Artigo do colunista Paulo Silas Filho e a obra ''A dança da Morte'' de Stephen King, relacionando com a gênese do sistema penal, vale a leitura! ''Assim, numa ordem esperada das coisas, os pequenos grupos vão formando grupos cada vez maiores, até que se tenha um agrupamento grande o suficiente que passe a clamar pelo estabelecimento de regras. Eis aí a necessidade do estabelecimento de alguma espécie de sistema político, do estipular de bases a partir das quais aquela nova sociedade será (re)construída. Aparece aí o Direito em seu berço''. Por Paulo Silas Filho “A aplicação da lei sem um sistema judiciário não é justiça” – essa máxima poderia estar presente em qualquer obra jurídica, filosófica ou sociológica. A citação, porém, foi extraída de um dos mais cultuados romances de Stephen King, “A Dança da Morte”. Tanto a própria frase como o contexto em que ela está inserida podem servir como mote para uma reflexão sobre o sistema de justiça que se opera a partir daquilo que entendemos como Direito. “A Dança da Morte” é uma das mais primorosas obras do mestre do terror – que, como já disse aqui tantas vezes[1], não se limita unicamente ao terror e a fantasia. A história se passa num cenário pós-apocalíptico, compreendendo o antes, o durante e o depois do evento responsável por dizimar 99% da população. Após uma falha ocorrida no Departamento de Defesa dos EUA, um vírus é acidentalmente disseminado, ocasionando a morte em massa da população mundial. Os poucos sobreviventes buscam estabelecer suas novas vidas dentro das poucas perspectivas possíveis nesse velho novo mundo. O medo do futuro, dada a incerteza sobre se haverá algo vindouro, paira sobre todo aquele que resistiu à supergripe. Das vidas que vão sendo conduzidas à modo próprio, surge de um estado latente a necessidade do agrupamento humano, cujo ímpeto do restabelecimento social confirma a máxima aristotélica de que o homem seria um animal político. Assim, numa ordem esperada das coisas, os pequenos grupos vão formando grupos cada vez maiores, até que se tenha um agrupamento grande o suficiente que passe a clamar pelo estabelecimento de regras. Eis aí a necessidade do estabelecimento de alguma espécie de sistema político, do estipular de bases a partir das quais aquela nova sociedade será (re)construída. Aparece aí o Direito em seu berço. Ao considerar as nuances que se fazem presentes nessa reconstrução social, o livro constitui uma excelente proposta de abordagem para análise orientada em matérias propedêuticas do curso de Direito. Ciência Política, Teoria do Estado e até mesmo em Direito Constitucional a obra “A Dança da Morte” pode servir como instrumento de estudo dialogado com a disciplina, pois o que se tem na narrativa é o relato pormenorizado da formação de toda uma sociedade com toda a sua dinâmica que é estabelecida através de opiniões, consensos, regras e tudo o mais que se faz presente na constituição embrionário de um Estado. Para o presente escrito, chama-se a atenção para o contexto no qual a frase que inaugura o texto se fez presente, uma vez que diz respeito à necessidade sentida por um sistema de justiça no âmbito daquela comunidade retratada na obra que cada vez vai ganhando mais corpo. Em certa altura do livro, o agrupamento de pessoas vai bem. Com funções distribuídas que aos poucos vão sendo delimitadas, a nova sociedade segue cada vez mais operante. A necessidade sentida por uma espécie de conselho que figure como responsável por conduzir politicamente a comunidade é suprida mediante a instauração de um comitê, cujos membros eleitos passam a figurar como os dirigentes políticos. Surge, porém, um fato que constitui um fenômeno que na leitura sociológica de Durkheim é inseparável da própria sociedade: um crime é cometido. Na realidade, uma violência acontece, já que a nova sociedade ainda não definira qualquer código formal que estipulasse o que se poderia entender como crime. Numa reunião do comitê, o personagem Nick descreve o episódio que passa a ser discutido: “tivemos o caso de um homem, cujo nome não vou mencionar, que encontrou sua mulher, cujo nome também omitirei, passando todo o seu tempo ocioso à tarde em companhia de uma terceira pessoa. Imagino que todos saibam de quem estou falando. [...] Seja como for, o homem em questão surrou a terceira pessoa e também a mulher envolvida”. A questão entra em debate, cuja preocupação se dá em razão do fato de que o “homem cometeu um delito grave, agressão e espancamento, mas continua circulando livre por aí”. A conversa travada pelo comitê passa a se dar sobre de que modo aquela situação em específico e outras vindouras deveriam ser resolvidas pela comunidade. A resolução se deu mediante a votação pela indicação de um dos membros do comitê para o cargo de xerife, que passaria a ficar como responsável pelo controle da ordem. Surge, porém, a partir da resolução de um problema, um outro: o controle do poder. Ora, tendo sido estabelecido uma forma de determinação da lei (ainda num sentido primevo) e da ordem, sentiu-se a necessidade de se regulamentar a forma com a qual a aplicação disso se daria, pois, conforme alerta o personagem Glen durante a discussão, se assim não fosse feito, o patrulhamento desempenhado pelo xerife seria “apenas vigilância, regida pelos punhos”. A preocupação é totalmente válida, principalmente ao considerar que a comunidade havia jurado e adotado a Constituição dos EUA como base para orientar as suas diretrizes, ou seja, não se podia simplesmente prender o agressor e resolver a situação apenas por esse agir. A solução proposta está nos dizeres de Glen: “compete a nós tornar a segurança e constitucionalidade sinônimos, o mais rápido que pudermos. Precisamos pensar em um sistema judiciário”. A partir desse trecho, dessa passagem da obra, é possível refletir o anseio e a necessidade por um sistema judiciário que exerça e cumpra o seu papel de garantidor das normativas constitucionais. Até mesmo numa sociedade fictícia, que busca se reestruturar para a retomada do trilhar da humanidade, como em “A Dança da Morte”, percebe-se que o exercício de poder, qualquer seja ele, precisa ser contido através de alguma forma de limitação. Não há espaço para julgamentos arbitrários ou execuções sumárias em qualquer sociedade que se pretenda minimamente democrática. Qualquer seja o fato apurado, a transgressão constatada, o delito denunciado, há de observar diretrizes formais previamente estipuladas para que um processamento e julgamento possa ser considerado justo. Somente assim para se evitar o arbítrio. Curioso o fato de que em uma sociedade que se entende tão avançada como a atual, obviedades como essas precisem ser ditas e reditas. Num período de expansionismo penal, em cujo punitivismo exacerbado os direitos e garantias previstos normativamente, os quais foram arduamente conquistados no âmbito de uma ordem justa, democrática e civilizatória, são vistos equivocadamente como entraves para um justiçamento de ordem puramente pragmática, uma sociedade em reformação retratada por Stephen King em “A Dança da Morte”, considerando as bases fundamentais que passam a ser estruturadas no relato ficcional, pode servir como exemplo literário para se pensar esse atual fenômeno de “justiça (qual?) a qualquer custo” da qual padece atualmente o Direito, no qual diversas vozes bradam pela punição sem qualquer medida – mesmo com um sistema judiciário formalizado e operante. É a reflexão proposta que aqui fica, confirmando-se que na literatura de Stephen King há muito mais que apenas terror e fantasia. REFERÊNCIAS KING, Stephen. A Dança da Morte. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. p. 848-872. Paulo Silas Filho Mestre em Direito (UNINTER); Especialista em Ciências Penais; Especialista em Direito Processual Penal; Especialista em Filosofia; Pós-graduando (lato sensu) em Teoria Psicanalítica; Professor de Processo Penal, Direito Penal e Criminologia (UNINTER e UnC); Advogado; Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura; Diretor de Relações Sociais e Acadêmico da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (APACRIMI); E-mail: [email protected] [1] Como na pequena série “Nós, pessoas comuns, praticando crimes: narrativas de Stephen King” e em outros textos publicados aqui nessa coluna do Sala Criminal
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