O ano que passou foi pautado por diversos fatores, que podemos caracterizar tanto como progressos quanto como retrocessos. Felizmente, estes últimos não foram deixados de lado e foi possível perceber uma certa relutância em simplesmente aceitar sem lutas e argumentações.
Vimos diversas notícias que sustentam a atuação da Psicologia e do Direito em nosso país e colaboram para o fortalecimento conjunto das duas áreas em relação à produção de conhecimento e à prática, visto que a necessidade é percebida em vários níveis: desde o aporte teórico que pode auxiliar na descrição e compreensão de crimes que são tidos como incomuns até os questionamentos que propõem reflexões na forma em como vivemos atualmente, proporcionando um crescimento social. Com isso, 2017 também foi lembrado como aquele em que se comemorou 30 anos da luta antimanicomial. Talvez o termo “comemorar” não esteja tão bem aplicado, já que o fato a que foi devido não é motivo para festejar. Em determinado período histórico, não apenas a Psicologia, mas demais áreas da saúde perceberam que os procedimentos realizados em hospitais psiquiátricos no Brasil não ofereciam um tratamento adequado Assim, num evento organizado por profissionais que tinham ligação com o sistema manicomial, em 1987, um manifesto tomou forma, que denunciava práticas comuns da época, mas que prejudicavam seriamente àqueles aos quais deveriam receber ajuda e ainda acabavam privando-os de alguns direitos básicos: os pacientes psiquiátricos (ALBUQUERQUE, 2017). Formalmente, um documento foi criado, que ficou conhecido popularmente como “Carta de Bauru”, pois foi nesta cidade que o acontecimento se deu. Tal manifesto traz uma realidade cruel de ser identificada. Através de um trecho retirado do original (Manifesto de Bauru, 1987), detectamos o que pretendia ser expressado:
Como é possível de ser abstraído, não se fala exclusivamente dos manicômios, mas articula sua estrutura com o que acontece na própria comunidade, já que, analisando criticamente, tudo faz parte de uma sociedade só. Os mesmos meios utilizados para oprimir, moldar e silenciar quem encontra-se internado são vistos também nas demais instituições aos quais todos nós fazemos parte. Por isso, a saúde mental que pretende ser resguardada não é apenas daqueles que possuem um diagnóstico fechado, mas de todos nós. Sabendo disso, muito aconteceu desde então. Aos poucos, hospitais psiquiátricos foram fechando suas portas, para dar espaço a novos tipos de atendimento às pessoas portadoras de algum tipo de transtorno, seja ele crônico ou não. Juntamente com outras ideias que foram sendo idealizados e realizados, houve um período de mudanças que ficou conhecido como “Reforma psiquiátrica”. Sendo um processo social complexo, a reforma visa a alteração na assistência, sempre mantendo uma relação com os novos pressupostos éticos e técnicos, assim como a incorporação cultural de determinados valores e tendo também um suporte jurídico-legal (ALVES, 2017). Entretanto, foi somente em 2001, com a promulgação da lei nº 10.261, que o Brasil entrou para o grupo de países que mantém uma legislação moderna e condizente com as premissas da Organização Mundial da Saúde, em relação aos modelos de assistência em saúde mental (ALVES, 2017). Como muitos outros fatos que ocorrem em nosso país, nem sempre as leis conseguem acompanhar em tempo os acontecimentos cotidianos, mas não se pode negar que a formalização legal desses processos é de extrema ajuda para prática da área e, principalmente, para a proteção e a garantia dos direitos dos indivíduos que possam vir a ser atendidos nestes casos. Não obstante, atualmente, vemos dois movimentos correndo em paralelo: a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial. Mesmo as duas visando uma reestruturação, ainda há interesses iguais para fins diferentes. Há frentes conservadoras na psiquiatria tradicional, assim como existem antimanicomiais que defendem a humanização e a reorganização dos hospícios (PASSOS, 2017). Contudo, a reflexão nunca deixa de estar presente e as duas perspectivas podem ser úteis para viabilizar um pensamento crítico de