O caminho da Psicologia, como uma profissão regulamentada no Brasil, não foi dos mais fáceis e muito trabalho precisou ser feito para que a área pudesse ser considerada e levada a sério, tanto como ciência quanto como campo de atuação. Foi através do decreto de Lei nº 4119, de 27 de agosto de 1962 que a regulamentação foi estabelecida, pautando a legitimação da formação de psicólogos em todo o país, trazendo mais confiança no trabalho que seria realizado a partir de então.
Entretanto, a entrada a Psicologia na área jurídica deu-se de maneira mais “discreta” e nada óbvia. A necessidade da parceria nem sempre foi aparente, até mesmo pelo fato de que a sociedade está em constante mudança. Com o passar do tempo, puderam ser identificadas algumas possibilidades de trabalho conjunto, como o auxílio nas questões relativas aos transtornos mentais, a consideração do desenvolvimento humano ao tratar de menores delinquentes, ações realizadas em penitenciárias, o olhar para as vítimas, e até mesmo a inserção em questões acerca dos direitos humanos e cidadania. De acordo com Novo (2018), a Psicologia Jurídica, no Brasil, abrange praticamente todos os setores, mas ainda existe uma concentração da atuação de psicólogos nos mais tradicionais, como na área penitenciária, em questões da infância e da juventude e da família; não obstante, há áreas também consideradas tradicionais que são poucos exploradas: psicologia jurídica relacionada ao direito civil, psicologia policial/militar e psicologia do testemunho. Em espaços sócio-ocupacionais, parece adentrar por um roteiro conhecido, no qual são vistos fenômenos de uma ordem que não pode ser compreendida pelo saber dominante e, então, a Psicologia se vê chamada a entregar posicionamentos (LIMA et. al., 2017). É importante ressaltar que o papel do psicólogo, nas esferas da justiça, é de contribuir para sua própria efetivação e buscar possibilidades para o bem-estar do indivíduo cuidado, atentando para o fato de ser uma questão também social, visto que reflete na sociedade que é a mesma a qual todos fazemos parte (NOVO, 2018). Assim, é imprescindível saber que o caminho ainda está sendo trilhado e que a Psicologia ainda tem muito a oferecer neste quesito. Sabendo disso, é interessante estar em constante movimento, dando espaço a atualizações de demandas já existentes, sem fechar os olhos para as novas que surgem periodicamente também. Atualmente, estamos passando por um processo em que configurações novas exigem espaços de discussão e debate visando o melhoramento da prática até então exercida. Um exemplo claro, ainda permanecendo em um setor tradicional, seria em relação às demandas familiares. É possível notar inúmeras mudanças decorrentes de novas formatações familiares, em especial no que diz respeito à filiação, formando famílias multiparentais (compostas por dois pais e/ou duas mães), normalmente, influenciadas por processos de recomposição da família “original” (SILVA; BONVICINI, 2016). Sabendo que a família ainda é considerada o alicerce da sociedade, pois é o primeiro sistema em que somos inseridos ao nascer, não podemos ficar atrelados a ideias e costumes antigos ao objetivar o bem-estar daqueles que necessitam de um atendimento específico. Por conta disso, a Justiça e a Psicologia precisam caminhar juntas, visando a integridade da prática. Interpretando a Constituição Federal de 1988, há a opção pela família socioafetiva, entendendo que os laços afetivos sobrepõem os biológicos; vemos, assim, que o direito da família já vem reconhecendo os novos modelos (SILVA; BONVICINI, 2016). Nessa questão, o princípio da dignidade humana é colocado em primeiro plano, também transparecendo o respeito pelo princípio da afetividade, aspecto que é essencial para a construção psicológica de um indivíduo (SILVA; BONVICINI, 2016), que toma como base matriz a família na qual está inserido. Isso já era um fator que não poderia ser mais ignorado e que, colocando em foco, considerado como válido perante as questões jurídicas. Como pontuam Silva e Bonvicini (2016), as relações fundamentadas no afeto, no que dizem respeito aos novos arranjos familiares, já estão presentes como uma realidade sociais e, portanto, tais famílias devem ser protegidas juridicamente. Lima et. al.(2017) também descrevem uma situação em que a Psicologia já atua, mas que pode ser repensada: mediação. Conforme os autores comentam, os processos em que a justiça é solicitada a intervir em conflitos cotidianos e intersubjetivos aumenta, e, com isso, viu-se a necessidade de criar estratégias que promovam atividades pré-processuais como a mediação, com o intuito de proporcionar momentos de diálogo mediado, entre as partes, como forma de evitar períodos de desgastes por conta do processo em si, visto que a falta de espaço determinado para a conversa pode agravar as crises que são comumente observadas nesses casos. Sendo um terreno dominado pela Psicologia, a resolução de conflitos através da comunicação expande-se de forma a ir além das paredes de um consultório terapêutico e se faz presente nas ocasiões em que os indivíduos chegaram até o serviço pelo viés da Justiça. Assim, mais um campo que pode ser aprofundado e desenvolvido, para acompanhar as necessidades da sociedade que também se desenvolve e se modifica em tempo real. Assim, a ferramenta da mediação emerge como uma forma de potencializar o trabalho, pois permite que “inúmeros fenômenos psicológicos expressos possam ser melhor compreendidos e dessa forma possibilitar uma melhor sistematização do trabalho da psicologia com a atividade de mediação” (LIMA et. al.,2017). A eterna busca por uma melhor forma de trabalho não deve intimidar e fazer com que fiquemos travados (ou acomodados) em práticas já conhecidas. Visando sempre o indivíduo – que, por sua vez, está inserido na sociedade – devemos procurar identificar as questões pertinentes ao tempo atual. As relações sociais são variáveis, mutáveis e complexas, pois são decorrentes das mais diversas concepções culturais presentes na comunidade, que passa por periódicos rompimentos de paradigmas e a definição disso tudo não é uma tarefa fácil, principalmente para analisar quais valores, de fato, devam ser protegidos juridicamente (SANTOS; MORAES, 2016). Além da proteção, a assistência também deve ser pensada, como uma forma de prevenir, quem sabe, situações que viriam a desenrolarem-se através de formas que contribuiriam para a morosidade do sistema. Todas as mudanças que podemos verificar, tanto culturais quanto sociais, exigem revisões constantes nas ações que estamos ofertando, culminando na reflexão também constante de nossa prática (LIMA et. al., 2017). Reconhece-se que novas possibilidades de atuação da Psicologia, assim como uma formação continuada, são importantes para trazerem um olhar diferenciado em cima da sociedade que se modifica e demanda do psicólogo novos saberes e fazeres para “dar conta” das transformações contemporâneas (BRUNINI et. al., 2018). Os profissionais que atendem aos pedidos sociais, por meio do sistema de justiça se deparam com um amplo espaço para engrandecimento de suas ideias e para crescimento de suas práticas. Além das questões modernas, que precisam de atenção e estudo, as encontradas nos setores tidos como tradicionais também precisam de reformulações perante às novas configurações e possibilidades de vivências. Como nos exemplos passados, a vida não é estável. Consequentemente, a maneira como a tratamos a partir do momento que estão sob a guarda e a assistência jurídica também são mutáveis. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS BRUNINI, B. C. C. B.; FERNANDES, C. M. S.; SANTOS, G. R. P. dos; SILVA, T. C. da. Quem cuida do sujeito a ser cuidado? Uma crítica da psicologia jurídica à morosidade da justiça diante dos processos de destituição do poder familiar. EDUCERE - Revista da Educação, Umuarama, v, 18, n. 1, p. 205-220, jan./jun. 2018. Disponível em: < http://revistas.unipar.br/index.php/educere/article/view/6803/3624>. Acesso em: 19 ago. 2018. LIMA, Ítalo E. P.; BACURAL, Rayane P.; SOUSA, Fernanda I. S. P.; LIMA, Karla D. S. Uma experiência da Psicologia com mediação de conflitos - estágio em Psicologia e processos de gestão. Revista de Psicologia. V.8, n2. Disponível em: < http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/19280/30936>. Acesso em: 19 ago. 2018. NOVO, Benigno N. A importância da psicologia jurídica. 2018. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/64532/a-importancia-da-psicologia-juridica>. Acesso em 18 ago. 2018. SANTOS, Sílvia, C. de T.; MORAES, Alexandre R. A. Novas perspectivas de atuação criminal do Ministério Público no controle social da sociedade. Revista Jurídica ESMP-SP. V.10, 2016. Disponível em: < http://www.esmp.sp.gov.br/revista_esmp/index.php/RJESMPSP/article/view/321/152>. Acesso em: 19 ago. 2018. SILVA, Liege B. L; BONVICINI, Constance R. Novas configurações familiares: estudo dos efeitos jurídicos e afetos. Revista Brasileira de Direito Constitucional Aplicado. V.3.n2. 2016. Disponível em: < http://www.periodicos.cesg.edu.br/index.php/direitoconstitucional/article/view/315/431>. Acesso em: 19 ago. 2018. Comments are closed.
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