![]() Débora Góes e Gilson dos Santos no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Se o delito acaba por destruir pontes nas relações humanas, distanciando o contato entre vítima, acusado e sociedade, a justiça restaurativa se mostra apta a reconstruí-las, de modo que a harmonia e o convívio social possam novamente circular pelas pontes do diálogo e da paz''. Por Débora Góes e Gilson dos Santos João e Pedro são vizinhos há mais de 10 anos, e embora não fossem de se visitar mantinham uma relação de respeito mútuo.
Seus filhos pequenos costumavam jogar futebol na rua, empinar pipas ou ainda brincar de “esconde-esconde”. João era carpinteiro, trabalhava muito para sustentar sua família e nunca havia se envolvido em qualquer situação que o tivesse levado para a delegacia. Pedro trabalhava em um posto de combustíveis e fazia escalas variadas, o que as vezes o impedia de estar em casa no fim de semana. Suas esposas as vezes se encontravam na igreja, ou nas reuniões da escola para saber do andamento da aprendizagem das crianças. Certo dia as crianças brincavam na rua quando ocorreu um desentendimento entre elas. Marcelinho de 08 anos, filho de João, empurrou Diogo de 07 anos e este ao cair, bateu a cabeça vindo a ter um pequeno corte. Quando Diogo chegou em casa com um sangramento, sua mãe ficou desesperada com o ocorrido e tratou de ligar para o marido que veio às pressas para casa. No momento em que estava se dirigindo para sua residência, Pedro ficara uma pilha de nervos! Onde já se viu uma criança machucar a outro deste jeito? Seu sangue fervia. Ao ver seu filho, já chorando muito e soluçando devido ao susto e à violência que sofrera, a ira de Pedro se potencializou e sem enxergar mais nada foi tirar satisfação com os vizinhos. Lá chegando encontrou João que acabava de chegar do trabalho e já foi logo dizendo: “Você trate de educar esse seu bandidinho, seu vagabundo!”. A resposta de João foi imediata: “Ei, você me respeite! Vagabundo não!”. Pedro foi para cima de João e lhe desferiu diversos socos, alguns chutes nas costelas. Quando Marcelinho se aproximou para socorrer o pai também foi agredido e ficou com o nariz sangrado. Claro que tudo isso acabou indo parar na delegacia! Boletim de ocorrência, medida protetiva, proibição de se aproximarem um do outro em menos de 200 metros. Um verdadeiro climão, um ranço, um ódio desmedido entre as famílias. Processos judiciais em andamento, um pela lesão corporal contra pai e filho, outro responsabilizando os pais de Marcelinho pela agressão sofrida por Diogo e ainda, o pedido de indenização pelo dano moral sofrido por João que fora espancado em frente da sua casa. Alguns meses se passaram e ocorreu a primeira audiência, quando a conciliadora arguiu se haveria alguma possibilidade de acordo, apenas o advogado de João manifestou-se e disse que preferiam que o processo seguisse para instrução e julgamento. Mais alguns meses se passaram e Pedro que havia espancado pai e filho e que nos primeiros dias vangloriava-se de ter mostrado ao vizinho que com a família dele ninguém se metia, começou a ter momento de angústia! Já não conseguia dormir mais o “sono dos justos”, sentia-se mal, percebia que havia sido explosivo, exagerado, e principalmente que errara e muito ao ter batido em uma criança. A esposa de Pedro tinha a mesma sensação e agora, apesar de dizer que qualquer um no seu lugar ficaria uma fera, passava a tentar convencer seu esposo a buscar um entendimento com o vizinho. As crianças que antes brincavam juntas apesar de se ressentirem do ocorrido, sentiam falta de suas aventuras. E na verdade, os pequenos já tinham se perdoado e até conversavam algumas vezes na escola. Já João sentia seu estômago revirar quando lembrava da agressão que sofrera. Em todos os seus anos de vida, nunca tinha se sentido tão humilhado, e quando lembrava que seu filho também