Existem vários cenários onde se pode enxergar a valoração das coisas e das situações por intermédio financeiro, onde há a propositura de uma precificação para determinados atos e produtos. A regulamentação do mercado para as mercancias definindo valores fixados pecuniariamente é uma ação, segundo os economistas, de oferta, procura e disponibilidade do bem a ser alienado. Todavia, o mercado, como toda a vida social, também se altera com o tempo e com suas novas interações, tomando novas virtudes, atitudes, e porque não, novas tendências que abusam das práticas sociais antes conhecidas como predicado de qualidade de vida em conjunto numa sociedade. Inúmeros bens são considerados e valorados por um preço, números a eles atribuídos por um mercado diferente daquele previsto por Adam Smith, que o enxergava como sendo a “mão invisível”, todavia, hodiernamente manipulador e quantificador em quase tudo o que se relaciona com a vida humana e seus afazeres. O problema é quando esse mercado intervém em situações e práticas tidas como morais ou tradicionais, ou tenta precificar situações singulares e que não poderiam ser alienadas nem qualificadas por um número imposto por um mercado e pela comercialização. Alguns países desenvolvidos resolvem pagar a milionária multa que se atribui àqueles que mais poluem o ambiente, mesmo contrariando o famoso protocolo de Kyoto, uma vez que enxergam tal multa como uma taxa que indica que aquele que pode pagar pode poluir. Da mesma forma, valores como hábitos saudáveis inseridos na vida das pessoas por uma compensação financeira ou um incentivo (prêmio) deturpam o sentido da coisa certa a ser feita colocando um preço no que deve ser realizado, apenas pelo ganho monetário no final. Programas como incentivar a pessoa a perder peso por dinheiro, pagar filhos para que estes leiam mais ou arrumem seus quartos são exemplos banais desses valores comprados. Recentemente nos EUA o governo passou a contribuir financeiramente com os alunos que tiram boas notas. Incentivos fiscais para empresas que possam contribuir com vagas de empregos não importando a poluição que emane de suas chaminés, pessoas pagas por outras para aguardar em filas longas horas para um show, espetáculo de teatro ou consultas médicas, aceitar imigrantes ou fugitivos políticos de outro país com intuito de que paguem (e paguem bem) ao governo pelo seu green card, são todas situações que demonstram que o mercado entrou em lugares da vida cotidiana que pertencia a outros ramos, mas não o comercial. Qualificar certas ações como mercadoria significa perder sua essência, ou ainda, mercantilizar bens pode deteriorar o seu significado até o ponto de que uma prática de boa convivência passe a ser cobrada para ser realizada. Dessa forma, normas de coexistência em comunhão podem vigorar como valores econômicos a serem utilizados pela comercialização. Pagar alguém para que fique na fila do médico e segure seu lugar ou para que uma empresa possa livremente poluir se concordar em aumentar vagas de emprego é negar outro problema maior ainda: quantificar por preço atos morais e de simples e boa convivência. Todavia, quando essas normas entram em choque com o direito penal, este assegura-se de que existam lugar para todos, inclusive para aquele que pode pagar multas e que entendem que as multas são meras taxas, ou seja, desvirtuam o significado da multa para um valor que se asseguram poder pagar. Dessa forma, não se enxerga a multa com uma desaprovação moral, mas sim, como um valor a ser pago, simples troca econômica. Jogar lixo em um ambiente de preservação natural pode ser conveniente a quem possa pagar a multa, que entende ser uma taxa para seu mau hábito, ao invés de caminhar com seus entulhos até encontrar a primeira lixeira. Todavia, normas morais passam a ser negociáveis. Como colocar o livro nas mãos das crianças e definir um preço para que estas o leiam até o fim, ou, pagar aos alunos quantias diferentes por notas mais altas. Como o valor aqui é intrínseco ao resultado, o resultado irá depender do incentivo, por sua vez. Realizar atos tidos como morais ou de responsabilidade com o intuito do lucro fácil é formar atitudes compassadas aos valores do mercado e nada mais. Ao findar esse incentivo, a norma não mais é negociável e muitas pessoas que aceitaram perder peso ou deixar de fumar por um prêmio ao final voltam a ganhar seus pesos e a abrir suas carteiras de cigarro, pois não há mais a benesse do lucro. Ler um livro por um incentivo financeiro significa desvirtuar as motivações da leitura e do prazer desse mundo que se abre junto às folhas de uma obra. Assim, normas ou atitudes antes tidas como de convivência, morais, tradicionais ou de comunhão social passam a ser valoradas pelo mercado, vendida e trocada pelas pessoas, que se tornam mais mesquinhas e mais incentivadas pela ganância do lucro. Essas normas passam a ter, por sua vez, contribuições mais audaciosas, como a corrupção. Ora, se entender que pagar para uma criança ler um livro ou que arrume seu quarto é correto, é então pela educação financeira e da mercantilização de seus atos morais e de responsabilidade que se realiza a maior parte das coisas na vida em sociedade. Dessa forma, desde o inicio incentiva-se que a virtude deve trilhar pelo caminho dos ganhos fáceis. Para Kant, tudo aquilo que não pode ser sopesado ou definido por um valor em si é dotado de inúmeras virtudes e valores, entre esses, a dignidade. Definir uma finalidade a certas atitudes pelo lucro é não realizar o que Kant entende como uma fundamentação dos imperativos morais na vida, que se explica apenas por interesses diversos da qualidade da ação. Se uma ação boa é praticada pelo motivo do lucro então tal ato foi realizado pelos propósitos errados, não sendo então uma ação digna. Colocar o mercado em todos os setores da vida e entre esses, a própria convivência em sociedade e as obrigações morais e cívicas é um tropeço histórico de nossas civilizações, pois se define o que deve ser feito pelo motivo errado, segundo Kant. Destarte, normas podem passar a ser vigiadas pelos mecanismos do mercado, esgotando a virtude das pessoas que realizam a venda de ações programadas para render lucro. Quando a mercantilização atinge o direito penal cria-se um desnível enorme, pois inúmeras são as pessoas que podem se esquivar do direito das penas e muitas são aquelas que não tem essa possibilidade. Pagar a multa enxergando-a como uma taxa pode ser proveniente de quem um dia recebeu dinheiro para ler um livro inteiro ou para tirar boas notas. Assim, atos de corrupção passam a ser sopesados pelos corruptos pela psicologia inversa, definindo que se deve realizar aquilo que se entende como virtude. Pessoas que se engajam em posições sociais e política muitas vezes internalizam essa busca por lucro em seus próprios ambientes e passam a perfazer uma carreira desviante que Sutherland reconhece como a associação diferencial. Para ele, a criminalidade do colarinho branco pode ser explicada por fins culturais e pelo acesso aos meios institucionais. Dessa forma, Sutherland traz sua formação pela associação; uma vez que a criminalidade se desenvolve em um interacionismo de aprendizagem e de técnicas que vão se aperfeiçoando conforme os contatos específicos que o sujeito está exposto em seu ambiente, tanto profissional como social. Todavia, para isso, caminha-se a passos alargados, quando se define pelo lucro e pelo ganho financeiro situações que não deveriam trilhar por esses caminhos. Mercantilizar um bem pode de fato transformar o seu significado, e esse ato se inicia com as atribuições financeiras que se dá para algumas normas ou ações morais, de simples convivência e urbanidade, que deixam de ser realizadas sem que haja uma compensação econômica. Não é somente um colapso das interações e da vida social em urbanidade, mas sim, de todo o sistema existente, que se define por quanto se pode lucrar. Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal Referencias: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. 6° ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Traduzido do alemão por Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986. SANDEL, Michael. O que o Dinheiro não compra. Os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira. Comments are closed.
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