Artigo da Colunista Carla Tortato no sala de aula criminal, elaborando uma intersecção direito penal e arte, vale a leitura! ''Importante lembrarmos que nunca podemos generalizar as situações que envolvem o Direito Penal, pois há singularidade em cada caso. No presente momento me refiro a existência de pessoas dentro do sistema carcerário que estão recebendo um remédio equivocado por parte do Estado: a privação de todos os seus direitos e garantias fundamentais''. Por Carla Tortato Quem de nós nunca teve em algum momento da vida, ainda que único, pensamentos repugnantes? Quem de nós nunca teve pensamentos moralmente inaceitáveis se fossemos desnudados perante a impetuosa sociedade? Para reconhecermos isso é preciso o mais puro autoconhecimento: a verdade com si próprio. Nos olharmos de forma franca é uma das coisas mais difíceis que podemos fazer dentro das nossas próprias narrativas, porém possível.
A escolha da sua verdade machuca. Abre as feridas já cicatrizadas e lhe coloca no seu lugar. Esse lugar é diferente do outro, mas não é superior e nem inferior a alguém. É o caminho para sermos mais humanos em virtude do nosso próprio crescimento. Assim, potencializamos a nossa capacidade de ser empata, pois percebemos que nas nossas profundezas somos seres proprietários mais de defeitos do que de qualidades. Ao descobrir isso, percebemos uma das residências da felicidade. Portanto, somos em nossa essência seres humanos imperfeitos. A compreensão disso nos possibilita enxergar o outro de igual maneira, bem como enxergar o outro com compaixão por se tratar de uma vida de igual valor. Isso nos auxilia no perdão ao outro e, principalmente, com nós mesmos: um ato de valor moral digno de infinita admiração. Pode parecer algo difícil na prática ou ideológico demais, mas se praticado diariamente, se torna um habito, como tudo na vida. Acreditem, ainda não temos consciência do todo benéfico que podemos ser para este planeta e tudo que habita nele, muito menos compreendemos o poder mental que possuímos. Isso é a mais bela e ao mesmo tempo, dura liberdade, a qual pode ser notada nas profundezas humanas da Arte e do Cárcere. O Direito Penal pode se encontrar com a Arte no momento em que neles podemos observar além dos cinco sentidos, o sentimento de empatia, pois para sermos empatas temos que possuir a liberdade incorruptível com nós mesmos. Essa liberdade vai muito além das amarras do sistema legal. Portanto, a empatia pode ser o sexto elemento ou sexto sentido (sentir o que está fora de si), ou seja, a empatia de se colocar no lugar do outro no Direito Penal, sem interesse de punição e julgamento, e sim para conseguirmos enxergar a outra narrativa em sua verdade. Não a minha, não a sua, nem a verdade do processo, mas sim a verdade da narrativa dos seres humanos que habitam ou habitaram naquele caso penal. Permite-se a empatia do ser humano de SER humano. Não apenas julgar por julgar, punir por que alguém tem que ser punido, punir com seletividade, julgar por ser um juiz da internet, punir por você ser quem é... e por aí vai ladeira abaixo. Escrevo isso porque o ser humano em ser humano, mesmo que não saiba ou não reconheça, é capaz de sentir os mais antagônicos e complexos sentimentos. Quem fala que “nunca sentiria isso”, está sendo um ser humano belo[1]? Se pudéssemos ler os pensamentos do outro, como seria a nossa sociedade? Sobreviveríamos à existência uns dos outros? Se as pessoas que você ama, lessem seus pensamentos, amariam você? É por isso o início da presente reflexão: quem de nós nunca teve, em algum momento ainda que único na sua vida, pensamentos repugnantes (secretos)? Mas aí você pode me questionar ao afirmar que teve pensamentos secretos e desejos de matar alguém, mas não matou, por exemplo. Porém, você entende que por trás desse seu pensamento secreto existe uma narrativa? Existe a sua história de vida, a qual deve ser honrada de igual modo a daquele sujeito que matou alguém. Essa afirmação pode ser de difícil digestão, e se assim for não se cobre ou não se julgue, muito menos me julgue. Apenas reflita. Se aprofunde no conhecimento, não só no conhecimento jurídico, busque também outras áreas, como a filosofia, a história, e a psicanálise. Mas você ainda pode me questionar se as pessoas deviam ter compaixão e empatia por aqueles que são assassinos? Sim. É justamente isso que tornaria as nossas penas Humanas, com remédios efetivos para aquele ser humano que em tese errou, não erre mais. É um mundo ideal, uma utopia? Pode ser, mas ela nos move. Sabemos também que a vida envolve diversas formas de crescimento e a utopia em movimento é uma forma também, por que em todos movimentos haverão acertos e erros, pois estarão ocorrendo tentativas. Em cada pessoa haverá uma narrativa, porém ela não justifica um crime. Não obstante ser necessário termos essa tomada de consciência, uma vez que isso nos permite ampliarmos nossos sentidos, principalmente o da empatia, para então aplicarmos o remédio mais adequado aquele ser humano que possa ter errado. Se fosse assim, nem precisaríamos ter em nosso sistema penal o instituto da reincidência. Importante lembrarmos que nunca podemos generalizar as situações que envolvem o Direito Penal, pois há singularidade em cada caso. No presente momento me refiro a existência de pessoas dentro do sistema carcerário que estão recebendo um remédio equivocado por parte do Estado: a privação de todos os seus direitos e garantias fundamentais. Quem nos dera se o cárcere apenas privasse o indivíduo apenas de sua liberdade de ir e vir. Aquele que comete um crime, independente do bem jurídico afetado, também possui uma narrativa por trás dele. Essa narrativa (vida) certamente provocou diversas consequências, por exemplo, traumas, alegrias, medos, amores, e etc. Ao analisarmos o agente infrator através da reunião de ciências se percebe que a pena capital[2], na maioria das vezes, não é o instrumento necessário e adequado para recuperar aquela pessoa. Sabemos da dificuldade em que se encontra o país no que se refere ao acesso do livre e bom conhecimento. Tudo custa muito dinheiro, vidas e almas. Sabemos que existem profissões, principalmente no âmbito da política e de serviços públicos, que recebem uns dos salários mais altos país, no entanto, esses profissionais não fazem o uso do sistema público de saúde e de educação. Isso é um amargo e compreensível paradoxo, pois o problema está em toda a sociedade: a culpa de um é a culpa de todos nós[3]. Volvendo as entranhas das narrativas humanas, nota-se que elas sempre se fazem presentes na pessoa que pratica um delito, na vida dos escritores, na vida dos artistas, na vida dos músicos, na vida dos atletas, etc., e que quanto mais difundida for, mais gerará empatia social. Isso cativa, quando exposto, o outro. Podemos perceber isso, por exemplo, no uso ilimitado das redes sociais atualmente. Pessoas compartilham o que comem, o que leem, suas viagens, suas angustias, o que vestem, etc., mas principalmente, o que pensam (ou aparentemente pensam). Sabemos que não podemos comparar as pessoas, isso jamais. Porém, podemos perceber que o artista vomita o seu universo na arte, assim como o poeta vomita seu universo nas palavras. Sim, eles possuem o dom de mergulhar sem oxigênio nas suas próprias profundezas para renascer. E aquele que comete um crime? Ele vomita no seu próprio renascimento todo o seu universo. O ato de renascer, independentemente do modo, é um processo humano extraordinário. O egresso do sistema carcerário vomita muita coisa também se conseguir renascer. Essa narrativa merece atenção social, política, de políticas criminais, sociológicas, e assim por diante. Enfim, isso é debatido há décadas, e mesmo assim possuímos poucas respostas, no entanto uma resposta é certa: o sistema de punição chamado “prisão” não deu certo[4]. O cárcere (falido) é justamente a prova de que as coisas não estão dando certo. É uma bomba metodológica sempre pronta para explodir. Acredito que a educação é a única saída para tudo que está ocorrendo com o mundo. Mas percebemos justamente que aí é que mora a dificuldade diante de tanta desigualdade social. Uma criança que cresce num ambiente familiar violento possui grandes chances de reproduzir esse padrão familiar. Nós podemos viver num ciclo vicioso, pois é possível repetirmos tanto os padrões positivos, como os negativos dos nossos ancestrais. No caso hipotético mencionado, vamos supor que a pessoa não consiga quebrar esse padrão da violência doméstica e vai ao cárcere justamente por isso. Visivelmente, neste caso, o Direito Penal não é o recurso mais apropriado como primeira opção. Já no cárcere, esse indivíduo terá que mergulhar sozinho em suas profundezas para conseguir romper com esse ciclo de violência e não voltar a delinquir. Essa é a liberdade dele consigo mesmo: olhar para dentro de si, conseguir renascer e sobreviver ao sistema. Durante a vida, nós humanos, podemos “morrer” e “renascer” quantas vezes for preciso para sobrevivermos. Seja a perda de um emprego, seja a perda de um ente querido, seja uma traição, seja um crime, etc. E sobre a liberdade presente na arte e na pena? A liberdade presente na Arte e na pena se encontram no espaço e tempo do autoconhecimento humano, se assim permitido por ambos, por exemplo, o artista que mergulha sem oxigênio em si próprio, quase como que se quisesse “morrer” lá dentro e “renascer” após todo o intenso sentimento, ou o preso que precisa mergulhar dentro de si para se manter e sair vivo dentro do sistema, e principalmente, não voltar a cometer crimes. Ambos, cada um no seu local de existência humana, precisam se reconstruir após cada mergulho interno e se manterem vivos. A Arte e o cárcere, embora tão distantes, se aproximam quando unimos a capacidade humana de sobrevivência dentro do sistema social, seja lá qual for, pois sé é um sistema construído por humanos, também haverá erros. Ao mesmo tempo, a Arte e o cárcere, podem provocar o despertar humano para dentro de si primeiramente, e depois a empatia para com o outro, pois depois que você reconhece a sua narrativa, enxergará o outro com respeito e também como uma narrativa viva. Pois é, como escrevi anteriormente: as narrativas contêm as informações que ninguém vê, que ninguém ouve, mas que podem ser sentidas, uma vez que são reais e estão imersas no mar abaixo do “iceberg”. Assim, escolha a sua verdade e a sua liberdade custe o que custar, mas sempre respeite e considere a do outro. Carla Tortato Mestre em Teoria e História da Jurisdição (UNINTER). Especialista em Direito Penal e Processual Penal (ABDCONST). Professora e Advogada. NOTAS: [1] Belo = verdade. [2] Refiro-me como pena capital a pena de privação de liberdade, pois do modo que ela é posta pelo atual sistema carcerário, considero uma pena de morte que com “sorte” o indivíduo consegue renascer. [3] Mais uma verdade social difícil de ser digerida. [4] Apenas deu certo para excluir os indesejáveis socialmente.
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