A eleição de Donald Trump, um polêmico magnata, como presidente dos Estados Unidos, trouxe mais que perplexidade aos norte-americanos: depois de uma campanha recheada de fake news e ataques entre o candidato vencedor e a candidata derrotada Hillary Clinton, a obra imortal de George Orwell, 1984, foi parar na lista de livros mais vendidos nos EUA, segundo reportagem do respeitável New York Times. Publicado pelo escritor George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, em 1949, pouco antes da morte do autor, 1984 conquistou rapidamente o status de clássico. Uma obra complexa, que permite múltiplas interpretações, na época foi uma crítica contundente de Orwell à realidade histórica de sua época, de governos totalitários. Socialista convicto, Orwell se decepcionou com os rumos da então URSS; sua obra “A revolução dos bichos”, publicada em 1945, também é encarada como uma crítica aberta aos rumos da Revolução Russa. Em 1984, Orwell vai muito além do que em sua obra anterior. Seu livro derradeiro cria um mundo angustiante, recheado de guerras sem motivo, jornais e revistas que só dizem o que o onipresente Partido determina, um mundo em que ninguém está seguro ou a salvo de nada. O Grande Irmão tudo vê, tudo observa, até os pensamentos são crimes. A realidade observada no período histórico vivido pelo autor, o nazismo, o fascismo, o comunismo, a constante sofisticação das armas militares, nada escapa de sua crítica contundente. O presente resumo pretende analisar a atemporalidade dessa obra prima do século XX, um livro que ajuda na compreensão da política do mundo moderno. A obra começa apresentando Winston Smith, um homem comum de 39 anos, numa confusa Londres, no ano de 1984. No diário que Winston inicia, a data é 04/04/1984, mas nem ele nem ninguém tem certeza de que estão realmente em 1984. No cenário criado pelo autor, o mundo se divide em três continentes: Oceânia, onde está localizada Londres, Eurásia e Lestásia, três superpotências que vivem numa guerra sem fim. Winston trabalhava no Ministério da Verdade, no Departamento de Documentação. Na fictícia Oceânia, o Partido governava absoluto. O Grande Irmão, figura onipresente em fotos e estátuas por toda parte, seria um dos revolucionários que, muitos anos antes, ajudou o Partido a chegar ao Poder através da luta armada. Sua imagem estava por toda parte, num culto à personalidade semelhante ao que ocorreu com Mao Tse Tung, Stálin e, obviamente, Hitler. O Partido sequer tem nome. É, simplesmente, o Partido, onipresente e absoluto. Os slogans do Partido eram:
Nesse mundo de contradições, o Ministério da Verdade controlava toda a produção intelectual, de notícias a livros, de músicas a jornais. O Ministério da Paz era responsável pelas guerras. O Ministério do Amor controlava a Polícia, a Lei e a Ordem. O Ministério da Pujança cuidava da economia. A língua inglesa estava aos poucos sendo substituída pela Novafala, um idioma em que as palavras tinham significados contraditórios e as abreviaturas dominavam. Winston não tinha amigos. Aliás, ninguém tinha amigos; o termo usado era “camaradas”. Sua esposa sumiu, mas ele não a amava; o amor não existia nem deveria existir; o que deveria existir era o culto absoluto ao Partido e ao Grande Irmão. Seu pai, sua mãe, uma irmã da qual ele mal se lembrava, todos sumiram inexplicavelmente. As classes sociais eram bem definidas: os proletários, ou proletas; os membros do Partido Externo, ao qual Winston pertencia e o Núcleo do Partido, a elite, à qual tudo era permitido, luxo, riqueza, poder, os cargos mais altos dentro da política. Todos usavam uniformes e eram tratados como soldados de um exército; só os proletas não seguiam regras, tamanha era sua insignificância dentro daquela sociedade:
Ninguém estava a salvo de nada; volta e meia, bombas explodiam, geralmente nos bairros proletários. Instrumentos tecnológicos chamados de “teletelas” (semelhantes aos atuais televisores) eram usados para espionar a população e estavam em toda parte, ruas, residências, bares; todos eram vigiados constantemente; mesmo os pensamentos eram crimes. Ora a Oceânia estava em guerra com a Eurásia, ora com a Lestásia, ninguém sabia ao certo. As leis não existiam, mas tudo era proibido:
Nesse cenário de opressão e caos, Winston começa a se questionar. Afinal, é seu trabalho no Departamento de Documentação escrever e reescrever artigos a mando do Partido. Seu trabalho é falsificar a história, o Ministério da Verdade produz e reproduz mentiras:
Quando começa a escrever o diário, Winston sabia dos riscos que corria: risco de ser pego pela Polícia das Ideias, torturado e morto, como tantos outros. Mesmo assim, num impulso quase suicida, vai em frente, de risco em risco, até o fim inevitável e trágico. É no trabalho que o solitário Winston conhece as duas personagens fundamentais para sua vida, tanto para o bem como para o mal: Julia e O’Brien. Os dois procuram disfarçadamente se aproximar de Winston, mas o medo em que este vivia de ser pego pela Policia das Ideias o mantém sempre desconfiado de todos que o cercam. Mesmo assim, Julia, jovem de 26 anos que trabalhava no Departamento de Ficção, consegue se declarar para Winston através de um bilhete; mesmo correndo todos os riscos, os dois começam a se encontrar; o que era um envolvimento banal se transforma na maior felicidade para ambos; no mundo em que viviam, os casamentos eram somente com autorização do Partido e o afeto entre o casal não importava. Na medida em que se envolvem cada vez mais, deixam de tomar cuidado com a extrema vigilância do Partido, o que será fatal para ambos. Com Julia, Winston percebe a falsidade do mundo em que vivia; assim como ele, Julia tinha consciência das mentiras do Partido, mas achava loucura lutar contra este. Para ela, o importante era burlar as regras e sobreviver. Romances casuais, produtos conseguidos no mercado negro (os produtos a que os membros do Partido tinham acesso eram rações controladas e fornecidas pelo Governo), Julia era jovem e inconsequente, sem preocupações políticas. Antes de conhecer Julia, Winston vivia obcecado com a ideia de encontrar a Confraria, mais um mito que corria entre os mitos em que viviam. A Confraria seria uma resistência armada com o objetivo de derrubar o Partido, mas ninguém sabia ao certo se era real ou lenda. Na opinião da pragmática Julia, tanto a Confraria quanto Goldstein, seu suposto líder, eram mentiras inventadas pelo próprio Partido, para que este prendesse e executasse quem bem entendesse com falsas acusações de traições. Em muitos aspectos, Julia era mais inteligente que Winston quanto à realidade que os cercava. Goldstein era mais uma das lendas que circulavam entre as pessoas. Numa releitura de Trotski e Stálin, também abordada por Orwell em “A Revolução dos Bichos” (através de Napoleão e Bola-de-Neve), Goldstein era um revolucionário que lutou pelo Partido ao lado do Grande Irmão. Assim que o Partido chegou ao Poder, Goldstein teria percebido o projeto de poder despótico que iniciava. Então, teria se afastado do Partido e se tornado um fugitivo. Numa reescrita da história, o Grande Irmão declarou Goldstein inimigo absoluto do Partido. A foto de Goldstein era mostrada diariamente nos Dois Minutos de Ódio, para ser linchado pelas pessoas, facilmente manipuláveis. A busca de Winston pela Confraria leva este e Julia a se encontrar com O’Brien, membro do Núcleo do Partido, em tese a última pessoa em que eles deveriam confiar. Com a desculpa de emprestar um dicionário da Novafala, O’Brien convida Winston a comparecer ao seu apartamento. É através de O’Brien que todas as verdades sobre o Partido são reveladas. Enquanto os proletas viviam na miséria absoluta e os membros comum do Partido tinham direito a rações controladas, os membros do Núcleo viviam no luxo, com tudo que era negado aos demais; inclusive, tinham o poder de desligar suas teletelas, como O’Brien faz questão de demonstrar a Winston e Julia em seu apartamento. Nesse único encontro com O’Brien, Winston revela o lugar que ele e Julia utilizam para se encontrar; é lá que ambos serão finalmente presos e levados aos porões do Ministério do Amor. O’Brien leva Winston a crer que existe uma Confraria, que ele próprio é membro dessa luta armada contra o Partido. Nessa armadilha preparada unicamente com o propósito de prender Julia e Winston, O’Brien entrega o Livro, supostamente escrito por Goldstein com todas as verdades sobre o Partido. O livro, ironicamente, traz todas as verdades sobre o Partido, toda a manipulação de ideias, todas as mentiras contadas a fim de perpetuar o Partido eternamente no Poder:
Winston e Julia são finalmente presos no quarto que alugavam do Sr. Charrington, na verdade um membro da Polícia das Ideias. O quarto estava com uma teletela escondida; eles estavam sendo espionados o tempo todo. Na prisão, o próprio O’Brien se responsabiliza pela tortura e questionamento de Winston; todas as verdades são reveladas a este, justamente por não ter condição nenhuma de argumentar. No entanto, Winston permanece sem saber o principal: o Grande Irmão existe? A Confraria existe? Golsdein realmente existiu? O’Brien, cinicamente, faz questão de que essas sejam as poucas perguntas que não terão respostas. O’Brien confirma que o Livro fora escrito pelos próprios membros do Partido, que Winston era constantemente vigiado há sete anos por ele próprio. O’Brien se revela um fanático, mas ao mesmo tempo com uma inteligência e capacidade de argumentação espantosa. Mais que matar os inimigos, o objetivo da tortura e da prisão é promover uma verdadeira lavagem cerebral nos indivíduos. Aliás, tudo relacionado à doutrina do Partido era uma constante lavagem cerebral. Como argumenta O’Brien, se o Partido disser que dois e dois são cinco, assim será.
