![]() Dia de crônica no sala de aula criminal, esta, escrita pelo Colunista Rafael Corrêa, vale a leitura! '' É tempo de não mais sermos como os “eternos maridos” de Dostoiévski – se há a tormenta, que estejamos com as velas bem içadas para enfrentar todo esse mar revolto''. Por Rafael Corrêa Esses dias, mexendo em uma das prateleiras da sala, bati o olho em um livro de Carlos Heitor Cony. Tenho pelo autor uma admiração tremenda: é certamente um dos responsáveis por eu ter me apaixonado pela crônica – não fosse Cony, não haveria Ruy Castro; e não havendo Ruy Castro, estaria eu a fazer qualquer outra coisa que não digitando essas breves palavras.
Além da admiração, tive com ele, Cony, uma dívida constante. Mesmo sendo eu um devorador de livros, por alguma razão sempre demorava mais do que o normal para ler as obras de sua autoria. “Quase Memória” (romance que fez Cony regressar à literatura de forma premiadíssima) fora lido por toda a minha família ainda em 1995, sendo eu o único desgarrado das conversas de meus pais e tios, que constantemente viviam debatendo sobre o significado daquele embrulho que Cony relatara ter recebido de seu pai – nada anormal a não ser pelo fato de que, quando recebido o embrulho, o pai de Cony havia falecido há anos. Paguei essa minha dívida com “Quase Memória” vergonhosamente apenas vinte anos depois desse episódio – e qual não foi a minha surpresa em ver aquele outro livro seu na prateleira, esperando pacientemente ser devorado por completo. Chronos tem mesmo suas ironias. Lembro-me bem de quando comprei aquele livro que, agora, repousa na prateleira. Enquanto aguardava um voo de retorno para Curitiba no Aeroporto Internacional de Brasília, decidi perambular em busca de alguns atrativos. Achei, para a minha sorte, uma livraria; e bibliófilos bem sabem que encontrar uma livraria sem qualquer supervisão é tão arriscado quanto deixar um diabético (também desacompanhado) em uma confeitaria. Dentre as “guloseimas” em exposição, uma delas chamou-me a atenção. Percebi o sobrenome do autor em destaque (CONY, para não haver erro) e notei que se tratava da famosa compilação das crônicas por ele escritas ao Correio da Manhã durante um dos períodos mais críticos de nossa história: tratava-se mesmo de “O Ato e o Fato – O som e a fúria do que se viu no Golpe de 1964”. Comprei a obra e comecei a leitura ali mesmo, na saída da livraria. Era um treze de maio e eu ansiava por deslocar o meu pensamento do que me incomodava naquela época: uma rotina enfadonha na advocacia; um casamento que, como todo matrimônio que se preze, ia de mal a pior. Mal sabia eu que, em algum tempo, esses dois pontos mudariam substancialmente: dali a dois anos trocaria a prática da advocacia pelo auxílio na prática jurisdicional; dali a três meses conheceria alguém com quem julguei que viveria para sempre – até o “para sempre”, como sempre, acabar tempos depois. Ah sim, a data: aquele treze de maio pertencia ao ano de 2015. O tempo de espera para o embarque permitiu-me ler as quatro primeiras crônicas, mas um trecho prévio a elas me chamou atenção, justamente na apresentação escrita por Luís Fernando Veríssimo. Reproduzo-o aqui: “Hoje, um golpe como o de 64 parece tão improvável quanto a volta dos bondes à Siqueira Campos. Nossa democracia formal está consolidada e nossos militares estão quietos.”. Julguei ter suspirado aliviado naquele instante, talvez por crer que Veríssimo tinha razão; talvez por finalmente ouvir meu voo ser chamado. Agora, em maio de 2020 (momento em que escrevo este texto), ao reler a apresentação de Veríssimo e (finalmente) pagar o meu débito com mais essa obra de Carlos Heitor Cony, percebi o quanto aquela afirmação me impressionou pelos motivos errados. Não me senti aliviado por Veríssimo estar certo, mas por recear que, no fim das contas, ele não poderia estar mais errado. Já naquele treze de maio os sinais eram claros: a eleição presidencial de 2014 estava sendo contestada pelo candidato que perdera o segundo turno e, de modo geral, já não era possível debater política sem que tapas fossem desferidos ou valores fossem rompidos – e ainda era, repito, 13 de maio de 2015. Para chegarmos na quadra da história em que nos encontramos hoje, passamos por cenários piores: um impeachment seguido da movimentação desestruturante de direitos sociais; o assassinato de uma vereadora negra no Rio de Janeiro – bem como os demais vulneráveis que, por aqui, seguem a morrer sem maiores constrangimentos; a polarização cada vez mais violenta na política; e a eleição (legítima, sublinhe-se) de um ex-militar e então parlamentar que, dentre outras afirmações, bradou que o Golpe de 1964 tinha ceifado um número insuficiente de vítimas. Isso não é de hoje. Cony relatou fatores equivalentes em 1964, quando noticiou a famosa “Marcha da Família Com Deus Pela Liberdade”. Outros sinais como esses também já eram produzidos e reproduzidos naquele 13 de maio de 2015, mas não os enxergamos (ou escolhemos não enxergar). No fim das contas, talvez a democracia seja tratada como um caso de amor: você navega nesse oceano de afeto e ignora os sinais de que uma tormenta está chegando. E é então que um “amor para sempre” vem a acabar e, de modo muito parecido, uma “democracia formalmente consolidada” pode vir também a se esfarelar. É tempo de não mais sermos como os “eternos maridos” de Dostoievski – se há a tormenta, que estejamos com as velas bem içadas para enfrentar todo esse mar revolto. Rafael Corrêa Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, pela Escola de Magistratura Federal do Estado do Paraná (ESMAFE/PR) e UniBrasil. Bacharel em Direito pela Faculdade Dom Bosco (Paraná). Professor de Direito Constitucional, Direito Civil e Direito do Consumidor do Centro Universitário Opet (UniOpet/Curitiba). Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná (ESA - OAB/PR - 2018). Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná (Virada de Copérnico/UFPR). Autor e colaborador de diversos artigos publicados nos principais periódicos jurídicos do país. Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |