Recentemente, fiquei muito honrado e comovido ao receber uma cópia do livro “A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate: um estudo crítico sobre a valoração da prova no processo penal constitucional”,[1] do amigo e parceiro de inúmeras cruzadas (e ciladas) acadêmicas, Paulo Thiago Fernandes Dias.
De fato, tenho muita sorte por ter amigos tão talentosos e brilhantes, que procuram utilizar suas habilidades para denunciar as múltiplas estratégias pelas quais determinados setores institucionalizados brasileiros invisibilizam suas práticas autoritárias e ativistas. Nesse sentido, tenho tido o prazer e a honra de conviver com o autor da obra há anos, desde o tempo em que éramos mestrandos em Ciências Criminais, pela PUCRS. Isso porque, sempre percebi uma qualidade especial em Fernandes Dias, meus olhos estão já treinados para distinguir os “charlatões acadêmicos” dos intelectuais sérios, que procuram realizar uma pesquisa de qualidade. Em nossos diálogos e debates, dentro e fora do ambiente acadêmico, sempre dividimos uma preocupação constante em relação aos nossos problemas de pesquisa, o ativismo do Poder Judiciário. Em que pese estudarmos esse objeto de pesquisa por diferentes caminhos teóricos e metodológicos, sempre tivemos a mesma luta: confrontar a “bondade dos bons”[2] desses heróis da jurisdição, que agem como se o Estado e a sua lógica (lei) fossem um bem particular ou pessoal deles, e não o inverso. Por esse motivo, a obra do autor vem em muito boa hora no Brasil, especialmente em tempos pós-democráticos[3] e de exceção – ou talvez o Estado só saiba atuar dessa forma, como afirma Benjamin.[4] Desse modo, por meio de um desvelamento e uma reconstrução das estratégias invisíveis ou mesmo incompreensões decorrentes dos juízes que utilizam o adágio, in dubio pro societate, como standart probatório nas decisões de pronúncia, Fernandes Dias inova em preencher uma lacuna acadêmica em relação aos poucos estudos que temos, nesse tema. Ao ler a obra do amigo, essa reflexão deixa claro algo fundamental: a própria crise do ensino jurídico e acadêmico no Brasil, uma vez que, ao que tudo indica, as disciplinas propedêuticas (como Sociologia do Direito, Criminologia[5] e História do Direito) têm repercutido pouco interesse por parte dos alunos, quando comparadas com as disciplinas técnicas. Sem dúvida, é difícil contrapor a tese de Lyotard,[6] quando trata da nova condição pós-moderna: “o conhecimento transformou-se em mercadoria”. Bingo! De modo geral (e apesar de não gostar de generalizações), tenho notado uma preocupação dos alunos sempre no sentido “como resolvo esse problema ou aplico esse instituto?”, em vez de “por qual razão esse instituto existe, como ele surgiu?”. Estudar problemas complexos e, possivelmente, sem soluções exige tempo, algo que eles não parecem ter à disposição. Precisam de respostas rápidas, completas e certas. Porém, querem encontrar certezas em um mundo de incertezas? Segurança na insegurança? Normatividade no tempo de rompimento das fronteiras firmes e certas da modernidade? É isso? É isso sim, eles querem! A tarefa do professor é cruel, ele precisa ser o vilão da história, dizer o que eles não querem ou estão preocupados em ouvir. Não há dúvida que as disciplinas técnicas são de extrema importância na área do Direito, porém uma atenção preponderante nelas em sacrifício de outras (disciplinas teóricas) faz com que o pensamento endureça e se mantenha estático, sem condições de desenvolver um senso crítico necessário à construção de um saber jurídico (e para além dele), no futuro. E por qual razão aponto para essa reflexão? Como ela está interligada com o tema de pesquisa de Fernandes Dias? Muito simples, quando a Sociologia do Direito deixa de ser uma disciplina importante para os juristas brasileiros, eles passam a ser dominados por essa infeliz doxa social que, estrategicamente, as instituições sociais como o Estado lutam para desenvolver em nós: o chamado “sempre foi assim”, a luta de todo sociólogo deve ser contra essa crença popular, diz Bourdieu[7] (e ao meu ver, de todo o intelectual). Quando o magistrado desconhece a história do Estado moderno, ele não vê nenhum obstáculo em misturar o interesse da sociedade (ou dos indivíduos) com o do Estado, acredita que se tratam de lógicas similares e, portanto, democráticas. Que o Estado existe para emanar as vozes e os desejos sociais. E o juiz, por ser “o intérprete da lei”, precisa ser, então, o porta-voz desses interesses. Pois é, correto? Jamais. Já no século XIX, o funcionalismo sociológico francês de Durkheim estava preocupado em elaborar cientificamente essa distinção entre Direito e costume, interesse social do estatal, governo e autogoverno, etc.[8] Da mesma forma, a racionalização do mundo social proposta por Weber separava o interesse público do privado, o Estado é uma “associação política que reclama para o si o uso do monopólio da violência física legítima”, ele só existe para o cumprimento da lei, pois a religião deixa de ser o princípio estruturante da estrutura medieval e a lei para a ser a racionalidade do chamado Estado moderno, racional ou “burocrático”.[9] Dar ouvidos somente aos desejos da população ou estabelecendo a racionalidade jurídica abaixo desses anseios é sim, acima de tudo, descapitalizar a crença no Estado (qualquer instituição social funciona por meio de crença). O magistrado que age dessa forma está deslegitimando não apenas essa instituição social, mas a si próprio, ele age contra ele mesmo, confunde o interesse privado com a lógica da coisa pública. Aqui, o analfabeto-funcional jurídico se encontra com o analfabeto sociológico. E por qual razão o magistrado faz isso? Ora, porque não conhece a história do Estado moderno, porque pensa que as coisas “sempre foram assim”, ele está estrategicamente dominado pelo “golpe de Estado”, que denuncia a sociologia de Bourdieu, em oposição ao funcionalismo de Durkheim. Quando há uma falsa aparência de Estado moderno, isto é, quando ele não é concretizado como costume social, ele passa a ser qualquer coisa, e o Direito passa a ser uma mera técnica ou um “brinquedo” nas mãos dos grupos dominantes. “A quem serve o Estado”, perguntava Weber. Bourdieu reorganiza essa questão: “É possível servir ao Estado sem se servir dele?”.[10] Bingo! Se a Sociologia do Direito passa a ser uma disciplina secundária em cursos de Direito jamais conseguiremos formar intérpretes normativos capazes de atuar em nome da eficácia de uma Democracia material. Morais da Rosa acerta em cheio, na apresentação da obra de Paulo Thiago, quando diz que o adágio “em nome da sociedade” não deve continuar sendo invocado como “mecanismo retórico de drible da singularidade do caso”.[11] Pois é, mas para que possamos nos dar conta do jogo jurídico que nos é exigido pelo Estado, para que o “jogador profissional”, diferente do amador, consiga não ter o seu inconsciente psíquico roubado pelo “efeito borboleta” do caso concreto,[12] ele precisa conhecer a história institucional da instituição que lhe emprega. Não há outra saída, apesar da modernidade só ter surgido pelo rompimento da tradição e do mito, conhecer os signos passados é condição para o futuro, caso queiramos nos esquivar do risco de repetir as velhas estratégicas de dominação social como novas agora, na modernidade tardia. De qualquer forma, meus parabéns ao amigo Fernandes Dias pela brilhante obra, não tenho dúvida que esse livro é somente o primeiro de uma longa trilogia a ser construída, dada a pertinência temática da pesquisa. Tiago Lorenzini Cunha Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS Graduado no curso de especialização em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela UFRGS Graduado em Direito pela PUCRS Atualmente bolsista CAPES E-mail: [email protected] [1] FERNANDES DIAS, Paulo Thiago. A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate: um estudo crítico sobre a valoração da prova no processo penal constitucional. Florianópolis: EMais, 2018. [2] MARQUES NETO, Agostinho R. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática – O Juiz-Cidadão. IN: Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Revista do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, ano III, n° 4, 1995, p. 58-96. São Luís: Centro de Processamento de Dados do Tribunal de Justiça. [3] Especialmente pela visão do Estado pós-democrático descrito por: CASARA, Rubens. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. [4] MATE, Reyes. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin. Tradução de Nélio Schneider. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2011, p. 188-190; 192. [5] Desde à graduação, os alunos deveriam ter a oportunidade de estudarem as razões pelas quais as políticas iluministas do medo e do controle social estão em colapso na modernidade tardia. Ver DA ROCHA, Álvaro Filipe Oxley; CUNHA, Tiago Lorenzini. Por uma reescrita do ideal moderno do medo da criminalidade nas cidades brasileiras contemporâneas. Direito da Cidade, v. 10, p. 620-661, 2018. [6] LYOTARD, Jean François. The postmodern condition. Theory and history of literature, v. 10. Minnesota: University of Minnesota Press, p. 4 e ss. [7] BOURDIEU, Pierre. El misterio del ministerio. De las voluntades particulares a la voluntad general. In: WACQUANT, Loïc (org.). El misterio del ministerio: Pierre Bourdieu y la política democrática. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2005, p. 71-72. Ou ainda, em outra obra, BOURDIEU, Pierre (1930-2002). Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989-92). Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 31 e ss. [8] Sobretudo, DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia: física dos costumes e do direito. Tradução de Cláudia Schilling. São Paulo: EDIPRO, 2015, p. 113; 120-121. [9] WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 30 e ss.; 61. [10] BOURDIEU, Pierre (1930-2002). Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989-92). Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 33. [11] Apresentação de MORAIS DA ROSA à obra de Fernandes Dias, p. 15. [12] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Entender como funciona o jogo processual será decisivo. Mar. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-mar-31/limite-penal-entendercomo-funciona-jogo-processual-decisivo>. Acesso em: 18 julho. 2018; Como usar a Teoria dos Jogos no processo penal? Abril. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-abr-13/limite-penal-usar-teoria-jogos-processo-penal>. Acesso em: 18 julho. 2018. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |