Eduardo Mendoza foi muito feliz. Escreveu um livro leve, cômico e extremamente sério do ponto de vista jurídico – e nem sei se desejava isso. O processo em face de José, pai de Jesus, pelo assassinato de um “rico cidadão”, ou poderíamos dizer, de um homem de bem(ns), Epulón. Sim, o criador do filho de Deus é réu em processo penal que se desenvolve acerca da inadmissão do acusado em se dizer inocente. Em meio a essa hecatombe romanesca, Pompônio Flato – um ser peidante que desenvolveu uma doença flatocrônica na busca pela água da sabedoria – se envolve como uma espécie de investigador-particular-advogadodedefesa de José, tendo como assistente o infante Jesus. O menino é o cliente, o contratante da defesa do pai.
O escritor catalão desenvolve uma rítmica e bem arquitetada trama que com notas hilárias e dramáticas convence o leitor de que a investigação não chegará a lugar nenhum (isso não é um spoiler). O tempo-espaço é Nazaré do início da era atual e guarda algumas semelhanças com muito do que vivemos. Há um cenário de especulação imobiliária que interfere em decisões judiciais – o valor econômico de decisões –, prostituição ilegal e aceitável, falso testemunho, enfrentamento ideológico, político e religioso e muito interesse de toda parte. Pompônio é um racional que se opõe à crença num deus único como fazem os judeus. O advogado romano se insurge em face desse deus com “mania legislativa” que provê um sem número de leis que torna impraticável a legalidade das atitudes do homem. Entende que a promiscuidade do alto número de leis inviabiliza o cumprimento das mais singelas o que leva toda pessoa a incorrer em falta continuamente. O status legal do lugar e do povo nele instalado chama tanto atenção do romano, quanto as preferências sexuais judias. O estranhamento de Pompônio quanto ao desgosto por comer bunda alheia, mesmo de amigos. Reparar costumes lhe é algo natural, como quando está em meio a nabateus e narra que estes são contadores de fábulas (sempre imaginárias). No primeiro encontro e na celebração do contrato de honorários de Pompônio, Jesus estabelece a estratégia de soltura de seu pai José. Não haverá pedido de clemência, nada do tipo. Jesus mostra a Pompônio que o único caminho de dialética defensiva penal naquele estágio avançado processual é a prova de que José não matou o rico homem do lugar. E o trabalho é árduo, como é para maioria dos advogados da época e de hoje, com um grande agravante, José não quer ser defendido, não levanta sua inocência e não colabora em nada com a investigação. José é acusado por circunstâncias e convicção do acusador, sem provas contundentes, sem testemunhas confiáveis, somente como forma de se estabelecer justiça frente a um suposto assassinato e prestar contas à sociedade. O modo com que a acusação interpreta o caso – simplista e direto – impede qualquer esperança para o leitor, dando certeza de que José será crucificado em uma das cruzes que o mesmo fabricara. José era o prestador de serviços ao governo que criava e fabricava as cruzes das condenações de morte – um terceirizado, um contratante com o serviço público, um licitante (empreiteiro). A acusação e os juízes, que já tem pronto seu julgamento – sim, antes da sessão oficial – demonstram a Pompônio que não há nada que se possa fazer. O próprio réu não levanta sua inocência, o que resta evidente como uma confissão tácita, uma forma de se dizer culpado, uma assunção de culpa indiscutível que deve levá-lo à morte na cruz. A novela faz rir e refletir. Pelo menos, quem a lê buscando os fios. Tem um quê de criação com apropriação de tudo que circunda o processo. Na Catalunha, em Nazaré, no Brasil e em qualquer lugar da história. Para quem não é penalista (como eu não sou), o que mais chama atenção é que ninguém investiga o que diz a Constituição quanto ao ocorrido. Nem lá; nem cá. Luiz Fernando Cortelini Meister Advogado Mestrando em Cultura Jurídica pela Universidade de Girona – ESP Professor de Hermenêutica Jurídica, História do Direito e Processo Civil na Universidade do Contestado Referência: MENDOZA, Eduardo. A assombrosa viagem de Pompônio Flato. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010 Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |