Alessandro Baratta define a Criminologia Crítica como um conjunto não homogêneo de pensamentos que, contudo, desaguam numa mesma conclusão, a saber, a deslegitimação das funções da pena e do sistema penal como um todo. A partir disso, tais conclusões dão vazão a um rol diversificado de “soluções”: teorias abolicionistas, teorias revisionais ou teorias defensoras de um direito penal mínimo.
Dentro do conjunto de pensamentos que alimentam aquilo que ficou conhecido como Criminologia Crítica, o desenvolvido por Michel Foucault é de fundamental importância. Foucault não se preocupou exclusivamente com o sistema penal, mas suas conclusões são determinantes para maneira de se avaliar o modo como o poder punitivo é exercido. Foucault fez do poder e da disciplina os grandes objetos da sua intensa pesquisa. O que torna seus escritos tão peculiares é que o autor insistentemente procurou deslocar a ideia de poder como algo que partiria (exclusiva ou originariamente) do centro, do aparelho Estatal. Segundo o pensamento do filósofo, o poder se espraia por todas as relações humanas. Assim, seu objetivo foi compreender os mecanismos que permitiam que ele fluísse para reprimir toda uma intricada teia de comportamentos sobre os quais o autor voltou sua visão: sexualidade, loucura e delinquência. Há algumas teses do autor que precisam ser estudadas com cuidado pela Criminologia Crítica, porque não só ampliam (ou até operam certo desvio progressivo) o foco sobre o qual seus estudos se dirigem, mas permitem o aparecimento de uma gama diversificada e qualitativamente superior de argumentos a serem utilizados na deslegitimação do sistema penal. Não se pretende aqui exaurir estas conclusões, mas tecer breves comentários sobre algumas delas. Uma primeira: a segregação daqueles considerados inúteis ao projeto burguês não aconteceu por uma decisão, a priori, da classe burguesa, mas essa se aproveitou destes mecanismos para atingir seus fins. Foucault explica (grifei):
Com base nessas asserções, o filósofo francês desvenda uma dinâmica das relações de poder que, de alguma maneira, escapa à muitas das pesquisas criminológicas. Assim, sua contribuição pode ser percebida pelo fato de alterar o objeto de estudo, tirando a atenção exclusiva do momento e da justificativa de exercício do poder punitivo (Estatal), de que se ocupa boa parte dos estudos de criminologia, para voltar os holofotes para a maneira com que o poder se estabelece e se manifesta na sociedade em geral, particularmente a partir do séc. XIX. Uma segunda das conclusões primordiais de Foucault se dá justamente sobre a natureza do poder. Uma das passagens mais conhecidas de sua obra é esta:
Partindo dessa afirmação, Foucault descontrói uma séria de teorias que se voltam para pesquisa (empírica?) acerca da origem do poder ou de sua justificação, justamente por concluir que estas restam estéreis diante do fato de que o poder não pode ser analisado como um objeto, mas precisa ser visto como um exercício, com métodos, esquemas, movimentos típicos de um “feixe de relações”; não como algo estático. Seguindo essa linha de raciocínio o autor trabalha dois conceitos que serão de importância significativa no seu estudo da prisão como mecanismo de punição por excelência do séc. XIX em diante. Esses conceitos culminam com sua percepção da noção de vigilância como principal forma de exercício do poder punitivo, em substituição ao castigo físico. A primeira noção é a de disciplina. Comentando o aparecimento dessa forma de exercício de poder Foucault esclarece:
Ao explicar do que se trata o poder disciplinar o autor demonstra que este se pratica sobre os corpos de maneira diferente do poder soberano, ou do modo como o poder soberano havia incidido nos séculos anteriores. Ele visa não o castigo, a punição “pura”, o sofrimento do corpo para sua purificação ou expiação, mas sim um aproveitamento, uma docilização do corpo para que seja melhor utilizado pela lógica de mercado. O poder disciplinar tem por objetivo tornar os corpos preparados para servir ao aparato industrial, fazendo que se habituem a rotinas, movimentos, adaptações que os tornem cada vez mais eficazes. Assim, esse poder abarcará a vida dos sobre quem se estende de forma muito mais insidiosa, colocando em prática todo um sistema de higienização, treinamento, amansamento; mais do que isso, normalização dos indivíduos. Exatamente aqui chegamos no segundo conceito trabalhado por Foucault em seus estudos sobre os mecanismos de exclusão: a normalização. Como já aludido acima, Foucault não se limitou a estudar a exclusão perpetrada pelo sistema penal, mas estendeu suas pesquisas para o controle da sexualidade e da loucura. Com essa conjugação de análises ele pode perceber que os mecanismos de vigilância empregados partiam de uma ideologia (embora Foucault não aprecie muito o uso que se faz dessa palavra) de normalização a partir de conceitos morais. O autor explica (grifei):
Com isso fica claro que a segregação e aplicação seletiva da pena tem um vínculo estreito com a forma com que o poder é exercido em razão da estrutura social em que se está inserido, não apenas em razão do sistema de governo e muito menos em razão das características intrínsecas dos indivíduos que são penalizados. Aqui fica fácil perceber uma das grandes contribuições que o pensamento de Foucault pode trazer para o debate da criminologia crítica. Podemos tentar resumi-la, de acordo com os apontamentos levantados até o momento, em duas vertentes: (a) a demonstração de que o poder não é propriedade de alguém. Que se exerce o poder e que, a partir do seu exercício, é possível verificar quem está naquele momento fazendo uso dele e quem está do outro lado, sofrendo sua incidência; (b) a demonstração de que não se deve observar o exercício do poder punitivo como a simples imposição de um castigo que se tenta justificar ou legitimar, um poder repressivo ou formatado para mera geração de sofrimento. Atua (também) de modo “positivo”, no sentido que estrutura, mecaniza e arruma os corpos de acordo com a finalidade pretendida. Com a ascensão da classe burguesa e difusão do capitalismo, a vigilância e a disciplina passaram a exercer um papel fundamental no projeto de consolidação de poder desta, sendo posteriormente solidificado nos processos de neocolonização que estendem suas consequências até nossos dias. Para a continuidade dos estudos de criminologia crítica, quem sabe uma das principais dessas conclusões de Foucault que precisem ser ainda mais exploradas seja esta teorização das formas de exercício do poder. Apenas por explorarmos estes conceitos trazidos por Foucault poderemos perceber de que forma se pode oferecer alguma resistência, por compreender exatamente onde e de que forma o poder está sendo exercido. Vale concluir com as observações do filósofo sobre o Panopticon, ao demonstrá-lo como arquétipo da forma como o poder se estabelece nas sociedades a partir do séc. XIX:
Paulo Roberto Incott Jr Advogado Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Referências: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2014. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016 ____________________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. ____________________. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972. [1] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. p. 287 [2] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. p. 369 [3] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. p. 291 [4] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. p. 218 [5] FOCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. p. 332 Comments are closed.
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