“O poder é o camaleão ao contrário: todos tomam a sua cor” – Millôr Fernandes
O presente artigo trata da maior droga já existente na face da terra: o poder. Este que a tantos fascina, que as cabeças domina e que nem todos conseguem largar. O Brasil vive um momento de completo ativismo judicial que, para o professor Lenio Streck, é “um problema de comportamento, em que o juiz substitui os juízos políticos e morais pelos seus, a partir de sua subjetividade (chamo a isso de decisões solipsistas)”[1], alertando, inclusive, do risco de partirmos da democracia rumo a uma juristocracia[2]. Em seu livro Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, Piero Calamandrei (2013, p. 28) afirma que “o juiz possui, como o mago da fábula, o poder sobre-humano de fazer no mundo do direito as mais monstruosas metamorfoses e de dar às sombras as aparências eternas da verdade” devendo a sentença e a verdade coincidirem e se a sentença não for inteiramente verdadeira, a verdade será reduzida à medida da sentença. Mais à frente justifica assim, o ‘problema’ do Estado na ‘escolha’ dos juízes, pois sabe que:
Nesse livro a figura do juiz é trazida de forma mística, idealizada e, como bem diz o próprio autor, até ingênua, buscando no papel do juiz a hipótese de se encontrar a paz humana, a concretização do direito:
Garapon (1997, p. 85) assevera que a toga exerce função de “escudo protetor e eleva o sujeito para além da condição de mero mortal”, sendo ela a que perpetua toda simbologia do poder judiciário, pois prolonga a sensação de superioridade do magistrado em relação às partes. Complementando esse raciocínio, Salah afirma que “já não é o homem que habita a veste, mas esta que habita ele, sendo o julgamento exercido por uma instituição revestida de caráter sagrado, que justifica o poder do juiz e a que ele próprio presentifica, legitimando-a”. Tais crenças não seriam um mito? De acordo com o professor Salah Khaled Jr. (2016, p. 435), “há uma relação embrionária entre o mito e o poder, entre o mito e a manutenção da ordem, entre o mito e um determinado modelo de sociedade".
Para ele, “o mito da busca da verdade é, dessa forma, um modelo processual penal inquisitório e autoritário, incompatível com um Estado Democrático de Direito, porém útil e a partir desse desumano utilitarismo tudo se justifica” (2016, p. 435-436). “Os fascistas desprezavam as pequenas verdades da experiência cotidiana, amavam palavras de ordem que ressoavam como uma nova religião e preferiam mitos de criação à história ou ao jornalismo” (SNYDER, 2017, p. 68). Franz Kafka, em O Processo, livro publicado em 1925, narra a história de um homem julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora:
Desse pequeno trecho é possível explorar três pontos bastantes importantes e característicos de um processo inquisitório:
“O processo inquisitório é uma elaboração do direito canônico da Idade Média, que tomou de instituições laicas todos os seus elementos, mas, imbuindo-se de espírito novo, os transformou” (KHALED JR., 2016, p. 58). Visava à perseguição de todos que potencialmente pudessem representar uma ameaça para a economia de poder na qual estava assegurada sua hegemonia. Dessa forma, quanto ao primeiro ponto acima tratado, não havia presunção de inocência, o inquisidor (interrogador/investigador) perguntava ao objeto de conhecimento, o inquirido (interrogado/investigado) e, desse modo obtinha a verdade, porém, se esse não respondesse o suficiente, ou sem clareza e precisão demandada pelo sujeito, era violentado (torturado) até a obtenção da resposta (KHALED JR., 2016). Para Nicolau Eymerich, havia um enquadramento de sujeitos em três categorias, o que definiria seu tratamento. Suspeita fraca era quando o sujeito se reunia escondido e tinha comportamento diferenciado dos demais; fortemente suspeito era quem frequentava a casa de hereges ou os escondia e gravemente suspeito eram os que prestavam culto aos hereges, prestando-lhes reverência, pediam-lhes consolo ou comunhão e praticavam atos semelhantes aos seus ritos. Ou seja, de nenhum modo, haveria a absolvição, pois todos que eram levados ao interrogatório já eram considerados, antecipadamente, culpados e, assim, eram tratados do início ao fim. Quanto ao segundo ponto, a lei não era levada em consideração no sistema inquisitório:
Já, em relação ao terceiro ponto, constata-se que, influenciar o julgador não era incomum, bastava os “boatos chegarem aos ouvidos do inquisidor pela boca de pessoas honestas e bem comportadas, o processo começará” (KHALED JR., 2016, p. 70), bastavam duas pessoas íntegras e maiores para provar a existência dos boatos. Como brilhantemente sustenta Jacinto Coutinho, o juiz amparava-se na “lógica dedutiva, que deixa ao inquisidor a escolha da premissa maior, razão pela qual pode decidir antes e, depois, buscar, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a decisão” (2001, p. 25). Não havia chance de absolvição, a estrutura do sistema inquisitório “é voltada para a sujeição simbólica do acusado, através de inúmeros artifícios [...] para garantir a vitória do inquisidor sobre o inimigo tido como objeto da persecução” (KHALED JR., 2016, p. 73). O procedimento era concebido para obter, a qualquer custo, a condenação, sendo irrelevante e até impedida a existência de uma defesa:
Magnífico seria afirmar que esses procedimentos já não existem, que fizeram parte do período medieval tão somente, porém, isso não é possível. Em pleno século XXI, a presunção de inocência, o direito de defesa e os limites legais são a todo momento atacados, em total afronta às garantias constitucionais que fundamentam o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, Brady (apud Chomsky, 1998, p. 86) aponta uma grande diferença entre o poder democrático e o ditatorial:
Para Bobbio (2008, p. 206) a resistência baseia-se:
Rubens Casara, insiste em lembrar aos juízes que na democracia constitucional “cabe ao judiciário a função de resguardar os limites legais impostos ao poder político, ao poder econômico e ao exercício do próprio poder jurisdicional”[3]. Porém, Noam Chomsky (1998, p. 75), adverte que:
Pode-se dizer, então, que a divisão dos poderes idealizada por Montesquieu em O Espírito das Leis, e trazida expressamente em nossa Constituição Federal, no artigo 2º: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, já não existe. O ativismo judicial consumiu, com sua fúria punitiva, toda e qualquer imparcialidade, legalidade, presunção de inocência, paridade de armas, já não se vive o domínio da lei (“intelecto sem paixão”) como sustentava Aristóteles em Política, mas o domínio de alguns cidadãos a quem foi dado o poder de julgar. Recusar-se a assimilar essa realidade é assumir o risco de um colapso de qualquer sistema político que dependa do individualismo (SNYDER, p. 2017, p. 64). Quando o sentimento de fé desloca-se do céu à terra, aceitando que apenas alguns digam ser a solução e a verdade, tornando-a oracular em vez de factual, as evidências são irrelevantes. Indo além do alerta de Lenio Streck, trazido no início do texto, arrisca-se afirmar que, atualmente, vivemos em uma tirania do poder judiciário, em que se renunciou à diferença entre o que se quer ouvir e o que de fato é verdadeiro. “O poder imbeciliza”, já dizia Nietzsche. Luana Aristimunho Vargas Paes Leme Advogada, Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera – Uniderp Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela Fundação Assis Gurgacz [1] O que é isto, o ativismo judicial, em números? Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-out-26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-judicial-numeros>. Acesso em: 10 fev. 2018. [2] Entre o Ativismo e a Judicialização da Política: A difícil concretização do Direito Fundamental a uma decisão constitucionalmente adequada. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.18593/ejjl.v17i3.12206>. Acesso em: 10 fev. 2018. [3] Tentação Autoritária. Disponível em: <http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noticia/2017/06/tentacaoautoritaria.html?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar>. Acesso em: 10 fev. 2018. Referências: BOBBIO, Norberto. Direito e poder. São Paulo: Editora Unesp, 2008. CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. São Paulo: Editora Pillares, 2013. CHOMSKY, Noam. Os caminhos do poder: reflexões sobre a natureza humana e a ordem social. Porto Alegre: ArtMed, 1998. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do juiz no processo penal. In: Crítica à teoria geral do direito processual penal. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2001. EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. GARAPON, Antoine. Bem julgar: ensaio sobre ritual judiciário. Lisboa: Piaget, 1997. KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003. KHALED JUNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. 2. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2016. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, ou Como se filosofa com o martelo. 1. ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017. SNYDER, Timothy. Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Comments are closed.
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