A tentativa de suicídio não é punível, pois não possui previsão legal em tal sentido no ordenamento jurídico pátrio. O suicídio frustrado, ou seja, quando tentado, só passa a ser relevante para o Direito em determinadas situações. Numa relação contratual de seguro, por exemplo, o fator “tentativa de suicídio” pode acabar sendo discutido em juízo com relação à cobertura, à indenização, à previsão. Agora, o indivíduo em toda a sua individualidade, utilizando de suas próprias razões que entenda como justificadoras do ato de tirar a própria vida, ao proceder o “autofindar” do viver, sem que isso interfira diretamente e significativamente para com outrem, caso não obtenha êxito em sua peculiar tomada de decisão, amargará em seu íntimo as sequelas da tentativa frustrada, sem que haja qualquer tipo de interferência punitiva estatal acerca do ocorrido.
De igual modo não se pode dizer daquele que exercer algum tipo ação para contribuir de algum modo para quem alguém pratique o suicídio. O Código Penal prevê como crime o ato de “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”, conforme assim consta em seu artigo 122. Se há um certo entendimento sobre até onde o Estado pode interferir gerando consequências posteriores na vida de alguém que opte por encerrá-la, esse mesmo entendimento não se aplica para qualquer pessoa que contribua para a efetivação da escolha pela morte. O debate sobre a temática, considerando todas as ramificações de abordagens possíveis (filosóficas, religiosas, psicológicas...), daria um livro. Mas a proposta da presente coluna é a de incutir reflexões com textos singelos. Não rasos, apenas reconhecidamente limitados até certo ponto. Enfim, a ideia da abordagem da vez é a de imaginar um cenário hipotético em que o Estado fosse muito além, promovendo uma campanha que incentivasse o findar da vida para aqueles que não mais tivessem interesse em continuar respirando. Talvez num cenário onde a pulsão de morte, o Tânatos freudiano, fosse interpretada num nível pretensiosamente ardil pelo Estado a fim de “reconhecer” um direcionamento interior em seus cidadãos, houvesse a possiblidade do suicídio de uma maneira bastante prática. Se um dos fins a que se objetiva o Estado[1] é a felicidade, essa felicidade, para alguns, seria alcançada somente com a morte que se busca. Desamarrados quaisquer entraves de cunho ético, moral e político, o Estado daria condições para que o pretenso suicida tivesse um amparo concreto. Presente e contribuindo significativamente até quando da morte. A ideia, um tanto quanto peculiar, veio de “O Rei de Amarelo”, de Robert W. Chambers, o qual se trata, conforme diz Carlos Orsi na introdução da obra publicada no Brasil pela Editora Intrínseca, de “um peculiar volume de contos, contendo dez histórias”. O livro é altamente conceituado na literatura de horror, sendo reconhecido como influência e inspiração no gênero por grandes autores como Stephen King, Neil Gaiman e Lovecraft. No conto “O Reparador de Reputações”, o primeiro do livro, há o noticiar da inauguração de uma Câmara Letal. A novidade é do próprio Estado, o qual passou ali a possibilitar a morte para aqueles que desejassem. O discurso político que ali ocorria é contado pelo narrador:
O gênero do livro justifica a passagem obscura. Pelo discurso do político, é possível perceber que os que perderam o gosto pela vida são vistos como um estorvo (“Acreditamos que a comunidade será beneficiada pela remoção dessas pessoas de seu convívio”). A medida adotada é de cunho utilitarista, tal quanta tantas, veladas ou explícitas, podem ser vistas por aí. Note-se ainda que a “liberação” do suicídio não acabou surtindo o efeito esperado pelo Estado (“Desde a aprovação desta lei, o número de suicídios nos Estados Unidos não aumentou”), de modo que se fez necessário ir além, contra toda e qualquer amarra ou limite (“Agora que o governo resolveu criar Câmaras Letais em todas as cidades [...] resta ver se esse tipo de criatura humana, de cujas fileiras desalentadas diariamente surgem vítimas da autodestruição, aceitará o alívio que elas fornecerão.”). A contextualização comparativa da passagem mencionada com a sociedade atual pode se dar em alguns níveis diversos. As possibilidades em tal sentido ficam em aberto para que o leitor as crie, preencha ou interprete. Encerra-se indagações para que sirvam como um pontapé: quão longe se está, ao considerar o âmago da reflexão, de uma sociedade em que o incentivo para o fim é ofertado abertamente? De que modo isso pode ser observado? A questão comporta uma dicotomia “bom e ruim”? Até onde a autonomia (ou assim dita) deve ser amplamente respeitada? Quão longe a sociedade está da Câmara Letal presente em “O Rei de Amarelo”? Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura [1] Particularmente, discordo que a felicidade seja um fim a ser alcançado e proporcionado pelo Estado. Mas como se está trabalhando num campo hipotético, para fins de sustentar o próprio argumento da construção reflexiva aqui feita, tomo emprestada para tal fim essa finalidade que é defendida por alguns. [2] CHAMBERS, Robert W. O Rei de Amarelo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 24 Comments are closed.
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