Sabem quando um crime “cai na imprensa”? O alarde geralmente é a regra. Sim, o papel da impressa é noticiar, informar, transmitir conteúdo. Mas a forma com a qual muitos meios de comunicação procedem o “noticiar de fatos” acaba sendo de maneira exasperada. Entre a notícia meramente informativa e a pretensiosamente especulativa/indutiva/sensacionalista existe uma linha tênue. O problema é que muitas vezes essa diferenciação não é tão visível como se imagina.
Há, claro, aqueles programas de televisão notoriamente sensacionalistas, cujo conteúdo é no mínimo indigesto. Mas é um tipo de “noticiário” que convence. Vende. Estampar o rosto do dito delinquente enquanto são mostradas as imagens do crime supostamente perpetrado por este é uma estratégia que funciona. Disso a televisão está cheia. Programas que inflamam as emoções dos telespectadores. O discurso amparado em questões que causam perplexidade, ira, sensação de insegurança, é fácil de se construir. Claro, pois ninguém gosta de crimes sendo praticados - principalmente aqueles mais cruéis. Crimes geram sentimentos de insatisfação e de revolta, clamando-se que justiça seja feita, sendo tais emoções naturais do ser humano – e não se insurge contra isso. O problema reside no fato de se articular uma fala em cima dessas delicadas questões visando algo além de apenas uma exposição de fatos. E isso ocorre em diversos momentos da persecução penal, com o porém de que independente da fase em que esteja o processo de um eventual acusado, este já é condenado pela mídia. É a transformação do processo penal em processo penal do espetáculo, cujo fenômeno, que acaba afetando e gerando efeitos em todos os envolvidos, é muito bem explicado por Rubens Casara:
No entanto, se por um lado se tem a imprensa notoriamente sensacionalista, tem-se também o jornalismo ardiloso que se faz de cordeiro enquanto é lobo. As notícias de alguns meios de comunicação são passadas como fossem produzidas de maneira imparcial, sem qualquer pretensão que não a própria informação, que quando constam opiniões estas não são indutivas, mas meramente explicativas. Aí a coisa é vendida como imparcial fosse, convencendo diversas pessoas que, mesmo sem saber, acabam sendo influenciadas por opiniões veladas que pretensiosamente se fazem presentes em noticiários do tipo. Umberto Eco forneceu em seu último romance publicado algumas estratégias utilizadas pela imprensa ruim a fim de se fazer passar uma opinião indutiva como fosse uma notícia meramente expositiva. “Número Zero” conta a história de um grupo de redatores que são reunidos a fim de criarem um jornal. A proposta da nova plataforma de comunicação é inovadora e diferente no conteúdo que se busca expor. A intenção clara que se esconde por trás do anúncio de um "jornal informativo" é a de prestar serviços peculiares ao editor: chantagem, fofocas difamatórias e demais mesquinharias. E assim se dá início à estruturação do jornal: reuniões dos redatores, divisões de tarefas, conversas sobre as pautas, ideias de abordagens e afins. A trama vai se desenrolando de maneira gradual - conforme o jornal vai ganhando corpo. É um livro que merece a leitura tanto pela trama que se desenrola, como pela mensagem transmitida: como se faz um jornalismo ruim (na verdade, não explicitamente ruim, mas mal intencionado - o que o torna ruim). Em determinada parte da obra, durante uma reunião dos editores, há uma “aula” sobre como separar ‘fatos’ de ‘opiniões’ e o modo de se maquiar essa separação num artigo:
Disso se prossegue com vários exemplos. “Número Zero” é rico nesse ponto, a saber, hipóteses exemplificativas que ilustram como a coisa toda funciona. Sobre o ponto que se busca expor no presente escrito, a espetacularização do processo penal, há também um pontual exemplo dado por Umberto Eco sobre o desserviço prestado por alguns meios de comunicação. Diz-se sobre acusações ou insinuações feitas pela imprensa. No exemplo dado no livro, é dito por um jornal que o senhor Desmentido esteve presente no assassinato de Júlio Cesar. O “acusado” envia uma carta ao jornal salientando os equívocos da reportagem. Entretanto, a reação do jornal se dá no sentido de colocar em prática algumas fórmulas prontas do jornalismo ruim:
Ainda, sobre como insistir em insinuações desprovidas de concretude numa situação em que o jornal se manifesta após um “direito de resposta”:
E assim se observam noticiários cotidianamente. Rostos de acusados são estampados nos jornais como condenados já fossem. Mas dificilmente se vê notícias daqueles que acabam por serem absolvidos, e quando se dá publicidade para a absolvição, raramente é num sentido de expor o erro da acusação, da midiatização, do caso em si – antes, é como no caso do senhor Desmentido, mantendo-se as insinuações de forma ardilosa. O papel da imprensa é fundamental para toda e qualquer nação. A liberdade de expressão deve sempre vigorar como regra. Atentemo-nos, entretanto, para aqueles que fazem mau uso dessa ferramenta. Os artifícios jornalísticos, como denunciado por Umberco Eco, são fáceis de se esconder nos noticiários, transformando informações em exposições manipuladoras. Estejamos de olhos bem abertos. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Bibliografia Consultada CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 13-14 ECO, Umberto. Número Zero. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2015 Comments are closed.
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