Artigo dos Colunistas de Paulo Silas Filho e Jefferson de Carvalho Gomes, em homenagem ao grande Professor José Calvo González, vale a leitura! ''Esta era a alma de Pepe: um intelectual amável que não hesitava a todo o tempo em demonstrar o afeto. E isto é digno das grandes almas: humanidade, afetividade e humildade. Sentiremos muita falta de Pepe, mas também somos muito gratos por todos os momentos e charlas que pudemos ter com ele. Descanse em paz, Maestro!'' Por Paulo Silas Filho e Jefferson de Carvalho Gomes Lançamo-nos a perguntar o que é a narrativa, e o porquê dela estar tão presente em nossas vidas dia após dia. Não tem jeito, seja você de qualquer área, credo, coloração política, todo dia a tua vida é uma narrativa, todo dia tu escutas uma narrativa. Fatos são ditos pela narrativa. Circunstâncias são relatadas através da narrativa. Casos são relatados pelo uso da narrativa. A narrativa está assim presente em todos os âmbitos, em todos os lugares, em todos os recônditos em que o fator comunicacional, que se estabelece na e pela linguagem, opera.
Na angústia em tentar entender o que pode vir a ser considerada essa narrativa da qual se fala, buscamos o socorro na literatura, uma das moradas da linguagem, uma vez que uma compreensão possível pode ser aprendida com o saudoso Dino Del Pino ao explanar que narrar é referir fatos (DEL PINO, 1970, p. 61). Desse modo, automaticamente passamos a refletir sobre aquilo que faz o jurista, pois esse está reiteradamente lançado a referir fatos. Narramos todos os dias na advocacia ao levarmos aos fóruns e tribunais as histórias de pessoas que se veem envoltas ao sistema penal. Através do relato escrito, das petições, histórias de vida são contadas, explicações sobre eventos controvertidos são dadas, pontos nebulosos que pairam sobre determinados episódios buscam ser esclarecidos. Em qualquer dessas situações, a narrativa se faz presente. De igual modo, quando escrevemos textos acadêmicos, produzimos artigos científicos, manifestamo-nos através de ensaios, da escrita técnica, preparamos nossas aulas, bem como quando as sentenças são elaboradas pelos magistrados, a narrativa paira e funda todas essas situações no momento em que os ventos precisam ser ditos, relatados. Como Dino Del Pino nos ensinou: narrar é referir fatos! E por que abraçamos essa definição e insistimos que narrar é referir fatos? Porque nos parece que a atividade judicante, seja em qual esfera for, é justamente se referir à fatos e depois pleitear o Direito - ou existe alguma maneira de se exigir (ou dizer) o Direito sem ter antes de tudo um fato!? Nos parece que não… Como bem lembra FERRAREZE FILHO (2018, p. 23): O ato de narrar confunde-se com a história do conhecimento. Enquanto o conhecimento é a escultura de pedra que incessantemente vai sendo talhada, a narrativa é o maço e o cinzel em ação nas mãos do escultor. As narrativas orais ou escritas sempre foram o meio pelo qual se perpetuou e se revisou o conhecimento. Por aí temos o que pode ser mais um dado em busca de pensar na narrativa: o conhecimento. Conhecimento este que é essencial a um regular desenvolvimento de um processo, e processo que é essencial para haja uma sentença que pode ser considerada a narrativa final de toda a estória que é narrada minuciosamente dentro de um processo. O conhecimento, nesse sentido, está umbilicalmente ligado à narração fática, de modo que é através dela que o sentido passa a ser dado – ou dali extraído – os fatos sobre os quais recai o exercício jurisdicional que se move pelo processo. A partir dessa constatação, tem-se, com Alexandre Morais da Rosa, que no Direito é preciso saber contar histórias. A diferença entre o narrador bom e o narrador ruim pode ser percebida através da leitura do relato dos fatos posta nos documentos redigidos por esse narrador. E não apenas. Nas sustentações feitas através da fala também se tem a possibilidade de observar se o orador é ou não um bom narrador, pois o relato oral também constitui narrativa. É por isso que no âmbito processual o contagiar é um ato necessário que deve ser buscado e aperfeiçoado pelas partes, uma vez que “no processo oral, a partir da mesma informação probatória podemos depender de quem conta, da forma com que conta, enfim, do potencial de contaminação do conteúdo” (ROSA, 2016, p. 459). Daí a importância das narrativas para o Direito, que operam e produzem seus efeitos inclusive e quiçá principalmente nos processos judiciais, uma vez que fatos controvertidos são inerentes da lide ou do caso penal, pelo que “verifica-se como estórias são problemáticas em julgamentos. Fatos e versões fundem-se na narrativa de quem afirma e se diluem na fala de quem contesta” (GODOY, 2008, p. 83). Daí a importância e a atenção que deve ser voltada para a questão da narrativa que se faz presente no processo judicial. Se estamos a falar em narrativa, processo e Direito, não há como não falar de José Calvo Gonzalez. Catedrático de Filosofia do Direito da Universidad de Málaga - Espanha, cuidou de dedicar a vida acadêmica a estudar o Direito e a Literatura e a interface do mesmo Direito com a Literatura. Nas palavras de FERRAREZE FILHO (2018): “Calvo é um intelectual da mais fina qualidade e de vasta abrangência interdisciplinar. É um clássico vivo do Direito”. É a partir deste clássico do Direito que foi José Calvo González que podemos extrair acerca da sua teoria narrativista do direito o seguinte: La teoría narrativista del Derecho sostiene que el Derecho posee naturaleza y propriedades narrativas. Este postulado dilata en toda su dimensión filosófico-jurídica al defender la Justicia (y el Derecho) le lleva, asimismo, a tratar de explicar y compreender narrativamente otros momentos y expresiones del fenómeno jurídico y de su praxis productiva, interpretativa y de aplicación; por tanto, las possibilidades de reflexión, que en la teoría jurídica oferta la Teoría narrativista del Derecho, no se contraen a suministrar aplicaciones narrativas – más o menos puntuales y relevantes – en respuesta, apenas, a problemas de teoría de la argumentación jurídica. (GONZÁLEZ, 2019, p. 240) Obviamente que se a construção dos fatos se dá através da narrativa que é contada pelos atores de um processo, diferente da literatura, onde existe uma liberdade de criar, liberdade de narrar, no Direito há de se ter um critério, sob pena de o processo – e muitas vezes vemos isto no dia à dia forense – se tornar um cenário parecido com o do filme Relatos selvagens. Ninguém melhor trabalha este tema – o da necessidade de uma criteriologia – do que Lenio Streck e sua Crítica Hermenêutica do Direito. Lenio é um dos grandes intelectuais brasileiros que teve o privilégio de dialogar com Calvo, e a partir destes dois grandes Professores é que nos fomos instados a pensar um pouco sobre a questão de como a narrativa processual pode e deve ser contada. Lenio Streck fala da importância da interdisciplinaridade entre o Direito e a Literatura quando nos ensina que A literatura e a hermenêutica ambas mostram que – e de novo retomo Heidegger – a proposição não é o lugar da verdade, mas a verdade é o lugar da proposição. Posso voltar ao exemplo jurídico... aos precedentes e enunciados. E, com isso, volto a Swift. Quando um conjunto de sujeitos propõe algo, através de um enunciado ou um precedente, como se estivessem na Academia de Lagado, propõe nada senão uma tentativa de se chegar em um conjunto de palavras capaz de abarcar o mundo e conferir-lhe um sentido último — o ponto, e, portanto, a inevitável contradição, é que isso é feito sem que se saiba, contudo, de que mundo se trata. E aí chego na hermenêutica: com Gadamer, digo que não se pode dizer algo sobre o mundo antes que se deixe que o mundo diga algo. Esse é o ponto. (STRECK, 2018) Ou seja, o que Lenio sabiamente nos mostra é que no mundo do Direito podem sim existir as narrativas, mas elas tem que seguir critérios lógicos que nos é dado, como o próprio professor observa a partir de Gadamer, que não se pode dizer algo sobre o mundo antes que se deixe que o mundo diga algo, portanto, não há como narrar no Direito antes que o mundo conte ao narrador o fato. Isso porque “o direito opera com a norma e busca a verdade, seja lá o que essa “verdade” queira significar. Mas assim como a literatura lida com a ambiguidade da linguagem, o direito não escapa disso” (STRECK, 2013, p. 62). Sobre a Teoria Narrativista do Direito de Calvo, nos ensinou o professor que tal teoria “pretende dinamizar as narrativas desniveladas do raso modelador, da igualdade simbólica, do selecionado como narrativas da Verdade infalível e indivisível do Direito” (GONZÁLEZ, 2013, p. 57). É a partir disso que se pode apontar o Direito como sendo “o relato cuja narração conta a respeito de um mundo possível, de uma existência “paralela”” (GONZÁLEZ, 2018, p. 29). A narrativa, portanto, é elemento inerente da práxis jurisdicional, do Direito estabelecido enquanto norma e do Direito posto quando aplicado ao caso concreto, pois essa dinâmica da judicialização, da jurisdicionalização, só se faz possivel através do fator linguagem, cuja atribuição de sentido pode ser estabelecida a partir do momento em que essa linguagem se encontra ordenada através de um relato lógico e sistematizado que diga com concretude aquilo que enunciante quer dizer e possa ser compreendido como tal pelo intérprete – e o que torna esse processo dinâmico possível é justamente a narrativa. Post Scriptum: Definitivamente, o ano de 2020 vem confirmado toda a sua propensão a ser conhecido como o ano da tragédia. Não bastasse situação que o mundo atravessa com a pandemia do Coronavírus, que somente no Brasil já matou quase 60 mil pessoas, somos obrigados infelizmente a lidar com eventos lamentosos que dia a dia nos assolam. Nós, que somos amantes do Direito e Literatura, ainda tentávamos nos consolar com a partida precoce do nosso amigo e irmão, o Professor Thiago Fabres de Carvalho, um grande amante de Camus e da literatura russa, quando nesses dias últimos fomos pegos com a triste notícia do falecimento do também querido amigo e Professor José Calvo González. Pepe – como era chamado pelos amigos – nos deixou. Com a sua partida, todos os que amam o Direito, a Literatura e a Filosofia, ficam um pouco órfãos e com o coração partido, pois não há como falar nos temas acima mencionados sem passar necessariamente por Calvo González. Jurista de grande erudição, Pepe se destacava não só pela cultura ímpar, mas também pelo seu coração bondoso e uma humildade sem igual. Particularmente, eu, Jefferson, irei sempre me remeter a um episódio em 2015, quando nos conhecemos pessoalmente. Lá pelas tantas, jantando após um extenso dia de CIDIL, em Vitória, Pepe se levanta e começa a discursar. Lá estavam grandes amigos como Lenio e Rosane Streck, Alexandre Morais da Rosa, Jacinto Coutinho, Alfredo Copetti, Paulo Ferrareze, Alexandre Matzembacker, Henriete e André Karam, e mais um monte de gente boa. E em seu discurso Pepe disse algo que me faz até hoje (re)pensar nas relações de afeto que a academia nos dá. Disse então o Maestro: “Fico o ano inteiro na Espanha esperando e torcendo para chegar logo a hora de entrar no avião e ir para o Brasil”. E ao final nos deu um clássico que levou todos às gargalhadas: “Donde está mi doble nacionalidad!?” A grande verdade é que todos nós também ficávamos o ano inteiro esperando o momento de rever o nosso querido Pepe... Esta era a alma de Pepe: um intelectual amável que não hesitava a todo o tempo em demonstrar o afeto. E isto é digno das grandes almas: humanidade, afetividade e humildade. Sentiremos muita falta de Pepe, mas também somos muito gratos por todos os momentos e charlas que pudemos ter com ele. Descanse em paz, Maestro! Jefferson de Carvalho Gomes Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis Especialista em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes Professor e Coordenador Adjunto da Pós-Graduação em Processo Penal e Garantias Fundamentais da ABDConst-Rio Professor Convidado (UCAM RJ) Professor convidado Pós graduação (FAG Cascavel) Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL) Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) Advogado. Paulo Silas Filho Mestre em Direito Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Pós-graduando (lato sensu) em Teoria Psicanalítica Professor de Processo Penal, Direito Penal e Criminologia (UNINTER e UnC) Advogado Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Diretor de Relações Sociais e Acadêmico da APACRIMI E-mail: [email protected] REFERÊNCIAS DEL PINO, Dino. Introdução ao Estudo da Literatura. Porto Alegre: Editora Movimento, 1970. FERRAREZE FILHO, Paulo. Decisão Judicial e Narratividade: um olhar para os fatos a partir da teoria narrativista do Direito de José Calvo González. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/178724/347863.pdf?sequence=1&isAllowed=y. FERRAREZE FILHO, Paulo. Decisão Judicial no Brasil: narratividade, normatividade e subjetividade. Florianópolis: EMais, 2018. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito & Literatura: ensaio de síntese teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. GONZÁLEZ, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. GONZÁLEZ, José Calvo. Nada no direito é extraficional (escritura, ficcionalidade e relato como ars iurium). In: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete (Editores). Por Dentro do Lei: direito, narrativa e ficção. 1ª Ed. Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2018. GONZÁLEZ, José Calvo. Proceso y Narración: Teoria y Prática del Narrativismo Jurídico. Lima: Palestra Editores, 2019. ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 3ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. STRECK, Lenio Luiz. Porque precisamos de grandes narrativas no e do direito. In: NOGUEIRA, Bernardo G. B.; SILVA, Ramon Mapa da (Orgs.). Direito e Literatura: por que devemos escrever narrativas? Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013. STRECK, Lenio Luiz. A literatura ajuda a existencializar o Direito. Entrevista dada à Rede Brasileira de Direito e Literatura. Disponível em: http://seer.rdl.org.br/index.php/anamps/search/authors/view?firstName=Lenio&middleName=Luiz&lastName=Streck&affiliation=Universidade%20do%20Vale%20do%20Rio%20dos%20Sinos%20%28UNISINOS%29&country=BR.
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