havia sido agredido, seu ódio aumentava ainda mais. Não fosse o medo de perder sua liberdade e de ficar longe de sua família, já teria posto em ação o seu desejo de matar o vizinho, de “passar-lhe fogo”. Pedro era um homem religioso, frequentava a igreja sempre que podia, mas quando ouvia o pastor falar sobre o amor de Jesus por todos, inclusive por aqueles que são violentos, que roubam, que maldizem, ele sentia que não merecia esse amor que era pregado. Teve que lutar muito contra seu ego, precisou reunir muitas forças para um dia buscar conversar com seu advogado para quem perguntou: Doutor, quando eu procurei o senhor para me defender nestes processos eu realmente acreditava que estava certo, eu tinha certeza de que tinha feito a coisa certa e defendido minha família. Mas hoje… hoje eu estou em dúvida. Olha, seu Pedro, disse o advogado, o processo está em andamento e nos próximos meses pode ser que o juiz já sentencie. Porém, se o senhor quiser, e principalmente, se a outra parte aceitar, há uma possibilidade a buscarmos o que hoje se chama de justiça restaurativa. Como funciona isso, Doutor? Perguntou Pedro. É assim: na justiça restaurativa é aberta uma possibilidade de diálogo entre as partes, uma conversa para tentar buscar um entendimento. Lá ninguém é obrigado a aceitar acordo nenhum, mas o objetivo não é o mesmo que o rumo da justiça comum, na verdade esse tipo de tratativa poderia ter sido usada lá no começo do processo, mas eu lembro que o senhor estava muito bravo e que o seu vizinho estava afim de lhe colocar na cadeia. Pois é…mas doutor e se ele não aceitar ter essa conversa? É uma escolha dele, ninguém é obrigado. Mas me deixa falar uma coisa para o senhor: eu não conheço o seu vizinho muito bem, mas já ouvi falar dele. Soube que é um baita carpinteiro, um homem de muito trabalho e bastante correto em tudo. Além do mais, vocês não tinham uma boa relação? Doutor, a gente não era exatamente amigo, mas já chegamos a tomar uma cerveja juntos, bater papo e tal. Sabe, o que me deixa agoniado é o fato de eu ter batido no menino dele. Isso não me deixa dormir! Vamos fazer assim, eu pedirei ao juiz da possibilidade de buscarmos uma saída através da justiça restaurativa, e se for autorizado eu entro em contato com o senhor. Passados alguns dias o encontro entre as partes foi marcado. João em princípio relutou muito, afinal ele tinha sido agredido, seu filho foi quem recebeu um soco de um homem adulto. Tudo aquilo havia sido um terror para sua família. Mas, ao final João aceitou a proposta de uma tentativa de conciliação, principalmente quando lhe foi explicado que todos teriam o seu momento para falar, para expor a sua dor e que talvez aquele fosse um momento de uma mudança na vida de todos. Ao chegarem na sala em que ocorreria a audiência, todos notaram que não estava presente o magistrado, nem o promotor de justiça. Havia somente uma senhorinha que aparentava ter em torno de sessenta anos e que começou os trabalhos dizendo: - Hoje estamos reunidos não para discutir quem está certo e quem está errado, hoje os senhores estão aqui, não para que um aponte o dedo para outro, mas sim com o objetivo de tentar entender onde foi que as coisas saíram dos trilhos. Olha, eu pude ver pelo processo que vocês são vizinhos há muitos anos! Olha, os vizinhos nem sempre são nossos amigos, nem sempre são pessoas de dentro de nossa casa, e nem sempre nos estendem a mão quando mais precisamos. Mas os vizinhos não precisam ser nossos inimigos. Olha, seu João e seu Pedro eu na condição de conciliadora não posso influenciar o resultado deste encontro, mas como vocês aceitaram estar aqui eu leio como um sinal de boa vontade! Vamos ouvir o que cada um tem a falar para o outro. Coloquem para fora o que vocês não puderam falar ainda. E foi, então, que João iniciou sua fala: - Naquele dia eu cheguei muito cansado do meu trabalho, tinha sido um dia muito difícil porque umas coisas deram errado na obra. E quando a minha esposa contou que as crianças tinham brigado eu tratei de chamar a atenção do Marcelinho e disse a ele que os amiguinhos não podem andar brigando, que é muito feio qualquer um, criança ou adulto se desrespeitar. - Disse, ainda, que iria tomar um banho e depois de jantar iria lá me desculpar com o vizinho, o seu Pedro. Mas não deu tempo! O seu Pedro chegou berrando no portão da minha casa, me xingando de todo tipo de coisa, me ofendendo e dizendo que eu devia educar o meu filho. - Na verdade meu filho é muito educado, não é uma criança do mal. Mas é uma criança… naquele dia eles brigaram, meu filho errou em ter empurrado o Dioguinho… errou mesmo. Mas veja, no outro dia a gente poderia ter feito as crianças se entenderem, poderia ter sido a oportunidade de ensinar aos nosso pequenininhos sobre perdão, sobre amizade. Mas o que foi que a gente fez? Nós brigamos, nós saímos no soco… e que exemplo demos a eles? Então, chegou o momento de Pedro falar: - Quando a minha esposa me ligou e contou o que havia acontecido com o nosso filho, eu perdi a cabeça! Confesso que saí com tanta pressa que quase bati o carro. Meu filho, minha esposa, meu pais e irmãos, são tudo para mim, eu dou minha vida por eles e se acontece alguma coisa de ruim com algum deles eu viro bicho, me dói demais saber que estão sofrendo. Naquele dia eu achei que estava sendo pai, que estava protegendo minha família e reagindo a uma agressão que meu filho não merecia ter sofrido. Quando eu fui no portão da sua casa e cheguei gritando, xingando, ali não era o Pedro que todo mundo conhece! Eu estava pronto para matar naquela hora, eu não respondia mais por mim. E, como eu disse, achava que estava protegendo o meu filho, só que …. desculpa… (João segura o choro, respira fundo) e continua: Já há algum tempo que para proteger o meu filho eu fiz algo de muito errado, aliás, eu fui um covarde! Eu não tinha o direito de agredir ninguém, muito menos o seu filho! Confesso para vocês que eu não sei se a gente vai sair daqui com um entendimento, mas eu tinha que falar para vocês que me sinto um lixo por ter batido nesta criança, eu por muitas vezes acordo de madrugada e lembro daquela cena do Marcelinho tentando acudir o João e eu batendo neles dois. E João desaba! O choro é compulsivo, a dor de um homem que pede ajuda, que pede perdão, que tem uma dívida com sua consciência. Mas quem achava que aquele seria o ápice da conciliação não imaginava o que Marcelinho tinha a dizer: - Tia, eu posso falar também? - Claro, filhinho! Todo mundo aqui pode falar! - Obrigado, tia! Eu queria dizer para vocês que naquele dia todo mundo errou! Eu fiquei bravo porque o Diogo fez um gol em mim e depois ficou tirando sarro! Aí eu o empurrei. Mas eu não empurrei para que ele batesse a cabeça e sangrasse, não… era só um momento de raiva que eu senti, mas não imaginava que iria machucar daquele jeito. - Aí o Diogo correu para casa sangrando e eu fui atrás, só que a mãe dele ficou muito brava comigo e nem me deixou falar com ele, pedir desculpa, nada…. Eu entendo que ela tenha ficado irritada, é o filho dela. - Mas quando eu vi o meu pai e o seu Pedro brigando, dando socos e chutes um no outro eu me desesperei e pensei: “nossa, tudo isso é culpa minha!”