forma a caminharem para uma direção comum. Enquanto podemos verificar estratégias que possuem a máscara da desinstitucionalização, como é o caso de projetos como as Comunidades Terapêuticas – locais considerados manicomiais, de caráter religioso e que não contam com uma equipe técnica especializada em saúde mental (PASSOS, 2017), detectamos que ainda existem motivações políticas e higienistas, que não passam de ideias para “varrer o problema para debaixo do tapete” e não procurar soluciona-lo, de acordo com as premissas iniciais de considerar a singularidade de cada indivíduo para que este possa desenvolver um suporte que o permita viver em sociedade. Como pontua Alves (2017), ainda é um desafio o consenso sobre as práticas e valores que consideram a convivência de maneira harmônica com aqueles que são tidos como diferentes e o reconhecimento das habilidades e potencialidades das pessoas portadoras de transtornos mentais, para que elas também possam exercer sua cidadania tanto quanto qualquer um de nós. Para isso, ainda há muito o que se trabalhar e isso só será possível através de uma força conjunta de diversas áreas de estudo e atuação. De acordo com uma pesquisa feita por Luzio e Sinibaldi (2012), que, através de uma análise da produção científica sobre o tema, procurou identificar as contribuições teóricas para o processo de reconstrução de um novo modelo psiquiátrico que venha substituir o tradicional, os campos menos abordados são os políticos-jurídicos e sociocultural. São dois campos essenciais para a mudança que, conforme já explanado, vai além do avanço no tratamento de indivíduos com condições psiquiátricas, pois engloba a maneira como a sociedade pensa e vive tais questões. Assim, percebeu-se que a maior parte dos estudos ainda está relacionada à mudança na assistência; mas a preocupação com a reinserção social e a volta do exercício da cidadania continuam sendo postas em segundo plano (LUZIO e SINIBALDI, 2012). Não apenas os processos devem ser reajustados, mas o fim dos manicômios (que não garantiam os direitos básicos de quem os frequentava) só será possível efetivamente se houverem reflexões e espaço para que essa parcela da população possa voltar a fazer parte da sociedade. Para isso, é imprescindível a conversa entre os saberes e a participação de mais profissionais que atuem direta ou indiretamente com tais questões. A falta de produção de conhecimento sob as perspectivas socioculturais e políticos-jurídicas traz uma realidade que não pode ser ignorada, pois torna mais custoso e demorado o processo de mudança efetiva. São necessários projetos e suporte teórico transdisciplinares para que o processo seja acompanhado desde o início. Só assim poderemos imaginar um país livre de manicômios e caminhar para uma integração social, garantindo os mesmos direitos a todos. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Naiara. O que é a Carta de Bauru, marco na luta antimanicomial no Brasil. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/12/08/O-que-%C3%A9-a-Carta-de-Bauru-marco-na-luta-antimanicomial-no-Brasil>. Acesso em: 01 jan. 2018. ALVES, Domingos. Reforma psiquiátrica. Disponível em: <http://www.ccs.saude.gov.br/memoria%20da%20loucura/mostra/reforma.html>. Acesso em: 01 jan. 2018. LUZIO, Cristina A.; SINIBALDI, Barbara. Atenção Psicossocial e Psicologia: um mapeamento da produção científica. Revista de Psicologia da UNESP. v. 12, n. 2. 2012. Disponível em: <http://seer.assis.unesp.br/index.php/psicologia/article/download/615/569>. Acesso em: 01 jan. 2018. MANIFESTO DE BAURU, Bauru, dezembro de 1987 - II Congresso Nacional e Trabalhadores em Saúde Mental. Disponível em: <http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/manifesto-de-bauru.pdf>. Acesso em 01 jan. 2018. PASSOS, Rachel G. Luta antimanicomial no cenário contemporâneo: desafios atuais frente a reação conservadora. Socied. em Deb. Pelotas, v. 23, n. 2, p. 55 - 75, jul./dez. 2017. Disponível em: <http://www.rle.ucpel.edu.br/index.php/rsd/article/view/1678/1043>. Acesso em: 01 jan. 2018. Comments are closed.
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