Ano de 2018. Século XXI. Era da tecnologia. Pós-modernidade, modernidade líquida ou qualquer outra expressão adequada[1] que faça alusão à época que, em dada ótica, gera uma sensação de retorno aos tempos sombrios. Mas será que em algum momento da história saímos dos tempos sombrios para ter que retornar? O presente texto tem por escopo provocar breves reflexões e concisas indagações sobre a realidade contemporânea, analisando “de onde viemos e para onde queremos ir”, como forma de verificar as condutas humanas e as suas consequências em um mundo que, em certo grau, já se encontra nefasto.
Idade Medieval, período assombroso. Porém, superado. Ou não? Vejamos. Parte da Idade Média, aquela denominada por alguns como Idade das Trevas, foi um período controverso marcado por um peculiar desenvolvimento cultural - como a ciência e as artes -, no sentido de pouca expressão. Em que pese o debate formado por pontos e contrapontos a respeito da penumbra que envolve esse período, principalmente ao considerar uma visão em sentido diverso sobre a desenvoltura do referido, tem-se que foi nessa época que surgiu a Inquisição – o Santo Ofício. Com o advento dessa instituição, aqueles que contrariavam os preceitos ditados pela Igreja eram considerados como ameaça às doutrinas, sendo perseguidos e julgados pelos tribunais da Igreja Católica. As penas aplicadas eram as mais diversas e pelas mais variadas razões, cujos suplícios tinham início já na “fase probatória”. As condenações visavam e levavam à morte, estando sempre presente o sofrimento extremo no corpo do condenado. Os denunciados não podiam saber quem eram os denunciadores, mas podiam revelar os nomes de seus desafetos para o Tribunal da Santa Inquisição. Não havia o exercício da defesa como conhecemos hoje. O órgão julgador e incriminador se revestida numa única figura. Defensor, nem pensar. Bastava o indivíduo ser suspeito de atentar contra a doutrina vigente para ser perseguido e açoitado por um fulminante castigo, pouco importando a dignidade da pessoa humana, que passava longe desse cenário aterrorizante. Ao mesmo havia o pavor pela perseguição dos inquisidores e o regozijo com a desgraça alheia. O horror figurando como protagonista em seu próprio palco. Como o ser humano foi passível de tanta crueldade? Na verdade, poderíamos adiantar que o “foi passível”, de fato, continua sendo, ou seja, o “é passível” é a colocação mais correta para seguirmos a nossa análise, haja vista que a crueldade segue, porém, modernizada. Conforme diz Jean-François Mattéi, "nós nos acostumamos com efeito à barbárie, nossa época é um testemunho claro disso. Habituamo-nos sobretudo deliberadamente a humilhar a humanidade como humanidade reduzindo-a ao parcelamento de seu corpo à decomposição da alma".[2] Parece-nos que tudo anda evoluindo no sentido da modernização, exceto a sensibilidade humana. Estamos em pleno ano de 2018, e ainda temos que afirmar o óbvio, como dizer que os Direitos Humanos, que muitas vezes recebe o nome de escárnio “Direitos dos manos” não é “direito para bandido”, mas sim para todos nós na qualidade de seres humanos que somos. Não bastasse, note-se que muitos dos que afirmam chavões irrefletidos como esses, nunca leram sequer uma singela parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo. Senão vejamos um trecho do Preâmbulo da referida Declaração:
Recomendamos fortemente a leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos em sua íntegra. Sobre a importância de tal documento internacional, a lição de Everaldo Cescon:
Para dimensionarmos o tamanho da problemática, basta voltar os nossos olhares para a tela de um computador, tablet ou celular. Entremos, então, nas redes sociais e vejamos por nós mesmos, a difusão das fakenews e as consequências por estas trazidas, bem como os reflexos causados na vida dos particulares e da sociedade. Temos nesse cenário virtual, novamente invocado, a figura trazida do medievo, a Inquisição. “Mas como? De que forma?” – pode ser o questionamento. A ideia é simples. Pensemos nos casos em que as pessoas lançam uma notícia falsa, gerando vários compartilhamentos ingênuos ao mesmo tempo em que se é feito juízos de valor sem que a fonte ou a veracidade da notícia seja verificada, o que enseja em acusações e julgamentos sumários contra supostos fatos e pessoas. As consequências disso podem ser as mais variadas: traumas, a exclusão desse indivíduo de seu convívio social ou até mesmo lhe custar à vida. Eis o mote que possibilita pensar na Idade Medieval aqui “configurada” e “adaptada” para figurar no cenário da pós-modernidade. Aqueles instrumentos ardilosos dos tempos da Inquisição, feitos parar ferir, para levar à confissão e para punir, foram substituídos por botões e teclas. Dentre os marcos temporais que pode se apontar como um dos possíveis para caracterizar essa dita “virada”, tem-se o final dos anos 80 como sendo o em que a pós-modernidade teria se “estruturado”. No cenário mundial, é também apontado que esse período se iniciou com a queda do muro de Berlim em 1989. Assim, a pós-modernidade estaria marcada pelo avanço tecnológico que intensificaram as relações econômicas e sociais, principalmente no que tange aos métodos de comunicação. Segundo Corina Ribeiro:
Essa evolução que floresce a cada dia com mais intensidade, gera como consequência mudanças comportamentais referentes às comunicações e relações sociais, onde atualmente basta ter um aparelho – computador, notebook, celular ou qualquer outro – com determinados aplicativos e acesso à internet, que a conexão com o mundo todo se apresenta de maneira concreta. Qualquer pessoa ou ponto do mundo a um clique de distância. Essa facilidade ensejou inúmeros benefícios para a humanidade, mas também revelou um lado negativo, lado este onde as pessoas interagem como se estivessem em terras sem lei. Disseminamos conteúdos sem a verificação das fontes. Julgamos as pessoas e os fatos sem qualquer moderação. Acusamos e condenamos sumariamente, funcionando como acusadores e julgadores ao mesmo tempo. Utilizamos “opiniões” que ferem a integridade dos próximos sem qualquer preocupação. É o outro – apenas o outro, que já está condenado desde o início, sem qualquer chance de contraditório. Basta um rumor, um burburinho, um dedo apontado para que a Inquisição da Internet inicie seus trabalhos. As notícias tristes e polêmicas são as que mais geram audiência – a qual é computada pelo número de curtidas e compartilhamentos. Quanto mais, melhor. Pronto. A ritualística, em certo ponto, estando assim presente, aponta para um cenário do medievo nos chamados tempos da pós-modernidade. A aura desse algo identificável em certa medida é mesma, posta sob uma espécie de penumbra. Mas é visível, por mais transparente que possa ser. A justiça é cega, mas num sentido próprio. Com Bauman, que estabeleceu o atual no sentido da liquidez, é possível dizer que “a “justiça” é, diferentemente dos tempos antigos, uma questão planetária, medida e avaliada por comparações planetárias”[5]. Mas a forma de se buscá-la, precariamente, sumariamente, podendo ser traduzida como mera retribuição – “vingança racionalizada”, permanece inalterada em seu âmago. Mesmo considerados alguns avanços que podem ser apontados, o cerne da Inquisição aqui permanece, silente, mas não dormente, uma vez que se faz presente no Grande Tribunal da Internet. Aicha de Andrade Quintero Eroud Graduanda em Direito do Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçu- Cesufoz. Membro Fundadora do Instituto de Estudo do Direito – IED. Estagiária da Câmara Municipal de Foz do Iguaçu. Membro Associado do International Center for Criminal Studies –ICCS. Membro da Comissão Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais. Membro da Comissão Especial de Estudos de Direito Penal Econômico do Canal Ciências Criminais. Paulo Silas Filho Professor de Processo Penal Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] REFERÊNCIAS: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf. Acesso em: 08 de jul. de 2018. BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. CESCON, Everaldo. Direitos humanos e ética contemporânea. Direitos humanos [recurso eletrônico]: emancipação e ruptura/Org. Mara de Oliveira, Sérgio Augustin – Caxias do Sul, RS: Educs, 2013. INCOTT JR., Paulo Roberto. As vertigens da sociedade paradoxal. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/as-vertigens-da-sociedade-paradoxal>. ISSN: 2526-0456. Acesso em: 16/07/2018 MATTÉI, Jean-François. A Barbárie Interior: ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo: Editora UNESP, 2002. RIBEIRO, Corina A. Bezerra Carrill. Teorias sociológicas modernas e pós-modernas: uma introdução a temas, conceitos e abordagens. [livro eletrônico]. Curitiba: InterSaberes, 2016. [1] Conforme Paulo Incott, “diversas expressões foram cunhadas com alto grau de acerto. Já se disse que a sociedade contemporânea é pós-moderna, ou modernamente tardia. Já se disse que vivemos numa “sociedade de risco”, numa “sociedade do medo”, numa “era de extremos”, numa “sociedade excludente”, numa “sociedade líquida”, apenas para mencionar algumas das expressões que, com elevado grau de sucesso, conseguem em poucas palavras aludir a uma época, um modo de vida e, na fluidez da existência humana, uma transição”. INCOTT JR., Paulo Roberto. As vertigens da sociedade paradoxal. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/as-vertigens-da-sociedade-paradoxal>. ISSN: 2526-0456. Acesso em: 16/07/2018 [2] MATTÉI, Jean-François. A Barbárie Interior: ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo: Editora UNESP, 2002. [3] CESCON, Everaldo. Direitos humanos e ética contemporânea. Direitos humanos [recurso eletrônico]: emancipação e ruptura/Org. Mara de Oliveira, Sérgio Augustin – Caxias do Sul, RS: Educs, 2013. P. 34-36 [4] RIBEIRO, Corina A. Bezerra Carrill. Teorias sociológicas modernas e pós-modernas: uma introdução a temas, conceitos e abordagens. [livro eletrônico]. Curitiba: InterSaberes, 2016. p. 171 [5] BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 11 Comments are closed.
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