Winston não sabe quanto tempo passa na prisão; no fim, extenuado física e mentalmente, ele capitula: aceita o Partido, aceita a doutrina, promete a si mesmo esquecer Julia. É nesse momento que ele é finalmente solto. Em liberdade, Winston ganha um novo cargo no Ministério da Verdade, mas ele nunca mais será o mesmo. Praticamente, ele se torna um alcoólatra; reencontra Julia, que também sobreviveu, mas esta também não é mais a mesma, nenhum dos dois será jamais o que eram antes. O fim é melancólico. Winston sabe que, mais cedo ou mais tarde, será executado; assim lhe foi informado na prisão. Mas ele não se importa em viver ou morrer. Ele perde a própria capacidade de raciocinar, de formular pensamentos.
CONCLUSÃO Em muitos aspectos, Orwell previu com clareza assustadora o mundo das gerações futuras. Outras obras, a exemplo de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, também tratam da temática de um futuro assustador, causado pelo sucessivo número de guerras, onde os avanços científicos e tecnológicos servem a uma ideologia de governo totalitário, não para que a humanidade alcance a equidade entre os homens. As guerras sucessivas e intermitentes no Oriente Médio e em regiões da África geraram um número recorde de refugiados; não havia tantos fugitivos de guerra desde a 2ª Guerra Mundial. O mais assustador dessas guerrilhas intermitentes é justamente o fato de serem difusas, de não terem um líder claro nem um país claramente envolvido. Essas guerrilhas locais, assim como é minuciosamente explicado em 1984, não tem razão nenhuma a não ser espalhar o terror; esses guerrilheiros não tem um líder, uma ideologia clara nem um projeto de poder, a exemplo do que ocorre na Síria. Fake news circulam livremente; muitas vezes o autoproclamado Estado Islâmico assume um atentado que, depois de ser apurado pela polícia local, descobre-se ser obra de um lobo solitário, um fanático sem qualquer ligação com essa entidade. Pela internet, boatos, versões falseadas da realidade, vazamentos de documentos e de emails circulam à vontade, sem controle nenhum, para logo depois toda a notícia ser desmentida. Os jornais são controlados por milionários ligados a este ou aquele partido político, a verdade é manipulada de acordo com a ideologia, mostrando a clareza e a atualidade da obra. Conforme demonstrado no recente documentário disponível no serviço de streaming Netflix “Nobody speak: trials of the free press” (Ninguém fala: julgamentos da imprensa livre), a promiscuidade entre milionários, políticos e grandes veículos da mídia comprometem a sobrevivência da própria liberdade de expressão, e especificamente nos EUA foram responsáveis diretos pela vitória de Donald Trump. O uso da tecnologia cada vez mais avançada para espionar países e determinados cidadãos, da maneira como ocorre na obra, ficaram evidentes quando Edward Snowden, um ex agente de inteligência norte-americano, hoje asilado na Rússia, vazou informações de como os EUA espionam e controlam informações através de uma tecnologia extremamente avançada. O Brasil estava entre os países espionados. Antes desse escândalo, numa situação bastante semelhante, Julian Assange, um australiano, tornou-se inimigo público dos mesmos EUA ao criar o site Wikileaks, onde divulgava informações sigilosas de vários governos. Os fatos de maior gravidade foram crimes cometidos por militares norte-americanos no Iraque, país ainda controlado pelos EUA. Assim como na obra, poucos países atualmente vivem numa ditadura declarada, mas essa democracia e liberdade de expressão não passam de aparência, com grupos poderosos de milionários e políticos que controlam o Judiciário, a política, as eleições e, principalmente, a mídia. Numa sincronia assustadora de fatos, a sombra de novos governos autoritários volta a assombrar tanto o Ocidente como o Oriente. A obra de Orwell nunca foi tão atual. Maria Carolina de Jesus Ramos Advogada Graduada em Direito pela UFMS Pós-graduada em Ciência Penais e Direito Público E-mail: [email protected] Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |