O assunto que tratarei no presente escrito é um tanto quanto delicado, então avisos são importantes. Não se está fazendo apologia ao tráfico de drogas, aos traficantes ou qualquer crime, mas sim, uma constatação que ao longo dos meses se pode perceber, bem como uma reflexão do cenário atual.
Muito dos artigos escritos que versam, especialmente na área criminal, recebem críticas, e muitas das vezes comentários no sentido de que: “bandido bom, é bandido morto”; “Ta com dó, leva para casa”, dentre outros comentários do gênero que revelam a perversidade humana. Ocorre que, durante algum tempo estivemos avaliando o comportamento da população em geral, em especial no tocante as reações com relação aos seriados, novelas ou filmes, e é neste aspecto que o presente artigo se sustenta. O romantismo em torno das telas é algo inegável, e por certo possui uma influência demasiadamente grande na reação das pessoas, conduzindo as pessoas a odiarem, amarem, ou até mesmo idolatrarem alguns personagens. Retorno neste ponto, ao ano de 2007, ano de lançamento do filme “Tropa de Elite”, tal filme traz como personagem principal o “Capitão Nascimento” do BOPE na Cidade do Rio de Janeiro, interpretado por Vagner Moura. Dentre diversas cenas, há cenas de tortura, morte, tiros, bem como os famosos bordões que até os dias atuais perduram no vocabulário de algumas pessoas e nos “memes” da internet. Verifica-se que há época, o Capitão Nascimento, personagem do filme, foi um dos mais exaltados pela população em geral, sendo que a maior parte das pessoas torcia a favor do Capitão Nascimento, e, contra o “dono do morro”, personagem chamado de “Baiano”. Já em 2015, Vagner Moura retorna, mas desta vez em um seriado, denominado “NARCOS”, no qual interpretava o famoso traficante Pablo Emílio Escobar da Colômbia. Em que pese a maior parte da população saber que ao final Pablo Escobar seria morto pelas forças do Estado, houve uma certa torcida pelo personagem, que sempre conseguia escapar e se esconder. Neste tear, bordões foram criados e repetidos por quase todos os espectadores, tal qual a frase proferida: “Plata o Plomo”, que em sua tradução significa dinheiro ou chumbo. Mais recentemente, tivemos a novela denominada “A Força do Querer”, nesta, vários personagens se destacaram de ambos os lados, sendo que dentre outros atores, Juliana Paes interpretou o papel da “Bibi perigosa”, esposa de um traficante chamado “Rubinho” interpretado por Emilio Dantas, por sua vez Paolla Oliveira interpretou o papel de uma policial chamada “Jeiza”, e, Jonathan Azevedo interpretou a pessoa chamada Sabiá, que também era um traficante. O que mais chamou a atenção foi o fenômeno ao final da novela, com a famosa hashtag: #sabiá; #vaisabiá, dentre outras. O drama reportado nesta novela, foi que as forças policiais tentavam capturar “Rubinho” e os demais traficantes da região, bem como relatava a vida de “Bibi perigosa”. Cabe destacar que houve uma briga entre “Rubinho” e Sabiá” durante os episódios. Nesta novela, os telespectadores adotaram para si os personagens preferidos, dentre eles a “Bibi Perigosa”, e, principalmente o personagem “Sabiá”. Ao final da novela, em um confronto entre “Rubinho” e “Sabiá”, houve um fenômeno nas redes sociais, na qual diversos comentários iam no sentido da torcida pelo traficante “Sabiá” contra o traficante “Rubinho”, bem como alguns comentários entristecidos que “Sabiá” foi preso ao final, e assim surgiram as hashtags já mencionadas. Desta forma, partimos para o que interessa. Percebam que a maior parte da população, quando na vida real, crucifica alguns policiais pela tortura, mortes, dentre outros crimes cometidos por alguns policiais, especialmente quando há transmissão pela mídia. No mesmo sentido, há a crucificação dos traficantes que são mostrados na televisão, sendo que muitos desejam que estes deixem de viver, dentre outros anseios. Aí que está o antagonismo, como pode a mesma pessoa que torcia para o “Sabiá” e para “Pablo Escobar”, querer a morte do traficante? Como pode ela querer a morte do policial que mata e tortura, sendo que torceu pelo “Capitão Nascimento”? Por óbvio que a pergunta pode ser respondida com o argumento do romantismo empregado nas novelas, seriados e filmes, mas há algo mais, senão vejamos. Em ambos os casos apresentados, há algo em comum, o espectador “conhece” a vida do outro, seja ele policial, seja ele traficante, “conhece” os desafios por eles enfrentados, seja nas suas relações pessoais, seja na relação de trabalho, seja no crime. “Conhece” também seus filhos, pais, mães, e os sentimentos encarados por cada personagem. Tal conhecimento, abre as portas para a identificação da vida do outro, seja pelos mesmos problemas enfrentados, seja pelo afeto a família, dentre outros sentimentos internos que fazem com que aquele espectador passe a “torcer” pelo personagem. Trata-se de um fenômeno complexo dentro do ser, algo que talvez não possa ser explicado, mas levam o telespectador a torcer por aquele personagem, como exemplo muitos que assistiram a referida novela quiçá queriam que “Sabiá” fosse detido, mesmo sendo ele um traficante. Nesta senda, abre-se espaço para o espetáculo midiático que se forma em torno do direito penal, uma vez que se o outro é desconhecido para nós, há a formulação da mídia/governo de um inimigo que precisar ser combatido e aniquilado pelo Estado, e, a aceitação de que aquele inimigo, não merece garantias fundamentais, ou qualquer outro direito. Assim, se a maior parte da população se encontra distanciada da vida dos policiais, traficantes, seus familiares, a identificação com os mesmos não é possível, transformando-os facilmente em inimigos, estrangeiros, ou hostis alienígenas que precisam ser combatidos conforme menciona ZAFFARONI:
Isso se torna extremamente perigoso, vez que, se o judiciário se curva a tal pressão, acaba por se tornar um sistema totalmente autoritário, o qual não julga mais pelo direito ou pela lei, mas sim pela pressão imposta, tomando para si a função de justiceiro do “povo”. Neste ponto, CASARA é esclarecedor quando menciona:
A grande problemática da adoção de tal postura, é que se adotamos o outro como inimigo, certamente ele não será nosso “amigo”, e, consequentemente, pouco lhe importará as consequências dos seus atos, ou amor a vida alheia, ou seja, quanto mais violência for empregada contra o inimigo, a resposta será ainda mais violenta, e neste fogo cruzado entre mocinhos e bandidos[3], estamos nós sofrendo as consequências. Não se quer dizer que devemos idolatrar os traficantes, mas sim que se está colocando pessoas com o status de inimigo simplesmente por desconhece-las, aceitando o romantismo (se é que possa ser chamado assim) empregado pela mídia, em que aquelas pessoas devem ser aniquiladas, colocando juízes, promotores, advogados e réus como personagens de uma novela, mas esta é a vida real e em nada se assemelha com a dramaturgia das novelas. Perceba ainda, que quando se trata da aniquilação de direitos de pessoas próximas a nós, a visão ou tratamento empregado são diferentes, sendo que ainda prevalece o entendimento massificado de que o direito penal é para o outro, ou seja, para àquele que não conhecemos. Um dos inúmeros problemas da adoção de tal visão, é que se somos desconhecidos para o outro, então somos inimigos, e, por via de regra estaremos destituídos de qualquer direito ou garantia, bem como o Estado está com uma carta branca para rasgar a Constituição da República e todos os seus princípios, nos colocando sob a mira mais violenta do aparato estatal, qual seja o direito penal, retornando assim, ao estado natural de Hobbes, ou seja, em um eterno estado de guerra de todos contra todos. Por derradeiro, não esqueçamos que não vivemos em um seriado, em uma novela ou filme para escolhermos para quem torcer, quem deve morrer ou quem sãos os heróis, porque para o direito penal, se hoje você é o “Capitão Nascimento”, amanhã poderá ser o menino que foi sufocado dentro do “Saco Plástico”, e se você for um inimigo do Estado, ninguém se importará, pois foi somente um dano colateral de uma política de inimigo de guerra às drogas fracassada. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminalista Formado em Direito pela Universidade Positivo Pós-graduado em Direito Contemporâneo - Com Ênfase em Direito Público - Curso Jurídico Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (AbdConst). Mestrando em Direito na Uninter [1] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O Inimigo do Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. 3ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Revan. 2015, p. 22 [2] CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 12. [3] Cf. CASARA: Em apertada síntese, o fato é descontextualizado, redefinido, adquire tons sensacionalistas e passa a ser apresentado, em uma perspectiva maniqueísta, como uma luta entre o bem e o mal, entre os mocinhos e os bandidos. O caso penal passa a ser tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser consumida. Ibidem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O Inimigo do Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. 3ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Revan. 2015. Comments are closed.
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