“Eu não serei livre enquanto houver mulheres que não são, mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas” – Audre Lorde 1. Introdução O tráfico internacional de drogas hoje é o principal responsável pelo encarceramento em massa nos países da América Latina. A atual política de guerra às drogas tem encarcerado e criminalizado mulheres vertiginosamente, apesar dessas não representarem uma verdadeira ameaça para a sociedade. As mulheres presas por tráfico internacional de drogas têm em comum o aliciamento, seja pela condição de vulnerabilidade socioeconômica ou pela vulnerabilidade emocional. No primeiro aspecto são consideradas ‘presas’ fáceis pelos grandes chefes do tráfico, pois, encontram-se em situação de vulnerabilidade social. Desempregadas, mães solteiras, arrimos de família são atraídas por promessas de lucro rápido; no segundo, vulneráveis emocionalmente são cooptadas por seus companheiros, já pertencentes ao mundo do tráfico, que lhes apresentam a vida ilusória de poder e luxo que podem vir a ter. Antes da ambição está presente em cada uma o desejo de serem amadas e úteis a esses homens, como bem expõe La Boétie (2009, p. 66), o que justifica todo o perigo que correm, arriscando a própria vida ao aceitarem fazer o que lhes é atribuído. Em ambos os casos, entretanto, veem no tráfico a oportunidade para saírem da pobreza, deixarem de sofrer privações materiais e oportunizarem aos seus filhos e familiares melhores condições de vida. Fato é que, a maioria das mulheres são presas por tráfico internacional de drogas em razão de condutas de menor participação, raramente estão no topo da pirâmide, não são as chefes, as ‘cabeças’ do mundo do tráfico, mas apenas e, tão somente, são interceptadas para exercerem o papel de ‘mulas’[1] do crime organizado, ou seja, fazerem o transporte das substâncias até seu destino final. Muitas vezes, elas sequer têm conhecimento da presença de drogas entre seus pertences. Ao adentrarem o sistema prisional distanciam-se de sua família, são separadas de seus filhos e, consequentemente, esquecidas pelos familiares e abandonadas por seus, até então, companheiros. Há, ainda, os casos das presas que chegam grávidas aos presídios. O cárcere agrava a situação dessas mulheres, pois, sem perspectivas entram, permanecem e saem da prisão, em decorrência do sistema penal que não está e nunca esteve preparado para realizar uma verdadeira política de ressocialização de seus custodiados e posterior reinserção na sociedade. A Lei de Execuções Penais prevê, em seu artigo 11, assistência material; à saúde; jurídica; educacional; social e religiosa. Porém, a realidade não é essa; tendo em vista o fato de haver pouquíssimas penitenciárias exclusivamente femininas, predominando as mistas, com alas femininas improvisadas. Sob a custódia do estado, novamente, essas mulheres veem-se abandonadas e sofrem graves e constantes violações de direitos humanos básicos, a começar por sofrerem privações de condições mínimas de higiene, como, por exemplo, o não fornecimento de absorventes e papel higiênico; sem qualquer atendimento ginecológico e acompanhamento pré-natal quando grávidas; não lhes é oportunizado estudo e, tampouco, um trabalho em que possam produzir, ocuparem seu tempo e auferirem renda, de forma a contribuírem no sustento de seus familiares e terem a chance de encontrarem um emprego quando libertas. Ou seja, não se leva em consideração a proporcionalidade da conduta em relação ao bem jurídico tutelado para se aplicar a pena, muito menos se a pena aplicada é realmente necessária, tendo em vista que, a maioria das mulheres presas não possui ligação com grandes organizações criminosas e não ocupam posições de gerência ou alto nível no submundo do tráfico. Da mesma forma, não se observa o princípio da humanidade na execução da pena, uma vez que as mulheres são submetidas a condições humanas degradantes dentro das prisões. 2. O perfil das mulheres presas e sua relação com o histórico de colonização da América Latina Galeano (2017) expõe muito bem a triste história de colonização da América Latina, que chama de “a região das veias abertas”, pois desde o seu descobrimento serviu para satisfazer as necessidades alheias. Região rica em minerais, petróleo, açúcar, café, frutas, tudo se transformou em capital europeu e mais tarde norte-americano, inclusive, os homens e sua capacidade de trabalho e consumo. Sustenta que a história de miséria, atraso e subdesenvolvimento da América Latina é resultado de seu fracasso em contraposição à vitória do capitalismo mundial, porque a riqueza dos países que a compõem foi responsável por gerar a própria pobreza ao nutrir a prosperidade alheia do sistema imperialista, que se fortalece na necessária desigualdade das partes que o formam, tornando-se cada vez mais ricos. Quando aqui chegaram, os europeus se depararam com os índios e deles subtraíram sua força de trabalho, após, atentando-se para o fato de que estes não eram desprovidos de alma, como assim se acreditava, alguns teólogos protestaram, e a escravização dos índios foi formalmente proibida no século XVI. A partir de então começaram a trazer negros africanos para substituir substituí-los nas minas e lavouras de açúcar, negros esses que eram comercializados, vendidos como mercadorias. Como bem retrata Galeano (2017, p. 52 a 54): [...] À rapinagem dos tesouros acumulados seguiu-se a exploração sistemática, nos socavões e jazidas, do trabalho forçado dos indígenas e dos escravos negros arrancados da África pelos traficantes. [...] Ouro, prata, açúcar: a economia colonial, mais abastecedora do que consumidora, estruturou-se em função das necessidades do mercado europeu, e a seu serviço. [...] A economia colonial também financiava a dissipação de mercadores, donos de minas e grandes proprietários de terras, que repartiam entre si o aproveitamento da mão de obra indígena e negra sob o olhar ciumento da Coroa e sua principal associada, a Igreja. [...] As classes dominantes não tinham o menor interesse em diversificar as economias internas nem em elevar os níveis técnicos e culturais da população: era outra sua função na engrenagem internacional para a qual atuavam, e a imensa miséria popular, tão lucrativa do ponto de vista dos interesses reinantes, impedia o desenvolvimento de um mercado interno de consumo. [grifo nosso] Os índios para suportarem as tarefas que lhes eram impostas, com o pouco que ganhavam, compravam folhas de coca em vez de comida e as mascavam durante todo o dia, somado a isso consumiam aguardente. A exploração indígena nunca cessou e para darem conta do árduo trabalho de levar nos ombros a bagagem dos conquistadores, passaram a consumir coca, que já existia no tempo dos incas, que o governo monopolizava e só permitia seu uso para fins rituais ou para o duro trabalho nas minas. Mas foram os espanhóis que estimularam o consumo intenso da coca e que, no século XVI, passaram a viver do tráfico de coca, do qual a igreja arrecadava impostos e dízimos. Assim, o tráfico de drogas na América Latina adveio da colonização espanhola e desde então, assola a região, deixando, contudo, de ser institucionalizado e passando a ser duramente reprimido e condenado pelo Estado e Igreja, passando a marginalizar e, consequentemente, estratificar os usuários, fazendo vista grossa aos traficantes, posto que esses sempre pertenceram às camadas abastadas da sociedade. Os índios foram desterrados de sua própria terra, condenados ao êxodo eterno. Foram empurrados para as zonas mais pobres, nas montanhas áridas ou para os desertos, enquanto as fronteiras da civilização dominante avançavam. Hoje a realidade em que vivem a população indígena e negra na grande maioria dos países que compõem a América Latina é apenas a consolidação da marginalização: A metade dos latino-americanos vive amontoada em casebres insalubres. Os três maiores mercados da América Latina – Argentina, Brasil e México -, somados, não chegam a igualar a capacidade de consumo da França ou da Alemanha Ocidental, embora as populações reunidas de nossos três grandes excedam largamente a de qualquer país europeu. [...] Até a