. Aí eu vi meu pai cair com um chute que levou no estômago e o seu João tinha um olhar de quem iria matar o meu paizinho… eu não podia deixar isso acontecer, então entrei no meio e levei um socão no nariz. O choro agora toma conta da sala, inclusive da conciliadora. E Marcelinho continua: - Mas para mim o pior não foi isso! O pior de tudo foi que tanto eu como o Diogo não podemos mais brincar juntos. Quando a gente se encontra na escola até dá vontade de pedir desculpas para ele. Eu queria que tudo voltasse a ser como antes: futebol na rua, brincadeiras no recreio… A conciliadora, agora já refeita da onda de sentimentos que tomou conta do ambiente, tenta direcionar as possibilidades: Senhores, como eu já disse, vocês não são obrigados a aceitar um entendimento aqui, se preferirem, o processo segue. Porém, como há um caso de lesão corporal leve sofrida pelo Sr. João e uma agressão a menor de idade, o processo criminal pode levar até mesmo à prisão do Sr. Pedro. Além disso, há também o pedido da indenização por danos morais. Neste momento, o advogado de Pedro se manifesta: - Gente, eu também não posso influenciar no andamento da audiência, mas se me permite, Sra. Conciliadora, eu só quero perguntar ao Sr. João se ele realmente gostaria que o seu vizinho fosse preso. Olha, o sistema penitenciário está lotado, a cadeia é um lugar horrível e uma fábrica de pessoas que cometem ainda mais crimes. Será que vale a pena? Olha, esse homem errou e errou feio com o senhor, mas ele não é um bandido, peço que o senhor pense bem nisso…. Então, após alguns minutos de silêncio, João manifesta sua vontade: - Olha, na vida da gente não dá para apagar os erros como se fosse uma borracha! As coisas não são simplesmente um pedido de desculpas e … e tudo bem.. não é assim. - Só que essa história já fez todos nós ficarmos de mal, fez todo mundo sofrer.. e insistir nisso vai ser ficar revivendo aquele dia pelo resto de nossas vidas. Por isso, eu conversei aqui com meu advogado e estou disposto a fazer um acordo para que esse processo pare por aqui. Na verdade, eu tenho muita saudade de ver as crianças brincando juntas. - João, não posso prometer ao senhor que a gente vai voltar a ter o mesmo relacionamento que tinha, porque a vida não é um conto de fadas. Mas como eu vou ensinar para o meu filho sobre perdão se eu não der o primeiro passo? Por isso, da minha parte termina tudo aqui, desde que o senhor também retire a queixa que fez contra nós por conta do que aconteceu com o Diogo. E essa pequena historinha tenta demonstrar como funciona a justiça restaurativa! Uma busca pelo entendimento das partes com ênfase não em punir, nem em buscar indenizações, mas com foco na paz entre todos. A justiça restaurativa é uma via que busca fazer com que a normalidade das relações seja trazida de volta. Tem como atores as pessoas, principalmente as vítimas que costumam nos processos serem deixadas de lado, serem ouvidas somente na fase investigatória, ou em um eventual processo e até mesmo, em algum júri. Claro que nem sempre é possível de ser aplicada, claro que nos casos mais graves nem sempre se pode imaginar uma mãe que perdeu o seu filho assassinado por conta de uma briga fútil possa se reconciliar com o assassino. Isso requer também uma certa elevação. Mas é um caminho! É melhor do que apenas punir por punir. É um caminho que evita encarcerar os indesejáveis e punir também as vítimas que acabam nem sendo parte do processo que trata do que aconteceu com elas. Se o delito acaba por destruir pontes nas relações humanas, distanciando o contato entre vítima, acusado e sociedade, a justiça restaurativa se mostra apta a reconstruí-las, de modo que a harmonia e o convívio social possam novamente circular pelas pontes do diálogo e da paz. DÉBORA GÓES Acadêmica do Curso de Direito Universidade do Contestado (UnC) - 3ª fase, Campus Canoinhas, email: [email protected] GILSON DOS SANTOS Graduação em Sistemas de Informação pela UnC Canoinhas em 2005 Pós Graduado em Novas Tecnologias Educacionais pela Faculdade de Administração, Ciências, Educação e Letras – FACEL Pós Graduado no MBA Gestão de Negócios Internacionais pela Associação Brasileira de Comércio Exterior - ABRACOMEX Servidor Público do Município de Canoinhas – Desenvolvendo atividades na área do Serviço Militar Cursando a 3ª Fase do Curso de Direito na UnC Campus Canoinhas
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |