Quando o próprio título causa estranheza, à simples menção de um acontecimento que não ocorreu no Brasil, tem-se duas alternativas: adentrar no assunto para verificar do que se trata e obter um melhor conhecimento reflexivo sobre tal; ou ler sem compromisso, isentando-se da parcela de responsabilidade que se tem sobre o fato. Qual caminho você escolheria? No livro “Holocausto brasileiro”, a jornalista Daniela Arbex expõe uma história difícil de ser lembrada, mas que deve ser contada. Ao menos 60 mil pessoas morreram dentro dos muros do Colônia, um dos maiores hospícios no Brasil, sendo que esse genocídio teve maior intensidade entre os anos 1930 e 1980. Faz-se necessário atentar que o período ainda data de uma época recente, portanto, seus desdobramentos continuam atuais. Situado na cidade mineira de Barbacena, o Colônia recebia constantemente “pacientes” que eram enviados através de ônibus, viaturas policias, ou os famosos “trens de doidos”, o principal meio pelo qual as pessoas chegavam para internamento. Vindos de diversos cantos do país, os “doidos” colocados lá saíam da locomotiva agitados, muitas vezes sequer sabendo o motivo de terem sido encaminhados para aquele hospital. Seu diagnóstico? Para maioria, nada tinha a ver com uma condição mental. Simplesmente haviam sido mandados lá pois eram alcóolatras, epiléticos, homossexuais, criadas que haviam sido estupradas por seus patrões e tinham engravidado, ou apenas porque sentiam-se tristes ou eram muito tímidos. Chegando lá, eram despidos: da roupa, da identidade, da dignidade. Não eram mais ninguém para o mundo. Apenas pessoas que, de uma forma ou de outra, incomodavam a sociedade e precisavam ser ligeiramente retirados dela, para não balançar o equilíbrio daquilo que já estava estabelecido. E assim, com colchões de pura palha e dividindo a comida, muitas vezes, com ratos e urubus – ou estariam estes animais apenas à espreita, esperando por um banquete maior? – os internos passavam seu tempo, hora após hora, sem qualquer indício de mudança. Os pacientes que não sobreviviam ao descaso não eram devolvidos às suas famílias; não tinham um enterro próprio. Mas tinham uma grande valia. Diversos registros foram encontrados confirmando a venda de cadáveres para, principalmente, universidadesde vários estados ao redor. Com o tempo, a proporção de mortes ficou maior do que a procura desse mercado. Assim, os mortos passaram a ser decompostos em ácido, no próprio pátio do Colônia, para que pelo menos suas ossadas pudessem ser comercializadas. O cenário só começou a mudar a partir da reforma psiquiátrica, que veio com o objetivo de humanizar o tratamento, desmitificando antigas verdades acerca de doenças psiquiátricas e expondo feias realidades. Atualmente, alguns pacientes ainda seguem internados, com verdadeiras necessidades, mas que agora podem ser, de fato, ouvidas. Alguns foram transferidos para residências terapêuticas e outros poucos puderam ter um reencontro com seus familiares. Indenizações são pagas, por um Estado que se calou diante das atrocidades anteriores, e nunca ninguém foi punido por nada que aconteceu. A pesquisa de Arbex denuncia um capítulo vergonhoso para a história brasileira. Não se trata de um caso pontual em que a impunidade novamente toma conta, mas algo que perdurou por décadas, sem que ninguém levasse ao fim uma iniciativa com o intuito de mudar o rumo da situação. E, enquanto isso, centenas de pessoas morreram pelo simples fato de viverem dentro de uma cultura de descaso e práticas higienistas. A proposta da análise não diz respeito à busca de culpados ou algozes, mas à omissão e sua consequente manutenção do esquema descrito. Governo, instituições, e a própria sociedade se mantiveram longe da responsabilização do genocídio, e, dessa forma, contribuíram direta e indiretamente para que ele acontecesse. Haviam muitos envolvidos no processo – desde o encaminhamento dos “pacientes” até o tráfico de corpos – que, conscientemente ou não, acabam sendo coniventes. O relato do livro não está tão longe de onde estamos hoje, tanto em termos geográficos quanto históricos, fazendo parte da construção do corpo social contemporâneo e sua forma de pensar e agir. Mesmo retratando um acontecimento anterior, não se pode deixar de transpor a reflexão para os dias atuais, principalmente em relação ao movimento feito para acabar com aquilo que nos incomoda (sem dar-se o trabalho de entender o motivo do incômodo) e à banalização da morte, tornando-a comum. Tal qual o patrão que violenta a funcionária e a encaminha para o hospício para que a gravidez não “estrague” a família, ou a timidez que não tem espaço no mundo atual, a sociedade mantém o mesmo velho costume de não procurar entender aquilo que não é aceito e, consequentemente, ignorar. Isso é mais cômodo, pois evita que o que é estranho seja escancarado, isentando de tarefa de ter de lidar com o que “não é normal” e, em essencial, isentando da responsabilidade que se tem em cima disso. Em contrapartida, a “morte“ do estranho e do não aceito já é comum. A compra de corpos que, em vida, não tinham serventia por não serem dignos de compreensão, passam agora pela fase de normalização e viram algo cotidiano, banal. É raro ter um posicionamento reflexivo que movimente o desenvolvimento prático e positivo sem cair na “mania” de anular o divergente e considerar somente aquilo que é de fácil entendimento e, por isso, de fácil mudança. É custoso visualizar a sociedade como um todo, com suas particularidades e elementos que interagem mutuamente. No lugar, setoriza-se a vida social e apenas as partes menos complexas recebem investimento para seu desenvolvimento. Nesse processo, muitas pessoas ainda são esquecidas e deixadas de lado. Tendo como base o livro aqui descrito, a autora faz com que esse “incômodo” fique escancarado, dando vida ao que permaneceu calado e deixando impossível não pensar àrespeito. “Agora, é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda não acabou” (BRUM, 2013). E qual caminho você escolheria? Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica Bibliografia BRUM, Eliane. Os loucos somos nós. In. ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
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