O Poder Judiciário, como escreveu Montesquieu, não deve ser confiado a um senado permanente, mas sim a pessoas escolhidas dentre o povo. Logo, é necessário que os juízes possuam condições semelhantes do acusado, isto é, que sejam seus pares, para que o acusado não seja julgado por pessoas propensas a lhe tratar com violência.[1]
Conforme a legislação atual, os jurados são pessoas do povo, entre os 18 (dezoito) a 70 (setenta) [2], que representam a comunidade onde ocorreu o crime, e assim, formam o corpo de sentença para decidirem sobre a culpa ou a inocência daquele que se senta no banco dos réus. É assim que no júri existe a afirmativa de que os iguais julgam os iguais, ou seja, que o réu é julgado (supostamente) pelos seus pares. Segundo Paulo Rangel[3]esse discurso tradicional é falacioso, pois é fator psicológico que um indivíduo ao julgar o outro, observa-o de cima para baixo em um polo social como que mais elevado. Afirma, ainda, que é do ser humano a falsa sensação de que é superior ao seu semelhante, ao menos quando visto sob um viés ético de proteção da vida como um bem supremo e não, simplesmente, do status social que ocupa. Embora existam pessoas idôneas e responsáveis, existem também àquelas que julgam o próximo sem ética e responsabilidade, ou seja, com o prazer dispensável de poder de decidir sobre o outro, o qual ofusca o bom senso e o equilíbrio que deve ser plenamente disposto ao conhecer o processo na sua mais alta, e complexa intimidade. Nos bastidores dos Tribunais do Júri constata-se que alguns jurados sentem uma duvidosa satisfação em julgar o seu próximo, quase que se confundindo com a aparente e invariável sensação de prazer. O que destoa da missão que lhe ali foi contemplada, pois talvez a sensação devesse ser algo próximo do peso da real responsabilidade que é participar de um corpo de sentença. Para descrever esse momento, rememora-se o que minutou o poeta grego, Sófocles: “O poder revela o homem”. No entanto, e, belissimamente, outros jurados se mostram extremamente “tocados” pela pesarosa responsabilidade que lhe é destinada, e deste modo, uma postura sensível, necessária, humana e nobre dentro de um tribunal. Neste sentido, é inolvidável que existem também aqueles jurados que compreendem a responsabilidade que estão por exercer sobre o destino de outro ser humano, e assim o fazem, tal como juízes por excelência que representam a real democracia brasileira. O atual Código de Processo Penal (art. 436, §1º) reza que nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de raça, cor, sexo, profissão, classe social, grau de instrução, ou etnia, porém se verifica no cotidiano dos julgamentos perante o Tribunal do Júri que não é isso que ocorre na maioria dos julgamentos, ou seja, não é semelhante que julga outro semelhante possuindo o mesmo histórico e pertencente à mesma classe social. Basta, para tanto, se examinar a formação do Conselho de Sentença para apurar que essa afirmativa não é verdadeira, pois em sua maioria os réus são pessoas carentes, e por isso serão representados por advogados dativos ou defensores públicos, que serão julgados por pessoas que não cresceram na mesma realidade fática e social que aquele acusado. Ou seja, um corpo de sentença e um acusado de classes econômicas antagônicas é o que se nota na maioria dos casos nas sessões de julgamento [4]. Assim, os jurados, escolhidos dentre os cidadãos de notória idoneidade, conforme o Código Penal vigente, fazem parte de um padrão de normalidade e de aceitação pela sociedade. A normalidade, portanto, é uma normalidade instituída, ou seja, de estabelecer um dever social que consiste em não cometimento do que proíbe a lei. Logo, os padrões de comportamento tidos como normais têm uma relação direta com a estrutura social que os engendra. [5] Imperioso ressaltar que enquanto os olhares da imprensa e da sociedade voltam-se para o acusado, os jurados idôneos estão atentos para elucidar a verdade, ou chegar o mais próximo dela possível. Quando assim, estamos nos referindo àqueles jurados de boa-fé, homens de bem, que estão na busca de ter um sono tranquilo ao lado de sua família quando o julgando se findar. Sobre ser um cidadão idôneo para ser jurado, Lenio Luiz Streck explica:
O que Lenio Streck quis dizer é que, não todos[6], mas muitos magistrados não exercem com a devida responsabilidade o recrutamento de jurados, porquanto muitas vezes indicações ou um simples sorteio já se faz suficiente para capacitar aquele cidadão a ser jurado. Por fim, se percebe que estruturas sociais de diferentes comunidades engendrarão corpos de jurados de acordo com os padrões internalizados de cada uma. Tal circunstância, sem sombra de dúvidas, acarreta significativas consequências nos resultados dos julgamentos.[7] Para finalizar, e apenas com a intenção de reinstaurar um debate que já perdura desde o século passado, registra-se dois exemplos que seguem a fim de demonstrar quão difícil é a resolução desta celeuma: mais uma patologia do rito do Tribunal do Júri. Caso “a” numa cidade pequena, por exemplo, uma região pertencente ao interior de um estado nacional: um homem de apelido X vai a júri popular pelo homicídio de um outro homem usuário de drogas pelo fato de estar devendo em razão de dívida de drogas, cuja comunidade é controlada pelo tráfico de drogas. É notório que em cidades menores quase todos os cidadãos se conhecem, e os rostos dos jurados ficam exposto a toda comunidade enquanto juízes. Logo, essa comunidade, da qual serão sorteados 7 cidadãos, terão uma predisposição absoluta em absolver o acusado com receio de represálias por supostos traficantes, mesmo não tendo certeza de que o acusado é ou não traficante. Por óbvio, antes de qualquer prova apresentada, já estão por decidir por uma futura absolvição com o intuito de resguardarem suas vidas e de seus familiares, assim, pelos motivos mais conflitantes imagináveis. Caso “b” numa cidade capital de um estado nacional: um homem de apelido X, usuário de drogas, morador de rua, e com antecedentes criminais, inclusive de homicídio, vai a júri popular pelo homicídio de um homem usuário de drogas pelo fato deste estar devendo em razão de dívida de drogas, cuja comunidade é controlada pelo tráfico de drogas. O júri será realizado na capital, com jurados em sua maioria pertencente a classes sociais de condições econômicas superiores a do acusado, os quais estão enfastiados com a criminalidade na cidade. Neste cenário não temos pessoas que se conhecem devido ao tamanho da cidade capital e diante do grande número de habitantes. Continuando, imaginemos um processo duvidoso, sem provas robustas e com apenas indícios. Qual resultado será o mais provável neste caso? Pode-se ainda trazer um terceiro caso: uma mãe ateia que mora numa cidade predominantemente católica, que é acusada de aborto no oitavo mês de gestação. Será julgada por um conselho de sentença compostos por cidadãos seguidores convictos e fervorosamente religiosos da Igreja Y, sem provas robustas de seu estado mental ou algum problema psíquico, apenas indícios de que existe um problema de saúde. Qual é a probabilidade de ser julgada culpada do crime de aborto? Num ponto de vista “humano” é notório que quando se acredita com intensidade numa coisa, tem-se um ponto cego para aquele ponto antagônico daquela coisa, por se considerar aquele segundo ponto indubitavelmente infactível. Complexo, portanto, é a tal da representatividade perante os Tribunais do Júri Brasileiro, sistema esse que destoa de todo sistema jurídico existente – “um ponto fora da curva” -, sob a justificativa rasa de existir uma Democracia necessária e transparente. Afinal, a Democracia em sua mais “pura essência” [8]é real no Estado Democrático de Direito? Rousseau[9]em 1762 mencionou que uma verdadeira democracia jamais existiria por requerer muitas condições difíceis de serem reunidas, e ainda que “o povo inglês pensa ser livre, mas está completamente iludido; apenas o é durante a eleição dos membros do Parlamento; tão logo estejam estes eleitos, é de novo escravo, não é nada. Pelo uso que faz da liberdade, nos curtos momentos em que lhe é dado desfrutá-la, bem merece perdê-la.” Existe diferença daquela, para a atual época? Se sim, quais? Se não, por qual razão? Sugere-se aqui uma apropriada e inquieta reflexão. Conclui-se o presente, distante de esgotar o tema, com mais uma patologia envolvente do Tribunal do Júri, que é a representatividade social do jurado - ponto de equilíbrio complexo de atingir: uma missão que seria alcançada num Estado perfeito/ideal, o qual ainda estamos longínquos, em que a real Democracia seria palpável e reverenciada. Carla Juliana Tortato Mestranda em Direito pela UNINTER Especialista em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional Advogada Criminal. [1]FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 4. ed., São Paulo: RT, 2014. p. 531. [2]Art. 436 do Código de Processo Penal: O serviço do júri é obrigatório. O alistamento compreenderá os cidadãos maiores de 18 (dezoito) anos de notória idoneidade. [3]RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2015.p.89. [4]RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2015.p.43. [5]STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. 4. ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2001. p. 100-101. [6]E essa que subscreve teve a satisfação de conhecer aqueles juízes que são juízes puramente pela sua vocação. [7]STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. 4. ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2001. p. 101. [8]Às vezes um pleonasmo pode ser útil. [9]ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. XV. 1762. Acesso em 10 de junho de 2018. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv00014a.pdf Comments are closed.
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