Hang the Dj: o que Black Mirror tem a dizer sobre a sociedade e a relação com o Poder Judiciário?2/1/2018
Imagine um dispositivo que te poupasse de desilusões amorosas. Sim, um aparelho que te poupasse dos relacionamentos não exitosos, apontando direto para aquele verdadeiro. Aquele, que durará para sempre e inspirará pura poesia. O termo ´sofrência’ cairia em desuso. O ritual de, aos prantos, ouvir o agudo de Chitãozinho e Xororó entoando “Evidências”, após cada fracasso amoroso, estaria fadado ao desaparecimento. O cenário da mesa de bar com os amigos, onde a frustração é afogada em litros de álcool, estaria presente apenas na lembrança. Já imaginou?
O risco de frustrações sentimentais seria substituído pela garantia de sucesso no amor. Com a certeza de que o indivíduo apontado pelo dispositivo é pessoa certa, não seria mais necessário apostar ou decidir por conta própria. Não seria necessário assumir riscos. Não seria necessário, consequentemente, prestar tanta atenção em nós mesmos e nas pessoas com quem nos relacionamos. Quem não deseja o conforto da certeza – de preferência, trazido por outrem - em detrimento dos riscos, assumidos por contra própria? Certo é que o dispositivo anunciado no episódio Hang the DJ, com sua proposta única e inovadora, encontraria espaço fértil e irrestrito em nossa sociedade. Muitos – ou todos –adeririam, confiantes de corpo e alma, ao programa: encontre o par ideal, com 99,8% de precisão cientificamente atestada, a um clique de distância. No episódio que compõe a nova temporada de Black Mirror, somos apresentados a uma espécie de Tinder do futuro – muito mais sofisticado e voltado àqueles que buscam compromisso sério. O dispositivo promete superar o amor líquido denunciado por Bauman. Na era de liquidez, assim conceituada pelo sociólogo polonês, a fragilidade dos laços humanos é um dos fenômenos presentes na sociedade, e isso se diz das relações em seus diversos aspectos, incluindo o amor entre um casal. Bauman expõe de que modo se dão as rupturas de base - em todos os níveis - da relação para com o próximo. O autor expõe que o "apaixonar-se e desapaixonar-se" se tornou algo inconsistente, frívolo e pendente de sentido - mesmo quando esse se faz presente na aparência. A inexistência de solidez acarreta a simples e constante rendição ao desejo. Mas não (mais) se você aderir ao aplicativo que te revela seu verdadeiro amor. O dispositivo que reúne casais certeiros - e sólidos - funciona por um sistema que realiza simulações de encontros on-line. Basicamente, o usuário do aplicativo tem todas as suas informações escaneadas pelo dispositivo, a partir das quais é criado um clone virtual. Os clones dos usuários interagem entre si em um simulacro de mundo, sem que saibam se tratarem de cópias artificiais de suas versões humanas. Os clones, então, participam de um programa de relacionamento, através do qual se relacionam amorosamente por períodos pré-fixados. Passam, então, de relacionamento em relacionamento, o que vai permitindo ao programa a colheita de algoritmos sobre os usuários e suas relações. É a partir de tais informações que o aplicativo faz o cálculo do par ideal, chegando em surpreendentes 99,8% de precisão nos nomes apontados. Com esse complexo sistema de interações e relacionamentos virtuais, o sonho do relacionamento dos sonhos se torna possível. E qual relação esse episódio, que muito mais fala das nossas expectativas amorosas, guarda com o Direito? Imprevisivelmente, as relações são diversas e muitas. A ideia que o presente escrito desenvolverá, portanto, é apenas uma dentre tantas possíveis. Aqui, apostaremos na relação entre Hang the DJ, a atuação do Poder Judiciário e o aplauso social. O episódio em comento evidencia a tendência humana a se eximir das responsabilidades da vida. Os usuários do aplicativo amoroso trocam, sem pestanejar, as aventuranças inerentes ao mundo real pelo conforto de certezas virtualmente produzidas. A angústia, tal como explicada por Kierkegaard, Sarte, Camus ou Beauvoir - para mencionar apenas alguns nomes que refletiram filosoficamente sobre o conceito -, é inerente à condição humana. Isso porque cada escolha feita redunda em responsabilidade pelos efeitos causados. Pois o aplicativo mostrado em Hang The Dj possibilita justamente a isenção da escolha, uma vez que todo o processo de tomada de decisão é realizado pelo dispositivo, que considera não apenas os aspectos racionais do indivíduo, mas também