O texto a seguir não guarda nenhuma relação direta com a obra cinematográfica homônima lançada em 1999. A escolha do tema ficará, entretanto, clara no transcorrer da leitura. O Brasil presenciou o aparecimento, em tempos recentes, de diversos “heróis”. Apenas para citar alguns temos o Capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite (inspirado no ex-comandante do BOPE - Rodrigo Pimentel), o ex-Ministro Joaquim Barbosa e, mais recentemente, o Juiz Sérgio Moro. A comparação de tais personagens a protagonistas de histórias em quadrinhos e obras cinematográficas não é da autoria deste que subscreve estas notas, mas oriunda da opinião externada por muitos que os assim consideram. Para citar apenas dois exemplos: primeiro, foram comuns as mensagens nas redes sociais que se referiam ao ex-Ministro do STF, Joaquim Barbosa, como o “herói de capa preta”. Segundo, há apenas alguns dias o Juiz Sérgio Moro foi ovacionado por dezenas de pessoas que, presentes como ele a um show da banda Capital Inicial em Curitiba-PR, o identificaram num dos camarotes. Guardo imenso respeito por todos os personagens acima mencionados, mas não posso deixar de observar que esta deificação de pessoas que receberam a responsabilidade de atuar na aplicação do ordenamento jurídico, cada um em seu papel constitucionalmente especificado, é sintomática. Do que? De crise. Econômica? Não. Não apenas. Mais profunda. Sistêmica, social e jurídica. Vejamos. É fato conhecido que os “paladinos” da justiça retratados nas histórias em quadrinhos, hoje novamente em voga através da importação de suas histórias para as telas de cinema, carregavam o signo distintivo de atuar de modo a representar a epítome da máxima em que os fins justificam os meios. Eles apareciam em meio às mais severas crises e, para executar a “justiça”, lançavam mão de qualquer meio disponível, inclusive a tortura. Quem sabe não haja personagem que represente melhor este molde do que o conhecido cavaleiro das trevas em sua versão “contemporânea”. O problema aqui é que, quando a vida imita a arte, os efeitos colaterais, diferentemente dos filmes, em que isso não é retratado ou é minorado pelo apelo emocional que obviamente ostentam, são refletidos de forma marcante na sociedade. Nos filmes não há accountability. Pense, por exemplo, no caso dos juristas mencionados. Suas decisões ganham peso de “enunciados” ou “orientações jurisprudenciais”. “Precedentes”, para não me acusarem de estar desatualizado. Na realidade, o bom e velho efeito dominó. Maléfico. Digo maléfico porque pouco a pouco a doutrina, os direitos fundamentais, a Constituição, vão jeitosamente sendo deixados de lado em nome de uma pretensa busca pelo fim da impunidade, muitas vezes marcadas por um discurso “fundamentador” que pretende alterar a Legislação, mesmo quando esta não se mostra insuficiente ou deficiente no caso concreto (sem querer dizer com isso que haveria uma autorização prévia a que o judiciário realizasse tal transformação nestes casos – as teorias hermenêuticas que precisaríamos discutir em tal hipótese não caberiam neste pequeno ensaio e não são essenciais para o propósito do mesmo). Como Habermas bem demonstrou, o juiz não tem essa prerrogativa, não está legitimado a fazê-lo. Mudanças repentinas na rota da jurisprudência da Corte Suprema são exemplo claro do que estou afirmando. Os incautos aplaudem a luta pela punição dos que antes “nunca” eram punidos (aceitando o conteúdo divulgado pela mídia, em geral pautada numa séria de estatísticas confusas e mal colocadas, sobre a criminalidade). Porém, aqueles que analisam com um pouco mais de cuidado o que está ocorrendo ficam “de orelha em pé”. O motivo? Permita-me mais uma vez fazer referência à sétima arte: no filme A Onda (por sinal baseado em fatos reais), o professor de ciência política responsável por tratar do fascismo pergunta aos alunos (alemães) se acreditam que poderia haver um novo surgimento de um regime nazista (ou o surgimento de um regime fascista) na Alemanha. A opinião geral é de que não, de que foi ultrapassada essa “fase” na evolução política daquele país (quem sabe de todos os países alegadamente democráticos). Então o professor propõe um experimento em que pretende provar o contrário. Fim dos Spoilers. O que nos interessa aqui é uma das perguntas feita pelo professor: que condições permitem ou facilitam o surgimento de um regime fascista? A resposta: crise econômico-social, crescente corrupção e nacionalismo avivado. Semelhanças com a situação atual nas margens plácidas do Ipiranga? Uma vez que os dois primeiros elementos citados são bastante óbvios em nosso momento sócio-político, exemplificarei o terceiro. Vivo em Curitiba. Em TODAS as manifestações a favor das ações da “Lava Jato” a canção mais tocada foi o hino nacional. Seguida pela famosa “ah, eu sou brasileiro...”. Também em recente protesto dos taxistas, nas questões relacionadas ao Uber, em apenas uma hora de manifestações em frente ao Tribunal de Justiça Federal o hino foi tocado e acompanhado por vozes “estranguladas” de dezenas de taxistas diversas vezes (perdi a conta). Note, não pretendo aqui valorar o nacionalismo como bom ou mau, muito menos colocar sob uma luz negativa o fato do hino ser tocado vez após vez repetidamente. Apenas atesto o fato de que houve, sem dúvida, um sentimento crescente de unificação por parte dos manifestantes voltado ao enaltecimento do orgulho patriótico. Fica claro o motivo de fazer soar o “alarme histórico” dos que observam os fatos com um ponto de vista minimamente crítico. Concentrando a atenção no judiciário e no Direito Penal: observe alguns exemplos dos “cavalinhos-de-pau” praticados pelos “heróis” recentemente.
Não se está afirmando aqui com estas colocações que estamos prestes a vivenciar a entrada em vigor no Brasil de um regime equivalente ao nazismo (ou fascismo). Mas há algo de assustador nestas semelhanças, uma demonstração de regressão no avanço do patamar civilizatório do país. Enfim, os filmes de super-heróis terminam. O seguimento das sociedades fiticiamente retratadas fica para imaginação dos espectadores. Mas, e na vida real? O que segue daqui? Antes que comecem a voar as pedras comumente atiradas contra todos os que pretendem erguer sua voz em favor das garantias de um Direito Penal constitucionalmente coerente, reitero aqui meu desejo sincero de verificar a extirpação da corrupção em todos os níveis de poder e meu respeito pelos distintos julgadores acima mencionados. Porém, precisamos tomar muito cuidado com o que desejamos. Não é salutar viver à espera de um milagre. Pior, é extremamente perigoso. “O poder tende a corromper. O poder absoluto corrompe absolutamente.” ― John Emerich Edward Dalberg-Acton Paulo Incott Acadêmico de Direito - Faculdades OPET Bacharel em Contabilidade pela Universidade Federal do Paraná Bibliografia: BITTENCOURT, Cezar Ribeiro. Tratado de Direito Penal: parte geral, 1. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. FOCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade, volume I. 2. ed. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 2003 LOPES Jr, Aury. Direito processual penal, 10ª ed – São Paulo : Saraiva, 2013 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 3ª Edição, 2004 STRECK, Lenio Luiz (org.). Direito Penal em tempos de crise. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2007 Comments are closed.
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