Na década de 20 do século passado os EUA vivenciaram um “experimento” sociológico na foram de uma política criminal de proibição de uma substância atuante sobre o sistema nervoso central – o álcool.
Quais foram os resultados concretos desta política? Que lições se podem colher desta experiência, com o fim de orientar uma política de drogas redutora do alto grau de mortalidade hoje observado como resultado das medidas repressivas organizadas em torno da noção de “guerra às drogas”? Em que pese essas questões já terem sido amplamente discutidas, acredito ser útil revisitá-las, em especial devido ao fato de estarmos vivendo no Brasil um momento em que o assunto da política de drogas volta a ocupar um lugar central na pauta do governo[1]. Com o propósito de manter a abordagem dentro do escopo de um artigo com espaço limitado, reduzirei as muitas conclusões relevantes possíveis acerca da experiência da Lei Seca norte-americana a três percepções: 1. A proibição do consumo de substâncias que afetam o sistema nervoso central não é medida idônea para eliminar o seu uso; 2. A proibição do consumo destas substâncias traz efeitos nefastos ao sistema de saúde pública, potencialmente maiores que o próprio uso em si, ao relegarem a produção a organizações que atuam de modo clandestino; 3. A proibição de consumo não reduz o número de práticas delitivas, pelo contrário, origina e acentua estas, com ênfase à criação de um mercado gerido por organizações que obtém um poder significativo e que tendem a competir violentamente com outras pelo espaço de produção e distribuição. De forma bem direta abordarei os primeiros dois pontos. Pretendo me ater um pouco mais ao terceiro e a lógica que ele nos ensina com respeito ao efeito de políticas criminais incoerentes. Tratando da primeira conclusão, é preciso partir da percepção de que a humanidade convive há muitos séculos com o uso de substâncias capazes de alterar o funcionamento regular do SNC (Sistema Nervoso Central)[2]. Não é preciso uma pesquisa muita extensa para notar que, desde as civilizações mais antigas de que se tem registro, os humanos recorrem a estas substâncias pelos mais diversos motivos, inclusive com fins recreativos. Também é simples concluir que a tentativa de imposição de abstinência ao usufruto de “prazeres” não produz em geral os resultados pretendidos. É cada vez mais comum achados da neurociência demonstrarem que a abstinência traz efeitos prejudiciais e potencialmente criadores de novas recaídas, para pessoas viciadas, do que se pensava décadas atrás[3]. Assim, não é de admirar que a Lei Seca não tenha efetivamente alcançado o fim moralizante de eliminar o consumo de álcool. Pelo contrário, foi em resultado de sua política que vieram a registro casos inéditos de introdução endovenosa desta substância. Partindo para segunda conclusão observou-se na experiência norte-americana que, já que o consumo não deixou de existir, o que se alterou foi a forma de produção e distribuição. Ao serem realizadas por pessoas e grupos em situação de ilegalidade, não se tinha mais qualquer controle de qualidade, qualquer certificação de quais ingredientes eram utilizados ou do modo como eram armazenados. Diversos estudos demonstraram que o impacto negativo no sistema público de saúde foi grave. Atendia-se um número cada vez maior de pessoas com doenças sérias, relacionadas ao consumo de algo que nem mesmo se sabia exatamente o que era. Assim, uma política criminal que, no discurso, estaria voltada à proteção do bem jurídico saúde pública (para não ter de se valer da noção de que a lei protegia a moral e os bons costumes), operava na realidade um “tiro no pé” [4]. Como última conclusão a que se quer dar atenção neste momento temos a percepção de que a proibição do consumo operou de forma a criar uma poderosa organização criminosa, calcada em duas regras mercadológicas básicas: relação de oferta/demanda e competição de mercado. Em primeiro lugar a proibição criou uma demanda gigante já que, conforme observamos, as pessoas continuavam desejando consumir aquilo que foi proibido. Num segundo momento, esta demanda passou a ser suprida por organizações estruturadas à margem da legalidade, gerando um espaço de competição de mercado regido, não por normas fiscais/tributárias, mas pela estratégia de guerra. Como resultado natural ocorre um aumento do comércio de armas ilegais, um aumento da corrupção de agentes públicos em diversas esferas e uma mortandade típica de cenários bélicos. A lógica por trás destas consequências continua extremamente atual. É interessante notar um caso recente ocorrido no Brasil que ilustra isso. Quando os noticiários reproduziram a conversa entre o então senador Demóstenes Torres com o “bicheiro” Carlinhos Cachoeira, o teor da tratativa revelava justamente o resultado de uma legislação que criminaliza uma conduta que está fortemente alicerçada no convívio social. Na conversa, Carlinhos cobra de Demóstenes a aprovação de uma lei que irá criminalizar o jogo do bicho. Por quê? Simples – para aqueles que possuem o poder necessário para não se sentirem intimidados pelo sistema penal é interessante que aquilo que eles comercializam seja proibido. Isso elimina parte da concorrência, eleva o preço dos produtos pela lógica risco-demanda-valor, concentra o mercado nas mãos de uma minoria (efeito criminógeno de formação de organizações voltadas a prática de vários delitos – máfia), permite uma redução de custos na produção pela lógica de ausência de controle de qualidade (operada pela escassez e pela não regulamentação) e cria oportunidades paralelas de negócios ilícitos (contrabando de armamento por exemplo). Trazendo estas conclusões para a política de drogas, não há uma que não se verifique de modo claro em toda a história recente de “combate” ou “guerra às drogas”. Especificamente no Brasil os resultados têm sido desastrosos. A larga maioria dos que hoje jazem nas jaulas de aniquilamento prisional lá estão devido a prática de condutas relacionadas com a política de repressão às drogas. A pergunta que precisará ser respondida pelos próximos capítulos da história de nossos jogos de poder (em todas as esferas) é: queremos perpetuar um sistema criminógeno e homicida, pautado pela guerra concorrencial de produção e distribuição não regulamentada de determinadas substâncias, ou tentaremos algo diferente? Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal, Processual Penal e Criminologia Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Referências: [1] Faço aqui o registro de que diversas reflexões descritas neste texto me foram trazidas pelos professores Flavio Bortollozi e Bruno Shimizu. [2] Adere-se a esta forma de classificação das substâncias já que nomeá-las “entorpecentes” é um erro técnico grave – muitas não “entorpecem”, mas ativam ou excitam o SNC. [3] Essa é, por exemplo, a conclusão do psiquiatra Lance Dodes, ligado a Escola de Medicina de Harvard, apontada em seu livro “The Sober Truth: Debunking the Bad Science Behind 12-Step Programs and the Rehab Industry”, em que critica muitos dos métodos das clínicas de recuperação de alcoólatras que “apostam” numa drástica eliminação do consumo e na proibição do “primeiro gole” [4] Compreende-se que se faz nesta frase uma análise anacrônica da política da lei seca, já que de fato ela não estava voltada a proteção do suposto bem jurídico "saúde pública", mas expressava um movimento moralizante e, em certa medida, uma forma de xenofobia em relação aos novos imigrantes. Porém, a análise é feita desta forma com o fim de revelar a falácia que é tentar legitimar uma política de proibição de substâncias com base na alegada proteção da saúde pública. Comments are closed.
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