as nuances de sua subjetividade. Há, em verdade, uma verdadeira terceirização de escolhas essencialmente humanas. E, consequentemente, uma terceirização de responsabilidades. Se Black Mirror explora essa tendência humana considerando um moderno aplicativo de relacionamento amoroso, as notícias cotidianas evidenciam que tal tendência vai muito além. Passa, e aqui reside nosso apontamento crítico, pela terceirização da escolha democrática de representantes, bem como da responsabilidade daí resultante. Dois princípios básicos informam a Constituição Federal: o princípio da separação dos poderes, que estabelece, através do art. 2º, que Legislativo, Executivo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si e o princípio democrático, que encabeça a Constituição e determina que todo o poder emana do povo, que o exerce essencialmente por meio de representantes eleitos. Daí que o poder está nas mãos do povo. E tal poder é exercido por meio de representantes eleitos. Leia-se: escolhidos. Todo poder traz responsabilidades. Toda escolha traz angústias. Na vida amorosa, e também na vida pública. É evidente, portanto, que cada cidadão, ao exercer o poder de eleger representantes e, assim, constituir o Poder Legislativo, concretiza também a responsabilidade de tal eleição. Deve-se estudar a fundo o histórico do representante eleito. Deve-se analisar detalhadamente a plataforma política à qual tal representante está vinculado. E a responsabilidade não se encerra com a eleição. Mas apenas se inicia. Há que se fiscalizar a diária concretização das propostas e promessas. Os acontecimentos atuais nos mostram, tristemente, que o cidadão brasileiro não assumiu o poder que lhe pertence. Não quis exercê-lo, por não querer assumir as responsabilidades que dele decorrem. O povo brasileiro está – exatamente como no episódio de Black Mirror – a terceirizar responsabilidades. Assim, se exime de escolhas e se refugia naquilo que crê ser o conforto da certeza: subestima o Poder Legislativo e vangloria o Poder Judiciário. É essa análise, e apenas essa análise, que justifica os aplausos que a sociedade destina ao Poder Judiciário, quando esse simplesmente despreza as leis formuladas pelos representantes legítimos daquela (!). No seriado Black Mirror, o indivíduo não confia no próprio poder de escolha e não assume a responsabilidade de escolher com quem dividirá a vida. Prefere que um aplicativo decida por ele. No Brasil, o indivíduo não confia no próprio poder de escolha e não assume a responsabilidade de escolher quem legislará sobre seus passos futuros. Prefere que um juiz decida por ele. Não se está aqui, obviamente, defendendo a retomada de um positivismo tacanho. Há, e não se nega, espaços legítimos de interpretação judicial, bem como há, e não se nega, necessidade de o Poder Judiciário preencher espaços que o Poder Legislativo deixou em vácuo. Não se trata disso. O ponto crítico é o constante aplauso social a situações em que o Poder Judiciário despreza o Poder Legislativo, atropelando o que está expressamente previsto – e garantido – em lei. Há que se concretizar em um atual exemplo, não obstante tantos sejam possíveis. A lei brasileira, no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, é expressa em afirmar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O Poder Judiciário, entretanto, através do Supremo Tribunal Federal – suposto guardião da Constituição – decidiu de modo diametralmente oposto, ao julgar o HC 126.292, em fevereiro de 2016. A reação do cidadão brasileiro, ao ver desprezada a legislação que seus representantes eleitos formularam? Aplaudiu. Aplaudiu aquilo que constitui, ao mesmo tempo, um desprezo ao princípio da separação dos poderes e um desprezo ao princípio democrático. Aplaudiu aquilo que, justamente por isso, representa um desprezo ao próprio povo. A depender de Hand the Dj, a “sofrência” cairá em desuso. Mas, a depender do atual cenário brasileiro e das relações que o povo vem travando com o Poder Legislativo e com o Poder Judiciário, teremos de resgatar o agudo de Chitãozinho e Xororó: o futuro nos reserva muitas lágrimas. Marion Bach Advogada Mestre em Teoria do Estado pela UFPR Doutoranda em Ciências Criminais pela PUC/RS Professora de Direito Penal da UNICURITIBA e UNIFAE Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito - UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Comments are closed.
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