“Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, é um romance distópico que apresenta um mundo onde a sociedade se entregou à irreflexão. Percebendo que muito da angústia atinente ao próprio viver vinha do pensar, do refletir, do buscar pela compreensão, do questionar, do irresignar, a solução adotada pela sociedade foi radical: extinguir todos os livros.
Pouparei maiores detalhes sobre o mundo retratado na mencionada obra, pois pretendo abordá-la sob determinado viés num escrito futuro. Introduzo apenas brevemente o ambiente de “Fahrenheit 451” para situar o leitor naquilo que aqui hoje abordo: os paralegais. Paralegal seria a profissão assim reconhecida e conferida aos bacharéis em Direito não aprovados na OAB. Há poucos anos a aprovação na Câmara de um texto que regulamenta a profissão causou um rebuliço no mundo jurídico. Pudera, dadas as diversas consequências que, caso aprovada definitivamente a previsão da profissão, ocorreriam no cenário forense. Os paralegais seriam estagiários mais qualificados. Não que essa qualificação necessariamente decorreria de uma maior aptidão ou destreza, mas no sentido de que enquanto o estagiário está ainda no tramitar de sua jornada acadêmica para com o bacharelado, o paralegal já teria essa formação completa. Somente quem atua na prática forense sabe que os estagiários movimentam muito daquilo que tramita no âmbito jurídico. Advogados, promotores, magistrados, delegados...: todas as profissões jurídicas necessitam e utilizam a mão de obra dos estagiários. Sobre o tema, Salah H. Khaled Jr. e Alexandre Morais da Rosa assim já discorreram:
Reconhece-se a importância dos estagiários no mundo jurídico. Mas pode se dizer de igual forma dos paralegais? A justificativa dada no PL 5.749/13 de que a inovação seria a solução para o “candidato [que] ainda não está preparado para assumir a responsabilidade perante a sociedade exigida do advogado”, consistente em “conferir status jurídico, perante a OAB, ao bacharel que ainda carece desse requisito fundamental à sua inscrição como advogado: a aprovação no Exame de Ordem”, é hábil para validar a proposta e torna-la aceitável? Ainda segundo a própria justificativa do Projeto de Lei mencionado, os “direitos, prerrogativas e deveres [seriam] semelhantes ao do estagiário de direito, exceto que tal inscrição não seria limitada no tempo”. A polêmica permanece. De um lado, vozes favoráveis à figura do paralegal, justamente para dar espaço no mercado ao diversos bacharéis que não logram êxito no Exame de Ordem. De outro, vozes contrárias à proposta, visto que o mercado já está saturado, existindo ainda o receio de que a já desrespeitada advocacia iniciante sofreria consequências com a “substituição” por “mão de obra” mais barata. Claro que várias outras justificativas podem ser apontadas como fundamentos utilizados pelos dois lados do debate, mas limito-me a expor a questão de maneira singela, dada a pretensão limitada do presente escrito. Se não ainda deixei claro, não vejo a ideia com bons olhos. Há muito mais “contras” do que “prós”. Enfim, me interessa agora retornar àquilo que foi mencionado no início do texto. Um trecho de “Fahrenheit 451” me fez lembrar da ideia dos paralegais. Creio ter percebido algo de semelhante com a visão que se tem da coisa quando feito o comparativo. Convido os leitores para analisarem e pontuarem se tiveram a mesma impressão que tive. Em certo momento do romance, Guy Montag (o protagonista da história) chega em casa e percebe sua esposa semimorta. Aparentemente, a mulher tentara suicídio. Montag liga para o hospital de emergência. Para o procedimento de um tipo peculiar de “lavagem estomacal e sanguínea”, dois operadores de máquinas foram os responsáveis pelo ato médico. Eram operadores, e não médicos. Operadores de máquinas realizando um procedimento médico. Assim segue o diálogo quando os operadores terminam o procedimento:
Não sei se há estagiários que fazem o serviço de médicos. Mas sei que há os que fazem de juízes, de promotores, de delegados e de advogados. Os paralegais seriam apenas mais uma profissão que faria aquilo que, assumidamente ou não, já vem sendo feito pelos estagiários? Independentemente da posição do leitor, digo apenas que a questão vai para além disso. A maioria das coisas que aparentam ser simples ou óbvias, muitas vezes não são, possuindo uma profundidade que se faz necessário conhecer a fim de que se possa tomar partido. É o caso dos paralegais. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Referências; BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. 2ª Ed. São Paulo: Globo, 2012. ROSA, Alexandre Morais da. KHALED JR. Salah H. Neopenalismo e Constrangimentos Democráticos. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. [1] ROSA, Alexandre Morais da. KHALED JR. Salah H. Neopenalismo e Constrangimentos Democráticos. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 81 [2] BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. 2ª Ed. São Paulo: Globo, 2012. p. 34 Comments are closed.
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