Nesse texto, o que se pretende, é trazer da história, mesmo que singelamente, alguns pontos que podem clarear, esclarecer ou tornar mais nítida a seguinte problematização: Porque o depoimento dos policiais não pode ser, por si só, dotado de presunção de veracidade? Porque o acusado não pode ser condenado unicamente com base no depoimento policial?
Todos os juristas que trabalham com o direito criminal, sejam advogados, juízes, promotores de justiça, professores, sabem que, na prática, o depoimento policial tem supremacia aos demais, ou seja, cada palavra aduzida pelo policial é carregada de presunção de veracidade. Sob essas condições, a palavra do policial é tida como uma espécie de “palavra mágica”. E aqui, não se fala em má fé, ou seja, não se pode olvidar o nobre trabalho dos policiais, contudo, quando falamos de memórias e testemunho, todo cuidado é pouco, e assim sendo, todo e qualquer depoimento deve ser interpretado e confrontado com as demais provas dos autos, não podendo um se sobressair ao outro. Infelizmente, não é isso que se vê na sala de audiência. Ademais, tem-se que o testemunho dos próprios agentes que fizeram a detenção, viola as garantias constitucionais - que ainda vigoram – do contraditório e da ampla defesa. Testemunhar objetivamente sobre nossos próprios atos é impossível, pois a subjetividade a eles é inerente. Nesse ponto, a Escola dos Annales, a qual pode ser conceituada, ao menos superficialmente, como um movimento historiográfico surgido na França, durante a primeira metade do século XX, que rompeu com a historiografia tradicional, que, contentava-se com uma história narrativa, ou seja, narrar os fatos como eles, em tese, realmente aconteceram e trouxe à tona a seguinte perspectiva: a história deve responder, explicar, os problemas que ela mesmo propõe, e para tanto a interpretação dos fatos humanos, das fontes e dos documentos é imprescindível. O historiador Marc Bloch, um dos fundadores dessa escola, fez em seus escritos compilados na obra “Apologia da História”, uma interessante reflexão, que pode ser traduzida do seguinte modo: os fatos humanos são, por si só, por essência, fenômenos muito delicados. Por isso, para bem traduzi-los, ou penetrá-los e compreendê-los, faz-se necessário a interpretação. “Onde calcular é impossível, impõe-se sugerir”[1]. A interpretação, para os Annales, daria a real noção de como é a vida humana – dimensão da atividade humana (homem – fatos humanos), e para isso, faz-se necessário o interrogatório de testemunhos e documentos, isto é, não se pode aceitar o testemunho ou documento somente pelo fato dos mesmos possuírem caráter oficial (testemunho policial). O juiz e professor Alexandre Morais da Rosa, no Guia de Processo Penal, conforme a teoria dos jogos, corrobora essa premissa, ao tempo que se perfaz impossível conferir veracidade ao depoimento antes mesmo dele ser prestado. “Somente a premissa de dizer a verdade pode ser crível, mas a sua verificação somente pode acontecer depois de produzido o depoimento. Tomar como verdadeiro a priori é um argumento inválido”[2]. Bloch também crítica aos testemunhos, ao passo que o historiador escreve que a palavra das testemunhas não deve ser obrigatoriamente digna de crédito, assim como faz o processualista e juiz citado acima (escola dos annales e direito processual penal se conversam). Do mesmo modo, alerta-se (leia-se que o alerta fora feito já para aquela época) no sentido de não aceitar cegamente todos os testemunhos. Nem todos os relatos são verídicos e os vestígios materiais também, podem ser falsificados. Afinal, “com tinta, qualquer um pode escrever qualquer coisa”[3]. Bloch chama atenção para que o testemunho se situe no início da construção de uma análise, e não como sinônimo dessa análise. A mentira e o erro padecem aos testemunhos, considerando os inúmeros problemas que permeiam ao seu entorno. Não há distanciamento entre o fato e o agente; os policiais atendem incontáveis ocorrências, quase que diariamente, o que embaralha as informações em sua mente; o testemunho durante a instrução processual, na maioria das vezes é prestado meses após o fato. Nem sempre os testemunhos verídicos contam a verdade, por isso é bom procurar analisar todas as possibilidades. O que importa não é contar a história como foi narrada, ou tal como está escrita em um documento considerado válido e dotado de veracidade, mas sim trazer à tona a verdade, dentro de uma análise crítica. Sob esse contexto, se traz ao texto, para melhor explicitar o tema, dois exemplos. O primeiro, de ordem prática, gravado em recente audiência de instrução e julgamento que ocorreu na Vara de Precatórias de Curitiba/Pr. O segundo de ordem história, dado pelo próprio Marc Bloch em sua obra “Apologia da História”. Curitiba, maio de 2018. Instrução e julgamento de um caso de típico de tráfico de drogas. Inquirição das únicas duas testemunhas de acusação, dois policiais militares[4]. O primeiro, Sr. João da Silva, ao descrever o fato disse que após informação repassada via Copom (Centro de Operações da Polícia Militar), de que homens estariam traficando na praia, ele e seu companheiro deram voz de abordagem ao acusado e em revista pessoal encontraram uma chave e uma quantia em dinheiro (real e dólar). Considerando a fundada suspeita, vez que o mesmo usava tornozeleira eletrônica, pegaram essa chave e entraram no galpão de pesca do réu (o mesmo é pescador), local onde fora achado uma pequena porção de maconha, uma faca e uma pequena balança de precisão. O Sr. João da Silva disse que esse galpão era verde claro e muito pequeno. Só tinha uma mesinha lá dentro. O segundo policial, que também atendeu a ocorrência, Sr. Pedro de Souza, ao descrever o mesmo fato, até certo ponto narrou a mesma história contada por seu colega. Nada obstante, ao descrever o galpão disse que o mesmo era marrom e bem grande. Lá dentro tinha dois freezers, beliche, fogão, colete salva vidas, etc. Ambos, em que pese descreverem o fato, não souberam precisar o local exato (dentro do galpão) em que fora encontrada a droga, a faca e a balança. O que se pretende expor aqui, é: como pode duas pessoas que, em tese, presenciaram o mesmo fato, o narrarem de maneira diferente? E mais. No caso aqui aduzido, o Boletim de ocorrência lavrado pelos mesmos policiais dá conta de outra versão, qual seja, que os policiais antes da abordagem do acusado, abordaram duas pessoas, as quais estariam traficando na beira mar, e posteriormente, por avistarem o réu com tornozeleira eletrônica também decidiram o abordar. Em audiência de inquirição, essas duas pessoas mencionadas quando do flagrante, no Boletim de Ocorrência, simplesmente foram esquecidas ou ignoradas. Assim, é óbvio que o depoimento policial não é, por si só, dotado de presunção de veracidade. Não pode ser. E, é bom dizer: essa não é uma questão somente defensiva, mas sim inerente ao Ministério Público, fiscal da lei e ao juiz que após analisar o processo exerce seu juízo de valor, proferindo uma sentença. Para ilustrar esse cenário, Bloch relata o exemplo de um soldado que atuou na guerra. Esse soldado gostaria de escrever a história do confronto, alegando que acompanhou tudo de perto, logo, tinha a característica de testemunha. No entanto, Bloch diz, em síntese, que não importa se você está diretamente inserido dentroda história, assim como o policial está. O perigo, justamente, vem daí, já que existem inúmeros fatores que passam despercebidos, ao tempo que não temos olhos atrás da cabeça, e nossa percepção em meio a um confronto se inunda de subjetividades, o que pode falsear o fato final. Mariana Coelho Cantú Mestranda em Direito pela UNINTER Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Academia de Direito Constitucional - ABDCONST Graduada em Direito pela Universidade Positivo Advogada Criminal [1]BLOCH. Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Edição anotada por Étienne Bloch. Tradução André Telles. [2]ROSA. Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 4ª Ed. Revista, Atualizada e Ampliada. Empório do Direito, Florianópolis, 2017. [3]Idem 01. [4]Os nomes dos policiais usados no texto são fictícios para preservação da intimidade e privacidade. Comments are closed.
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