Quem imaginaria que um dia desses iria chegar? Há pouco tempo atrás, em pleno 2017, estava sendo bastante discutida uma decisão tomada pelo Juízo da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, que, de acordo com o que foi divulgado, permitia que psicólogos “tratassem” pessoas homossexuais de forma com que elas passassem por uma terapia de “reorientação sexual”, processo que tornou-se conhecido como a “cura gay”.
Já choca o fato de estarmos discutindo a questão, já que, à primeira vista, parece ser algo tão absurdo que o único comportamento de resposta seria simplesmente ignorar tal fala. Entretanto, ao lembrar de onde ela veio, é impossível permanecer indiferente. Além de representar um retrocesso de paradigma, a ideia parece não ter sido muito bem desenvolvida, ainda mais por limitar a atuação profissional de psicólogos de acordo com o que foi dito por uma pessoa que não tem conhecimento da prática psicológica. Isso já pode ser comprovado justamente por contrariar a Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) nº 01/99, que, em seus artigos iniciais, resolve que: Art. 1° - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade. Art. 2° - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas. Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades. Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica. Após muitas discussões e considerações, a resolução mencionada traz uma proposta de olhar diferenciada, já que foi um passo grandioso tirar o comportamento homoafetivo do escopo da doença. Dessa forma, a direção tomada pelo CFP foi de adequar-se a essa visão de não patologização, combatendo qualquer forma de discriminação e estigmatização, a fim de promover o bem estar das pessoas e da humanidade. Hashem (2017) criticamente pontua algumas questões em relação ao surgimento da ação, como a pretensão ter sido proteger a liberdade científica. Ele explicita que, na proposta, o fundamento jurídico considerado para colocar a resolução nº 01/99 em cheque foi o “direito fundamental à liberdade de atividade científica”. Entretanto, isso pode ser facilmente contestado, visto que não há nenhum tipo de proibição ou movimento que limite o estudo e o avanço da ciência na área. O tempo também deve ser levado em consideração. O psicólogo César Fernandes, um dos que vem acompanhando e participando de reuniões em Brasília com os demais conselhos regionais e o federal, percebe que “estamos vivendo um momento social e político específico de avanço do conservadorismo”, e isso faz com que os velhos ideais da moral e dos bons costumes ressurjam para debate público, tendo as identidades sexo-diversas entram como alvo (FERNANDES, 2017). Dito isso, vale ressaltar que uma das principais autoras, a missionária e psicóloga Rozangela Alves Justino, já teve seu registro cassado pelo conselho da categoria por oferecer terapias que supostamente curariam a homossexualidade. Dessa forma, é difícil ver sentido em algo proposto que vai exatamente na direção oposta daquilo que é regulamentado pelo próprio órgão federal de sua atuação profissional, ainda se utilizando do pretexto da ciência para fundamentar sua ideia. Não há como retirar da resolução um conceito que diga que não se devem mais realizar pesquisas sobre a sexualidade humana. Em nenhum momento isto é desencorajado e, portanto, o argumento não é válido. Dessa forma, qual seria a verdadeira intensão por detrás dessa prerrogativa? De acordo com as análises verificadas por Hashem (2017), já se faz interessante o fato de que quem se utilizou do argumento científico é justamente quem reconheceu publicamente que se sente “direcionada por Deus para ajudar as pessoas que estão homossexuais”. Consequentemente, é explícito que a preocupação, na realidade, é outra. Como também constata Hashem (2017), "a invocação da liberdade científica no caso é uma inequívoca artimanha dos autores para tentar proteger, na verdade, o exercício da sua fé, que passa muito longe da ciência…". Não se cabe uma crítica à religião em si, visto que nem todos os indivíduos que tem alguma crença e seguem uma doutrina tem a mesma opinião sobre o assunto. Mas o que deve ser repensado é a "desculpa" da ciência estar limitada com uma justificativa que, até o momento, foi utilizada principalmente por políticos que pertencem a bancadas evangélicas e não por quem tem relação ou conhecimento suficientes para discorrer sobre avanços científicos. Com isso, especula-se a motivação pessoal e não pensada no coletivo, na humanidade e na população brasileira. Visto isso, não há como considerar essa decisão do Juízo como algo que, de fato, tenha sido pensada e argumentada com racionalidade. Não só visa interesses próprios dos autores como fere explicitamente a resolução do Conselho Federal de Psicologia, que enfatiza que não se deve realizar qualquer ação que favoreça a patologização dos comportamentos e práticas homoeróticas. Mesmo que se esconda atrás de uma proposta em que o paciente deve trazer essa demanda, não podemos ser ingênuos, afinal, “não há cura para o que não é doença”. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica Referências FERNANDES, Cesar. Não há cura para o que não é doença! Entrevista concedida à Revista Contato. Ano 19. Edição 113. Set/Out 2017. HASHEM, Daniel W. As entrelinhas da “liminar da cura gay”: a homofobia disfarçada de liberdade. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/09/22/as-entrelinhas-da-liminar-da-cura-gay-homofobia-disfarcada-de-liberdade/>. Acesso em: 29 out. 2017. RESOLUÇÃO CFP N° 001/99 DE 22 DE MARÇO DE 1999. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf>. Acesso em 29 out. 2017. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |