Artigo do colunista Rafael Corrêa, com importantes reflexões sobre a democracia constitucional, vale a leitura! '' O que chama a atenção em tal exposição, segundo Freud, é o fato de que ambos os grupos sociais não questionarem a crença em tal ilusão de “sombra sem substância”[9] que, ao fim ao cabo, seria a religião. A partir disso, Freud reconhece que a coerção que defluí da crença religiosa contribui para as práticas de condutas em comunidade: se a ciência não é o suficiente para o homem, a religião oferta o líquido que preenche as lacunas, moldando comportamentos a partir e afastando, com isso, boa parte das posturas “associais” que impediriam uma existência comunitária na civilização''. Por Rafael Corrêa Não identificamos com clareza, portanto, o significado de nossa história – e bem por isso, não valorizamos e compreendemos adequadamente a democracia constitucional de nosso país.
Tal qual uma introdução: por que pensar no futuro da democracia constitucional? É inegável o fato que os estudos de Sigmund Freud sobre a psicanálise contribuíram significativamente para o desenvolvimento de diversos campos do saber. Ao costurar a travessia da reflexão do material ao psicológico, Freud estabeleceu método e modo oxigenados de compreensão da figura humana, atentando para seus impulsos e desejos em medida ontológica e estabelecendo, como afirma Paul-Laurent Assoun, uma perspectiva de entendimento do vínculo social e cultural por meio da ponderação sobre o inconsciente.[1] No âmbito da compreensão e apreensão cultural de fenômenos psicológicos, um de seus estudos de destaque, ao lado de “Mal-estar na Civilização”, é justamente o debatidíssimo “O Futuro de uma Ilusão”[2]. Nele, Freud analisa uma das principais formas de coerção externa ao indivíduo, apta a desenvolver traços de frustração de desejos, bem como suas razões de proibição e privação: a religião. Em seu desenvolvimento, explica Freud, a civilização estabeleceu um processo de moralização e coerção cultural que contribuiu significativamente para o alijamento do homem de seu estado de natureza[3], processo esse pautado em “ilusões” compartilhadas por diversas classes na sociedade, tanto as mais favorecidas quanto as mais oprimidas. Uma dessas ilusões é justamente, na perspectiva de Freud, a religião. Compreendendo sua finitude e fragilidade diante de seus pares e da ordem natural do mundo, os seres humanos passaram a estabelecer crenças que lhe trouxessem conforto e segurança, como uma compensação às vicissitudes que a vida, desde a primeira lufa de ar a invadir seus pulmões, lhes impingiu. Assim como o fazem as crianças em tenra idade, também homens e mulheres buscaram formas de “[...] exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino [...] compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs”[4]. Logo, tal qual na infância enxergamos em nossos pais fontes de carinho e ordenação, de proteção e coerção, homens e mulheres projetaram na figura de Deus características similares, onde encontrariam conforto nas dificuldades, recompensas nas boas condutas e temor ferrenho de sanção em caso de pecados.[5] A partir disso, Freud identifica uma questão curiosa: mesmo com o aperfeiçoamento da civilização e evolução em signo científico de parcela crescente da população, a crença na religião permanecia – e permanece – intacta. A princípio, adjetivar-se-ia como paradoxal o fato de que a ciência avançasse gradativamente na cura de doenças ao mesmo passo em que, sem questionar, se acreditava em dogmas religiosos[6]. A isso, Freud identificou duas justificativas. A primeira advém dos próprios postulados da fé: “[...] as doutrinas religiosas estão fora da jurisdição da razão – acima dela”[7], de modo que aos que professam tais dogmas a crença existe justamente por ser, em si, absurda (credo quia absurdum, “creio porque é absurdo” conforme brocardo atribuído a Tertuliano). Vale dizer: se justificativa racional não há, justificativa metafísica ter-se-á. A segunda justificativa é resultante do método freudiano de esquadrinhar a inconsciência humana: homens e mulheres gozam de propensão quase que indestacável de crer na ficção, em projetar respostas nas ilusões. Essas ilusões, segundo Freud, são expressões de nossos desejos mais intrínsecos, organizados fora de um campo de racionalidade, sendo possível “[...] chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fato proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal qual como a própria ilusão não dá valor à verificação”.[8] O que chama a atenção em tal exposição, segundo Freud, é o fato de que ambos os grupos sociais não questionarem a crença em tal ilusão de “sombra sem substância”[9] que, ao fim ao cabo, seria a religião. A partir disso, Freud reconhece que a coerção que defluí da crença religiosa contribui para as práticas de condutas em comunidade: se a ciência não é o suficiente para o homem, a religião oferta o líquido que preenche as lacunas, moldando comportamentos a partir e afastando, com isso, boa parte das posturas “associais” que impediriam uma existência comunitária na civilização. Há, entretanto, um problema: ainda que crentes, homens e mulheres não conseguem bem compreender a fonte da crença religiosa. Sabem que creem, mas não conseguem compreender por qual razão o fazem. A isso, Freud identifica a forma de educação das crianças, destinatárias desde cedo de diversas lições religiosas ao mesmo passo em que ainda o respectivo id encontra-se em processo de refreamento. Como uma tradição, a crença religiosa é passada adiante, fato que implica nas pessoas uma resposta que, nestas linhas e partir da obra em cotejo, pode ser assim formulada: “creio porque antes meus pais também acreditaram, e antes deles meus avós, e assim fui ensinado ou ensinada”. Surge daí a assertiva mais aguda de Freud sobre o tema: assim como uma criança passa necessariamente por uma fase de neurose ao crescer e desenvolver, também a humanidade compartilha determinados desejos, determinadas restrições e determinadas pulsões. Para Freud, a religião é a neurose obsessiva da humanidade que, de certo modo, ainda se mostra como na infância estivesse.[10] A referida conclusão traz, no entanto, um problema. Se tal relação da humanidade com a ilusão religiosa assim permanecer, dois resultados negativos poderão ser identificados: ou homens e mulheres permanecerão submetidos a tal crença ou, como é natural em qualquer passo da evolução civilizatória, alcançarão um “despertar intelectual” que, ao despojar as pessoas da coerção antes assinalada, poderá culminar na corrosão da ordenação vida em comunidade. É necessário, então, que a relação de homens e mulheres com suas crenças religiosas passe por uma “revisão fundamental”.[11] Isso se dá porque, ao cotejar o “futuro da ilusão” religiosa sem rigor e cautela, talvez a humanidade passe a definir por ilusório aquilo que efetivamente é real e, por conseguinte, transforme em realidade aquilo que sempre foi uma ilusão. Explica Freud em trecho que, para os propósitos deste brevíssimo escrito, é fonte de ânimo e movimento: “Tendo identificado as doutrinas religiosas como ilusões, somos imediatamente defrontados por outra questão: não poderão ser de natureza semelhante outros predicados culturais e pelos quais deixamos nossas vidas serem governadas? Não devem as suposições que determinam nossas regulamentações políticas serem chamadas também de ilusões?”[12] (Destacamos) Apesar do texto de “O Futuro de uma Ilusão” ter sido rematado por Freud em 1927, suas lições permanecem atuais. No Brasil, identificamos hoje a ascensão de um fenômeno cujo signo não mais se encaixa no significado do termo “crise política e institucional”. Estamos indo para além desse símbolo semântico, sendo identificáveis manifestações de diversos setores de nossa sociedade que questionam a estrutura de nossa democracia constitucional, como se fosse ela um degrau a ser alçado. Para muitos, a democracia é algo positivo – seja lá o que isso venha a significar concretamente. Afinal, para quem brada irrestritamente contra a representatividade legislativa e o papel contramajoritário jurisdicional[13], não será o Estado Democrático de Direito também uma ilusão? Um dos apontamentos de Freud acerca do desafio enfrentado pela crença religiosa (e a defesa de, em lugar de sua abolição, a realização de uma revisão) dava-se exatamente no fato de que, em maior ou menor tempo, a humanidade se afastaria de um credo que não conseguisse compreender por completo. E é justamente neste ponto que o problema enfrentado por esta concisa reflexão se coloca: a democracia constitucional no Brasil não estaria a ser desacreditada com cada vez maior intensidade justamente por que, ao fim e ao cabo, também parte da comunidade de nosso país não a compreenda por completo? À uma primeira luz, o questionamento parece sem sentido. Entretanto, se mirarmos o olhar ao passado, veremos com relativa facilidade que o Brasil é um país vincado por densas vicissitudes histórias: uma “independência dependente”; uma República nascida “sem republicanos”; um mito de compaixão entre as diversas “gentes brasileiras” e (poucos) avanços democráticos com (significativos) retrocessos[14] são algumas características que evidenciam o quão incomum é o fluxo histórico nas paragens tupiniquins – singularidade essa que faz com que boa parte de nós, brasileiras e brasileiros, não tenhamos realmente uma concreta noção sobre a dimensão de nosso passado, o que impacta em uma compreensão nublada sobre o agora e uma densa interrogação sobre o porvir. Assim, projeta-se um efeito claro (e preocupante) na atual quadra de nossa vida social e política: como alerta Oscar Vilhena Vieira, o Brasil vive “tempos bicudos” que exigem “[...] saber se a democracia constitucional que se demonstrou surpreendentemente resiliente nas últimas décadas, inclusive ao longo dos últimos cinco anos, resistirá aos novos desafios e ameaças” potencializados principalmente após as eleições de 2018.[15] É a esse problema que a presente reflexão visa arrostar. Para tanto, longe de aqui querer ofertar uma resposta exauriente, antes se proporá a identificação de alguns fatores que contribuíram (e contribuem) para que a democracia constitucional no Brasil esteja sendo cada vez mais tensionada, justamente para que se possa perceber que, ao contrário de outras crenças, o Estado Democrático de Direito no Brasil não pode ser alçado de realidade para o status de uma ilusão. Rafael Corrêa Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, pela Escola de Magistratura Federal do Estado do Paraná (ESMAFE/PR) e UniBrasil. Bacharel em Direito pela Faculdade Dom Bosco (Paraná). Professor de Direito Constitucional, Direito Civil e Direito do Consumidor do Centro Universitário Opet (UniOpet/Curitiba). Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná (ESA - OAB/PR - 2018). Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná (Virada de Copérnico/UFPR). Autor e colaborador de diversos artigos publicados nos principais periódicos jurídicos do país. Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. [1] ASSOUN, Paul-Laurent. Freud e as Ciências Sociais. Psicanálise e a teoria da cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2012. p. 22. [2] FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 15-63. [3] Em suas palavras: “Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos ameaça que nos reunimos e criamos a civilização, a qual também, entre outras coisas, se destina a tornar possível nossa vida comunal, pois a principal missão da civilização, sua raison d’être real, é nos defender contra a natureza.”. Ibdem, p. 24. [4] FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 26. [5] E complementa Freud: “Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável o seu desemparo, e construído com o material das lembranças do desemparo de sua própria infância e da infância da raça humana.”. Ibdem, p. 27. [6] Importante destacar aqui o recorte feito por Freud na obra em tela, cotejando a referida crença no grupo que denominou como “civilização branca europeia”. [7] Ibdem, p. 37. [8] FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 40. [9] Em reflexão bastante assertiva sobre a sociedade, afirma Freud: “Dão o nome de ‘Deus’ a alguma vaga abstração que criaram para si mesmos e, assim, podem posar perante todos com deístas, como crentes em Deus, e inclusive gabar-se de terem identificado um conceito mais elevado e puro de Deus, não obstante significar seu Deus agora na mais que uma sombra sem substância, sem nada da vigorosa personalidade das doutrinas religiosas.”. Idbidem, p. 41. [10] Ibdem, p. 51. [11] FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 48. [12] Ibdem, 43. [13] O texto refere-se ao volume preocupante de manifestações públicas encetadas indiretamente pela atual Chefia de Estado e Governo do país contra atores políticos atrelados ao Poder Legislativo e aos integrantes do órgão de cúpula do Poder Judiciário, com pleitos expressos de retorno ao período de condução política pelas Forças Armadas. Nesse sentido, ver: < https://istoe.com.br/video-manifestante-pede-a-volta-do-ai-5-em-protesto-pro-bolsonaro/>. Acesso em maio de 2020. [14] Todas essas referências são problematizadas com maestria por Lilia Mortiz Schwarcz em sua obra “Sobre o Autoritarismo Brasileiro” (São Paulo: Companhia das Letras, 2019). [15] VIEIRA, Oscar Vilhena. A Batalha dos Poderes. Da transição democrática ao mal-estar constitucional [Livro Eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Posição 103.
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