Constantemente, é propagado pelos tribunais brasileiros o posicionamento de que o réu se defende dos fatos e não da capitulação jurídica do crime, com base em uma construção jurisprudencial completamente distorcida, diga-se de passagem.
É o que preconiza o malsinado artigo 383, do Código de Processo Penal[1], que disciplina o instituto da emendatio libelli. Ocorre, no entanto, que a possibilidade legal do magistrado condenar o Réu sem modificar a descrição do fato contida na exordial acusatória merece ser rechaçada, por duas razões: a uma, porquanto funciona como se fosse uma bela passada de mão, por parte do juiz, na cabeça do promotor que oferece a denúncia, do tipo: “Fique tranquilo, meu caro! Apesar de teres denunciado pelo crime de furto, Vossa Excelência narrou uma grave ameaça, razão pela qual posso condenar por roubo!”; a duas, que essa falácia de que o Réu se defende apenas dos fatos deve ser extirpada do processo penal: defende-se, sim, de todo o contexto acusatório (incluindo a capitulação jurídica do crime). A correta capitulação jurídica do crime é imprescindível, por exemplo, para reconhecimento da (in)competência do Juízo, aplicação dos benefícios despenalizadores da Lei n° 9.099/95, assim como para incidência da prescrição com base na pena máxima prevista no tipo penal secundário, entre outros desdobramentos importantes. Caros leitores, imaginem a seguinte situação hipotética: um cidadão é citado para defender-se de uma acusação de um crime de lesão corporal (art. 129, caput, CP) e procura um advogado criminal para elaborar a sua estratégia defensiva. Ao ser indagado sobre a pena a ser aplicada em caso de eventual condenação, o advogado descreve que a sanção do tipo penal em análise é de três meses a um ano. Posteriormente, o magistrado condena o Réu a uma pena de 4 anos por entender que tratava-se de lesão corporal de natureza grave, por estar descrita essa situação na denúncia. Não é possível admitir tamanho absurdo, pois a situação supracitada causa manifesta surpresa ao Réu. O principal direito do Réu, por mais paradoxal que possa parecer, é o direito de ser bem acusado, saber do que está sendo acusado, com uma acusação precisa e delimitada. O Ministério Público tem esse ônus. A denúncia, portanto, deve conter toda a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias e, máxime, a classificação correta do crime (art. 41, CPP). Enfim, fato é que os tribunais têm adotado o posicionamento de que a emendatio libeli prescinde de aditamento da denúncia ou de prévia intimação das partes. Sucede, entretanto, que nessas situações torna-se imperioso que as partes sejam intimadas da alteração da classificação jurídica, com a possibilidade de reabertura da instrução para oitiva de testemunhas e novo interrogatório do Réu. Adotar interpretação diversa geraria inconcebível cenário de insegurança jurídica, afetando o pleno exercício do direito à ampla defesa. Ora, nada mais justo: o Réu elabora toda a sua defesa com base na acusação de um crime específico, prepara-se para a audiência para se defender do crime objeto da denúncia, faz todas as alegações com base nesse crime, mas na sentença é surpreendido com uma condenação por outro crime em nome do brocardo jurídico narra mihi factum dabo tibi jus[2]. A crítica feita por BADARÓ[3] é enfática: “a permissão que é dada ao juiz para mudar a qualificação jurídica do fato não significa que possa fazê-lo, diretamente, sem qualquer comunicação às partes. Toda vez que o juiz for tomar alguma decisão que possa surpreender as partes, por envolver questão fática ou jurídica não debatida no processo, em respeito ao princípio do contraditório, deverá instar as partes a se manifestarem sobre tal questão”. A respeito da necessidade de manifestação da defesa, é de solar clareza o ensinamento de Renato Brasileiro de Lima[4]: “uma vez aditada a peça acusatória pelo Ministério Público, deve ser observado o quanto disposto no art. 384, §2º, do CPP. Mesmo antes de admitir (ou não) o aditamento da peça acusatória, deverá o juiz ouvir o defensor do acusado, em espécie de manifestação que funciona como um misto de defesa preliminar e de resposta à acusação” Ainda que se considere possível a emendatio libeli, parece óbvio que deverá ser determinado o aditamento, com a consequente intimação do réu para que se defenda, a partir de então, da nova classificação jurídica (art. 384, § 2º, CPP[5]). Em síntese: o Réu não pode jamais ser surpreendido em sentença com a condenação de um fato que o Ministério Público alega no aditamento, mas que não consta na capitulação jurídica do pedido, em homenagem ao consagrado princípio constitucional da ampla defesa. Edson Luiz Facchi Junior Especialista em Ciências Criminais Advogado criminal Vinícius Luiz Pallú Advogado criminal [1] Art. 383, caput, CPP – O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave. [2] Narra-me os fatos e dar-te-ei o direito [3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 538. [4] Lima, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado – 2ª ed – Salvador: Juspodivm, 2017. p. 1046 [5] Art. 384, § 2º, CPP – Ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 (cinco) dias e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento. (grifamos) Comments are closed.
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