A consulta à jurisprudência estrangeira, no caso, à jurisprudência latino-americana, tendo em vista principalmente a desigualdade econômica presente no continente, traz a possibilidade de se refletir sobre o Direito a partir da nossa racionalidade jurídica e realidade social e cultural, para então pensar em soluções para os problemas a partir de uma perspectiva local.
O Direito é interpretação, e a análise comparada de decisões de outros países converte-se em um guia para a prestação jurisdicional para o caso brasileiro. O recurso judicial ao direito estrangeiro e internacional é uma prática valiosa para o preenchimento de lacunas, resolução de ambiguidades, para a modernização do sistema jurídico doméstico, especialmente nos países onde há morosidade legislativa. Sustenta-se, ainda, que essa prática reduz os riscos de decisões erradas especialmente em temas polêmicos e controversos, como o direito ao aborto. O que contribui para a coerência do sistema jurídico e proteção dos direitos fundamentais, tratando com igual consideração os casos semelhantes (treat like cases alike). Diante disso, os tribunais podem se beneficiar da consulta voluntária de experiências estrangeiras, inclusive quando elas forem únicas. Apesar do avanço em termos históricos, políticos e sociais, nem os Parlamentos e nem a Ciência (Política ou o Direito Constitucional) latino-americanas se deram conta de que o tecido social também é composto por mulheres, que apresentam necessidades e demandas bastante específicas. O movimento feminista percebendo a importância de se criar e manter uma interlocução com o Estado passa a interferir na construção de políticas e na elaboração dos textos constitucionais com vistas a pleitear direitos para as mulheres e ampliar a cidadania feminina. Assim, em que pese a cegueira de gênero presente nas práticas e reflexões políticas, a América Latina, e o Brasil em particular, passa a testemunhar a presença e a pressão política das mulheres nas Assembleias Constituintes, nas Cortes e nos Parlamentos em defesa de seus direitos, o que gera impactos importantes nos processos decisórios e jurisprudenciais que culminam com a constitucionalização dos direitos das mulheres. A ilegalidade do aborto gera a clandestinidade do procedimento. As estatísticas da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) mostram que 22% das mulheres entre 35 a 39 anos já abortaram pelo menos uma vez, a escolaridade de 23% das mulheres que abortam é apenas até a 4° série do ensino fundamental, e 48% das mulheres utilizou remédios abortivos. Esse problema que além de ser uma questão social é também um problema de saúde pública, não está na agenda do Congresso Nacional, tendo em vista a posição majoritariamente conservadora dos senadores e deputados, além do custo político da defesa da descriminalização do aborto que é muito alta para os parlamentares. Em diversos países democráticos, por conta da omissão legislativa, são provocados a enfrentar o tema, que está envolto por questões de saúde, política criminal, desigualdade de gênero e também questões morais. Trata-se, portanto, de um problema social que se projeta em um problema com viés acadêmico, que será o objeto de investigação dessa pesquisa. A descriminalização do aborto nas Cortes Constitucionais da América Latina A participação dos movimentos sociais nas decisões do judiciário é um fenômeno global, o que acaba por ser um marco na transformação do direito constitucional contemporâneo, que tem sido forjado, também, por pressões de empresas multinacionais, grupos de direito humanos, movimentos sociais e ativistas das questões de gênero e sexualidade, que buscam reconstruir e utilizar o Direito em nível local, nacional e global. As ordens jurídicas estatais têm se tornado cada vez mais permeáveis às influencias estrangeiras e internacionais, mediante a migração de ideias constitucionais ou discurso transnacional. A partir de uma visão feminista, o constitucionalismo e as constituições têm um enfoque particular de determinados atores legais, especificamente os homens brancos, liberais, de classe alta e ocidentais. Por ser um produto masculino e liberal, não é um lugar cômodo para as mulheres. Nessa perspectiva, é falsa a ideia de que o Direito e as ferramentas jurídicas são elementos neutros que representam os interesses de sujeitos abstratos. Dentro de uma perspectiva crítica, o direito constrói a dependência e a vulnerabilidade das mulheres e por vezes gera a ilusão de segurança e tranquilidade quando na realidade não proporciona isso. O constitucionalismo que vem se construindo na América Latina tem por base a crescente participação popular nos processos políticos e a inclusão social por meio dos direitos fundamentais. Dentre os diversos grupos e movimentos sociais que contribuíram para a inserção de novos direitos nos textos constitucionais dos países do continente, destacam-se os movimentos feministas e de mulheres que, pós ditaduras, passaram a pleitear pela constitucionalização de suas demandas e direitos e por uma narrativa não androcêntrica dos processos constitucionais. Diante de um novo contexto político e jurídico, os atores sociais da América Latina, têm recentemente desenvolvido novas formas de ação coletiva, incluindo em particular a mobilização legal. Nesse contexto, a linguagem dos direitos é permeada pelas demandas políticas dos movimentos sociais, que recorrem cada vez mais ao marco constitucional e de direitos humanos para realizar sua busca por direitos. Os movimentos de mulheres podem produzir, definir e articular suas aspirações e reivindicações politicas em termos jurídicos e produzir novos conceitos e interpretações constitucionais que em certos casos podem ser incorporados pelas Cortes na jurisprudência constitucional. Assim, considera-se que a mobilização legal dos movimentos de mulheres inclui as ações de litigio e judicialização, mas também, de maneira mais geral, o uso da linguagem dos direitos por parte dos movimentos sociais e o enquadramento de suas demandas através de marcos discursivos que incorporam e interpretam conceitos legais. O acesso das mulheres ao aborto sob certas circunstâncias está ganhando reconhecimento como um direito humano, na medida em que este direito se expressa como o direito de ser protegida de abortos perigosos, o que se entende como um aspecto do direito das mulheres à saúde e à vida. No direito interno, nos últimos anos, houve reformas que liberalizaram, ainda que em distintos graus e na maioria dos casos de maneira limitada, as regulações sobre aborto na Colômbia, México, Brasil, Argentina e Uruguai. No Brasil, em 2004, o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS) apresentou ao Supremo Tribunal Federal a ADPF 54 que conduziu à legalização do aborto em casos de anencefalia em 2012. Na Colômbia, em abril de 2005, a organização Women’s Link Worldwide, entrou com uma ação de inconstitucionalidade da lei (Código Penal) que penalizava completamente o aborto na Colômbia. Essa ação se fundamentava em grande medida no direito comparado, no direito internacional dos direitos humanos e em argumentos de saúde pública e tinha como meta principal descriminalizar o aborto em todas as circunstâncias. Em maio de 2006, a Corte, por meio da sentença C-355, concluiu que a norma que penalizava o aborto em qualquer circunstância impunha às mulheres uma carga desproporcional, que implicava um desconhecimento de direitos fundamentais reconhecidos na Constituição e em tratados internacionais sobre direitos humanos. Referida ação de inconstitucionalidade levou à liberalização da lei penal sobre o aborto em casos de violação, risco de vida ou saúde da mulher e malformações fetais severas. Na América Latina, os precedentes referentes ao aborto estabelecidos na Colômbia sobre o aborto, foram de grande importância, pois, a utilização do direito internacional e comparado pela Corte Constitucional conecta as mulheres de diversos outros países que enfrentam e compartilham as mesmas dificuldades, experiências e conhecimentos comuns em relação ao aborto. A abordagem do Tribunal Constitucional permite fazer uma aplicação contextual das normas de direitos humanos nacionais e internacionais. Ao incorporar uma perspectiva de gênero, a Corte dá sentido aos direitos humanos em geral e, particularmente, ao direito da mulher grávida à sua dignidade humana. Em 2007, a Assembleia Legislativa da Cidade do México aprovou uma reforma que refletiu a demanda e o enquadramento desenvolvido por organizações feministas (Asamblea Legislativa del Distrito Federal, 2007), e que contou com o apoio da Suprema Corte de Justiça da Nação em 2008 , “depois de um processo sem precedentes de participação de atores sociais ante a Corte, no qual as organizações feministas tiveram um papel fundamental”. Considerações finais É recente a mudança no direito constitucional e na sua agenda de prioridades, que agora abarca não somente as “grandes questões” como a separação de poderes e o controle de constitucionalidade, mas passou a abarcar outros temas sensíveis que merecem igual respeito e atenção, a exemplo dos direitos sexuais e reprodutivos. Nesse sentido, a interpretação constitucional comparativa é um importante instrumento de proteção aos direitos fundamentais. Devido a gama de decisões relativas ao aborto na América Latina e principalmente as similaridades históricas e sociais dos países do continente, o recurso as decisões estrangeiras e internacionais pode auxiliar no desenvolvimento da agenda de gênero não apenas no Brasil (que adota quase que de forma exclusiva a consulta à jurisprudência norte americana e alemã) mas em outros países do continente. A consulta a jurisprudência da região pode tornar as decisões mais refletidas, justas e de acordo com a realidade social e voltadas para as demandas e necessidades da população, não sendo apenas a letra morta do direito. As Cortes domésticas, ao consultarem as jurisprudências ou normas estrangeiras ou internacionais, podem, algumas vezes, inegavelmente, aprender com uma determinada corte ou sistema jurídico ou mesmo com algumas cortes ou sistemas jurídicos diversos. Inclusive, recomenda-se que as Cortes Constitucionais ou Supremas, assim procedam ao analisarem casos controversos de direitos fundamentais, senão como última palavra, ao menos como um ponto de partida. O Direito é um verdadeiro veículo de poder social que gera cenários de resistência ao mesmo tempo em que reproduz o status quo. As feministas propõem, portanto, uma visão menos essencializada do uso do direito para desenvolver a agenda feminista, uma dos caminhos é a utilização de estratégias constitucionais, sistematizando as demandas das mulheres em termos jurisprudenciais. LARISSA TOMAZONI Mestranda em Direito pelo Uninter Pós graduanda em Gênero e Sexualidade Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil Pesquisadora do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL/UFPR) e do Grupo de estudos Jurisdição Constitucional Comparada: método, modelos e diálogos (Uninter) Advogada Referências BAINES, Beverley Baines; BARAK-EREZ, Daphne. 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