Para compreender variáveis dos discursos de ódio, de intolerância presentes na atualidade, uma das chaves de leitura pode ser encontrada no livro “Genealogia da moral: uma polêmica”, de Friedrich W. Nietzsche, publicado pelo filósofo dionisíaco em 1887, na qual, explicita a constituição da moral e, consequentemente, da dicotomia bem e mal, bom e ruim. Nessa obra, Nietzsche faz uma analogia com diversos aspectos cotidianos da vida em sociedade, dentre os quais as relações entre nobres e plebeus, entre sacerdotes e guerreiros etc., bem como analisa a influência do catolicismo nessas relações.
Acompanhar os argumentos formulados nesse denso livro é tarefa que exige do leitor perspicácia analítica. Nietzsche faz questão que seja assim, afinal não quer leitores apressados, ou leitores discípulos, mas leitores que se desafiem a pensar, refletir e analisar intensa e profundamente os argumentos colocados em debate. Escreve em estilo aforismático, não anuncia pressupostos, não explica o que e como pretende argumentar. O leitor está sozinho num diálogo com um autor que quer fazê-lo se perder, que não quer ser simplesmente “entendido”, mas provocar o leitor a um intenso exercício do pensamento. Isso também faz com que as citações da obra de Nietzsche devam ser feitas de modo cauteloso, senão calculado. Determinados trechos não contêm o pensamento do filósofo, mas raciocínios utilizados para que o leitor acompanhe a forma como ele pensa determinadas questões. A partir de tais considerações, arriscamos uma referência que nos parece evidenciar o paradoxo da moral, a maniqueística separação entre bem e mal: “Este ‘ruim’ de origem nobre e aquele ‘mau’ que vem do caldeirão do ódio insatisfeito – o primeiro uma criação posterior, secundária, cor complementar; o segundo, o original, o começo, o autêntico feito na concepção de uma moral escrava – como são diferentes as palavras ‘mau’ e ‘ruim’, ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de ‘bom’: perguntemo-nos quem é propriamente ‘mau’, no sentido da moral do ressentimento. A resposta, com todo o rigor: precisamente o ‘bom’ da outra moral, o poderoso, o dominador, apenas pintado de outra cor, interpretado e visto de outro modo pelo olho de veneno do ressentimento. Aqui jamais negaríamos o seguinte: quem conhecesse aqueles ‘bons’ apenas como inimigos, não conheceria senão inimigos maus, e os mesmos homens tão severamente contidos pelo costume, o respeito, os usos, a gratidão, mais ainda pela vigilância mútua, pelo ciúme inter pares [entre iguais], que por outro lado se mostram tão pródigos em consideração, autocontrole, delicadeza, lealdade, orgulho e amizade, nas relações entre si – para fora, ali onde começa o que é estranho, o estrangeiro, eles não são melhores que animais de rapina deixados à solta. Ali desfrutam a liberdade de toda coerção social, na selva se recobram da tensão trazida por um longo cerceamento e confinamento na paz da comunidade, retornam à inocente consciência dos animais de rapina, como jubilosos monstros que deixam atrás de si, com ânimo elevado e equilíbrio interior, uma sucessão horrenda de assassínios, incêndios, violações e torturas, como se tudo não passasse de brincadeira de estudantes [...]. Na raiz de todas as raças nobres é difícil não reconhecer o animal de rapina, a magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitórias; de quando em quando este cerne oculto necessita desafogo, o animal tem que sair fora, tem que ter à selva – nobreza romana, árabe, germânica, japonesa, heróis homéricos, vikings escandinavos: nesta necessidade todos se assemelham[1]. Tomamos a genealogia da moral, especialmente o maniqueístico princípio do bem e do mal, como paradigma para utilizarmos o método de raciocínio analógico. O método analógico não pode ser confundido com o método dialético de explicitação das contradições na síntese elaborada após um cotejo entre tese e antítese, embora ambos tenham alguns pontos de contato. Também não faremos proposições a partir das contradições. Com o método analógico, que se caracteriza pela comparação entre um caso paradigmático e os casos semelhantes, pretendemos instigar o leitor a formular as próprias conclusões acerca deste assunto por meio da analogia entre o texto de Nietzsche e alguns discursos de ódio. Os discursos de ódio contra uma certa criminalidade frequentemente estão associados aos crimes dos Outros, especialmente daqueles que são os clientes preferenciais do sistema criminal, os famosos três pês (pretos, pobres e putas), grupo formado por uma massa de despossuídos e desgraçados, lançados no mundo e abandonados à própria sorte. Todavia, nos últimos anos, especialmente após o caso mensalão, esse discurso passou a ser dirigido também aos corruptos ou, melhor, aos corruPTos, como se somente os integrantes de um partido fossem corruptos e como se todos os integrantes desse partido fossem corruptos simplesmente por se filiarem a esse partido. Mais uma dentre tantas coisas que fazem de nós a república das jabuticabas, um país (?) ímpar. O que há em comum entre todos esses discursos de ódio é a moralização radical, uma quase ou talvez total demonização do Outro. Esse Outro corresponde ao mau e a todas as características intrínsecas a eles, a tudo aquilo que os torna maus por natureza. Para que possamos ser bons é preciso que sejamos exatamente o oposto dos maus, que todas as nossas ações sejam diametralmente opostas às ações dos maus. Na metáfora dos lobos e das ovelhas, utilizada por Friedrich W. Nietzsche para satirizar a moralização da relação entre bem e mal, as ovelhas diriam que o bem corresponde a tudo o que não tem relação com o que fazem os lobos, é o extremo oposto de como os lobos vivem. Já os lobos diriam que não odeiam as ovelhas, muito pelo contrário, acham todas elas deliciosas e, por isso, gostam muito de comê-las. Essa metáfora nos permite compreender a lógica moralizante, demonizadora escamoteada nos discursos de ódio contra a criminalidade dos Outros. Há uma tentativa por parte dos acusadores, dos autores desses discursos de se distanciar de tudo o que consideram mau, de tudo aquilo que faz com que determinadas pessoas possam ser chamadas de bandidas. Em suma, o acusador, como ovelha que é, precisa traçar uma linha imaginária que o separa da matilha de malvados lobos, afinal de contas, é só uma ingênua, inocente e indefesa ovelhinha que nada tem a ver com o crime, e muito menos com os malvados criminosos. Entretanto, se essa mesma ovelha que bradou contra os maus, os amigos ou familiares dela praticar(em) alguma ação definida como criminosa numa norma criminal, o que juridicamente é classificado como crime, certamente não terá ocorrido mais do que um deslize, um erro plenamente justificável. Afinal de contas, as ovelhas não são, nunca foram e nem serão, malvadas. O mal é coisa exclusiva dos lobos! São apenas ovelhas, falíveis e mortais, que erram e se arrependem dos erros. Basta isso, o arrependimento, para que a grande ovelha transcendental as perdoe e possam ser recepcionadas na terra prometida das ovelhas após a morte. Aliás, certamente serão mortas para que algum malvado lobo se delicie com a carne delas numa churrascaria, também pertencente a um maldoso lobo capitalista que descobriu na morte das ovelhas um lucrativo negócio. No fundo, esse lobo se interessa apenas pelo dinheiro dos negócios. Mas, atentemos para a percepção popular que tem ciência de que na pele de ovelha lobos se escondem e aguardam o momento para destilar toda sua vontade de verdade, de moralização, senão de voracidade em relação ao Outro. Um discurso de ódio somente pode ter como fundamento a moralização, a luta entre o bem e mal. Em nome da moral, da defesa e afirmação do bem podem ser justificadas atrocidades que seres humanos realizaram e realizam em relação aos seus semelhantes por serem, ou pensarem política, social, cultural e economicamente de forma diferente. A moralização das relações humanas na vida em sociedade é caminho mais curto para a expressão do ódio, da violência na medida em que o ser humano abre mão do pensar, do exercício do bom senso, da justa medida na compreensão dos fatos e dos acontecimentos. O moralista classifica, enquadra, xinga e por último age com violência por entender que um mundo perfeito é possível e que somente ele tem a verdade, o Outro, o não classificável, portador da peste, do mal precisa necessariamente ser extirpado. As sociedades ocidentais já viram este filme na barbárie totalitária das primeiras décadas do século XX... Sandro Luiz Bazzanella Doutor em Ciências Humanas Mestre em Educação e Cultura Graduado em Filosofia Professor titular de filosofia da Universidade do Contestado Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional Luiz Eduardo Cani Professor na Universidade do Contestado Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal Mestrando em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado Advogado e consultor jurídico [1] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 32. Comments are closed.
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