pessoas numa interação real, mas sim, pende-se em uma rede que se agrega a outros mais, todavia, tornando tal encontro o mais extinguível possível, sem ocupações posteriores ou remediações, mas sim, um ato tão simples quanto puxar da tomada o plugue que alimenta qualquer aparelho. Para BAUMAN, a liberdade individual somente pode ser produto do trabalho coletivo, e dessa forma, garantida também coletivamente. Todavia, o rumo que se toma hodiernamente vai ao contrario dessa afirmação, quando o caminho é a certa privatização dos meios de garantir a liberdade individual. Assim, ao invés de em coletivo existir o ajuizamento dos planos em prol de uma maioria, existe a crescente individualização dos valores e dos modelos. O modelo social de uma sociedade conexa perde-se por completo por um molde individual que reitera e afirma a boa vida individual e a busca por sua experiência, excluindo o sentido de convivência em grupo. Problemas como a liberdade individual e coletiva são grandes quando se entende que liberdade já é um conceito amplamente vivido por todos, quando de fato, segundo o autor, as liberdades são colocadas à prova por legisladores que, de toda forma, ditam as leis conforme lhes aprouver. Há um consenso de que a liberdade já está garantida e não há a necessidade de lutar por mais liberdade, ou até mesmo questiona-la. Por outro lado, todavia, o que se nota é o desestímulo geral da motivação de lutar por uma mudança real naquilo que importa deveras para que a vida tome rumos mais abrangentes, sendo privilegiada pela ampla liberdade. Há um conformismo generalizado e isso faz com que a permanência do status quo seja progressiva: “Caminhamos, porém, hoje, rumo à privatização dos meios de garantir/assegurar/firmar a liberdade individual” Para o autor o conformismo generalizado e a falta de coragem são os principais fatores que impossibilitam a busca por uma real mudança e que, por sua vez, escora a situação em que se vive, sustentando-a. Ainda, menciona as ações descentralizadas, o envolvimento com tarefas que não possibilitam o exercício da reflexão e do questionamento, privatização da utopia e preocupação excessiva e fragmentada com os problemas pessoais de modo que se torna difícil agrupá-los e condensá-los numa força política. Os instrumentos de ação política que são deteriorados por problemas inerentes à vida na pós modernidade são tratados por BAUMAN que enfatiza a falta de uma argamassa social (solidariedade social) entre os indivíduos. Entre esses sentidos, o medo do estranho e do outro, a inconsistência das amizades, a fluidez entre os relacionamentos que apregoa uma falsa liberdade, mas que também destaca a superficialidade e frivolidade nos relacionamentos. A perda de autoconfiança, a ansiedade, insegurança e apatia geram o desinteresse por tudo o que enseja a política gerando a sua exclusão. A falta de relevância entre as pessoas enfatiza o individualismo crescente onde cada um defende os seus próprios ideais e interesses, destarte, havendo falta de causas comuns há o crescimento do sentimento de insegurança existencial: os medos que cada um sente só podem ser contados, mas não compartilhados ou unidos numa causa comum com a qualidade nova da ação conjunta. Não há um caminho óbvio que leve dos terrores privatizados às causas comuns que podem se beneficiar do confronto e enfrentamento conjunto, pois como dito acima, não há solidariedade. Esse resfriamento das relações humanas causa a insegurança e o medo, e também, a falta de lutar por uma causa que se defina como preponderante na vida humana, como a liberdade. Entretanto, ainda tendo esse desinteresse pelo que é público, por direitos e política, existe a afirmação comunitária, que se encontra quando a rotina da vida privada é quebrada por um acontecimento, como a fofoca. Maneiras de enxergar o coletivo em conjunto lutando por um ideal, segundo BAUMAN, são permeadas por um aforismo gerado pelo espetáculo, pela mídia, pelas inseguras certezas conhecidas como especulação e maledicência. Isso faz com que haja a solidariedade por determinado tempo que perdure enquanto o entrave se sustentar, contra aquilo ou aquele considerado errado ou criminoso, devendo ser punido severamente. O grupo estabelecido, ou seja, a comunidade que se une em prol de uma luta contra discórdia disseminada e difusa encontra um inimigo mutuo, unindo deveras essa comunidade que se esforça na liquidez dos sentidos e da convivência. Destarte, na ausência de laços, a priori, concretos na vivência, temas como a segurança pública ou até mesmo casos midiáticos como a pedofilia são o estimulo para a união das pessoas vazias no sentido de união social e política, agraciando-as com uma causa de fato. Um dos motivos que causaram a decadência de uma segurança mutua é a diminuição do poder do Estado, onde não transmite mais a soberania política de outrora. Para BAUMAN “a soberania anda de muletas – coxa e vacilante. As autoridades do Estado nem mesmo fingem que são capazes ou desejam garantir a segurança dos que estão sob sua responsabilidade”. Há aqui a falha do nacionalismo. Assim, BAUMAN identifica a morte da soberania do Estado, que tem de abrir mão do seu controle para privilegiar a nova ordem mundial. Não se espera do Estado o mesmo papel de antes, este novo Estado que surge é uma máquina dependente dos processos produtivos. Em sua obra Modernidade Liquida, Bauman confirma em seus estudos que a associação entre o Estado e a nação está há muito sendo desfeita. Entende o autor que nos séculos XIX e XX a nação e Estado situavam-se sob um mesmo entendimento e padrão. Nesse ponto, afirma que há um distanciamento entre o Estado e sua capacidade de se engajar nas exigências/demandas trazidas pela sociedade, que passa também dessa maneira a individualizar certos assuntos que antes eram prioridades do Estado, como a segurança e saúde. O sentido anterior que se vinculava ao ato de servir a nação é agora repassado ao indivíduo que precisa por si buscar sua própria segurança e a possibilidade de se tornar cada vez mais consumidor: “Se não temos o alimento pelo qual ansiamos, o alimento espiritual, então acumularemos os bens deste mundo em vasta escala”. Em outras palavras: é cada um por si. Esse enfraquecimento estatal, causado pela ampla globalização, pelo desenfreado liberalismo e pelo considerável distanciamento do cidadão ao que significa público e política, têm, por si, seus interessados, como as 'forças livres do mercado' e o livre comércio, fontes primordiais da incerteza existencial, ou, as práticas neoliberais, entendidas por Pierre Bordieu como programas uteis para a destruição das estruturas coletivas que se moldam capazes de resistir à lógica do “mercado puro”. Essa fragilização do Estado Nação passa então a ser parte de um estratagema de dominação do poder global, que se fortalece com o esvaziamento do poder coercitivo dos Estados nacionais, ampliando assim seu destaque, sempre em favor da garimpagem ao consumidor que o aguarda. Quanto mais insignificantes se apresentarem tais Estados com maior facilidade o poder arbitrário das elites globais irá imperar. Essa elite é composta por grandes empresas, empresários, instituições, em sua enorme presença, pelo mercado e seus senhores. Em outro ponto, BAUMAN demonstra que não há sentimento maior que consiga unir as pessoas do que a ameaça contra a vida, segurança e subsistência. Todavia, esse inseguro sentido atinge de forma cabal o mundo do trabalho, onde antes havia empregos duradouros nas empresas e fabricas, hoje existe a flexibilidade que exige cada vez mais uma desregulamentação dos direitos individuais do trabalhador, que se amolda às solicitações das empresas para que possa ter um contrato e seu salário ao fim do mês. A flexibilidade nas relações trabalhistas é excelente para o burguês, todavia péssima ao proletariado, destruindo os modelos tradicionais de segurança no labor. BAUMAN cita os economistas Hans Peter MARIN e Harald SHUMANN que confirmam seu prognóstico de que “em um futuro próximo vinte por cento dos trabalhadores do mundo bastarão para manter a economia mundial em pleno funcionamento”, em sua obra Em busca da Política. Um dos grandes diferenciais dessa era pós moderna é que antes estratégias heteroautônomas norteavam os enlaces da vida do homem, com a religião, à nação e à família, pois uma vez sendo o ser humano entendendo a sua mortalidade traria sentido a sua vida e aos seus iguais proporcionando a construção de algo superior que sobreviveria o passar dos tempos atingindo a eternidade, garantindo assim a vida pós morte. No entanto, nos dias atuais se vive a estratégia autônoma, criada pela efusiva falta de laços duradouros na convivência, que tende a ignorar questionamentos a respeito da existência e do porvir. Dessa forma, a tendência agora é agir de maneira a aproveitar a vida imediatamente inflando-se com as pretensas sensações e emoções das novas experiências e inauditos prazeres, trazidos pelo mercado consumista e pelas novas tecnologias. A distração com as banalidades e futilidades da vida é método para evitar questionar e refletir sobre o dilema existencial humano, evitando responsabilidades que seriam elevadas a outros setores que não o individual. A falta de questionamento e reflexão é marcante na sociedade hodierna, o que legitima de toda forma o uso das tecnologias ao prazer individual e à busca pela felicidade, não importando causas ou consequências. O endividamento com bancos e cartões de credito, o desmatamento e poluição de rios, mares e florestas, as guerras que buscam cada vez mais riqueza e lucro perfazem o sentido da falta da reflexão do momento, da angustiante carência de questionamentos, enfatizados em sua obra Vida a Credito. No entanto, a motivação comunitária que existe somente se aflora quando a fofoca ou a discórdia sobrepõe ao coletivo, uma vez que no lugar de uma coletividade social vive-se em um período de individualismos que postergam a solidariedade social e dessa forma, a promoção humana. A ideia de CASTORÍADIS é repetida em BAUMAN, de que não se deve deixar de questionar e perguntar, com intuito de criar discussões que venham a agregar ideias que possam fazer funcionar o debate. Todavia, a busca pela comodidade e pela individualidade fez com que a sociedade vivesse em prol da demanda individual por prazer e consumo, negando as lutas passadas travadas em conveniência de uma agregação de pessoas livres e que poderiam e deveriam seguir peleando para que essa liberdade pudesse atingir o maior número de pessoas o quanto fosse possível, como afirma BAUMAN: “Se a liberdade foi conquistada, como explicar que entre os louros da vitória não esteja a capacidade de imaginar um mundo melhor e de fazer algo para concretizá-lo?” A participação das pessoas na vida social, nas escolhas dos rumos da sociedade, é para BAUMAN, um espelho daquilo que ocorre com os valores que outrora eram considerados essenciais. Entretanto, se BAUMAN está correto quando afirma ser a perda do altruísmo e da sensação de coletividade a geradora também do sentido apolítico das pessoas, significa dizer que as virtudes necessárias para o retorno das discussões que prezam o coletivo não estão mais entre nós. Desse modo, a real dificuldade em encontrar figuras/lideres/pessoas que transformem e mostrem o caminho que deve ser seguido em prol do conjunto, ou seja, da real interpretação de comunidade, é missão áspera deveras, e esse é um dos fatores mais desconcertantes em BAUMAN. Enfim, esse texto é somente um esboço, um simples e pequenino escrito daquilo tanto que representa BAUMAN. Muito ainda há para ser estudado e tanto a ser desvendado, nas entrelinhas e discursos do autor que revelou ser possível envolver o maior número de pessoas, utilizando uma linguagem acessível e instigadora. Talvez, seu maior legado tenha sido discutir, instigar, questionar e revelar que devemos conversar; que devemos olhar nos olhos dos outros e buscar espaços para que todos tenham seu espaço, de volta a uma solidariedade humana há muito esquecida. Uma coisa ficou clara e certa com a passagem de Zygmunt Bauman: o mundo ficou ainda mais líquido. Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal Referencias: Bauman, Zygmunt (2000) Em Busca da Política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(2003) Comunidade: a Busca por Segurança no Mundo Atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(2006) Confiança e medo na cidade. Tradução por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, ______(1999) Globalização: as Consequências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(1998) O Mal–estar da Pós–modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(2001) Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ______(2008) Vidas para consumo. Rio da Janeiro: Jorge Zahar. Comments are closed.
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