industrialização, dependente e tardia, que comodamente coexiste com o latifúndio e as estruturas da desigualdade, contribui para semear o desemprego, em vez de ajudar a resolvê-lo; alastra-se a pobreza e se concentra a riqueza nesta região de imensas legiões de braços cruzados que se multiplicam sem parar. Novas fábricas se estabelecem nos polos privilegiados do desenvolvimento – São Paulo, Buenos Aires, Cidade do México – e cada vez menos mão de obra eles necessitam. O sistema não previu esse pequeno incômodo: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez resta mais gente à beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com sua gigantescas terras improdutivas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: os sistema vomita homens. As missões norte-americanas esterilizam as mulheres e semeiam pílulas, diafragmas, DIUS, preservativos e calendários marcados, mas colhem crianças. Teimosamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu direito natural de ter um lugar ao sol nessas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a quase todos negam (GALEANO, 2017, p. 20-21). O Levantamente de Informações Penitenciárias (Infopen), de 2014[2] mais uma vez confirma isso com dado. Os negros (pretos e pardos, na classificação do IBGE), apesar de serem 53% da população brasileira, correspondem a 61% dos presos no país, e os jovens de 18 a 29 anos, 18,9% dos brasileiros, representam 55% dos encarcerados. Além disso, as pesquisas mostram que a maior parte dos presos por tráfico: não tinha antecedentes criminais, foi indiciada apenas com base no relato de policiais e não possuíam advogado constituído no momento em que foi apresentada na delegacia. Parte dos presos não carregava dinheiro no momento da prisão, e muitos afirmaram ser usuários, não traficantes. Para os pesquisadores, os resultados demonstram a seletividade do sistema penal na aplicação da lei, priorizando a prisão de “microtraficantes”, muitos dos quais podem ser, na verdade, usuários presos injustamente. A América do Sul responde por 60% das apreensões de cocaína no mundo e por praticamente toda a produção, numa área aproximada de 185.000 campos de futebol. A história de exploração e subdesenvolvimento dos países latino-americanos explica todas as incongruências e diferenças existentes na sociedade subdesenvolvida, racista e patriarcal que, ainda hoje, tem o modelo de família que centraliza na mulher toda a responsabilidade da casa e dos filhos. Quanto às mulheres, em decorrência da evolução da sociedade e a complexidade das relações humanas, que alterou toda a estrutura sócio familiar, hoje, às mulheres cabe, ainda, a liderança da família e do total de mulheres presas, “80% são mães e responsáveis principais, ou mesmo únicas, pelos cuidados de filhas e filhos”[3]. Essas mulheres encarceradas têm um perfil, de acordo com as informações penitenciárias (Infopen), em pesquisa de 2014, tratam-se de mulheres: negras, jovens e mães e, representam mais de 60% (sessenta por cento) da população carcerária de países como Argentina, Brasil e Costa Rica. Apenas no Brasil, 63% (sessenta e três por cento) das mulheres presas respondem por tráfico de drogas[4]. É importante ressaltar que esse fenômeno deu-se a partir da edição da Lei de Drogas n. 11.343, de 2006, que passou a prever a “associação criminosa”, o que causou um recrudescimento da repressão, crescendo 698% (seiscentos e noventa e oito por cento) o índice da população carcerária feminina[5]. Uma sociedade que sempre carregou nos ombros os grandes impérios europeus e que de suas grandes riquezas minerais herdou apenas o racismo, que estrutura o poder, na distribuição dos papeis sociais, na seletividade penal e na ocupação do território urbano. 3. Princípio da Proporcionalidade Juarez Cirino (2017, p. 28-29), com base na teoria constitucional germânica formulada por Alexy, discorre sobre três princípios parciais que o constituem: princípio da adequação, princípio da necessidade e princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Quanto aos dois primeiros (adequação e necessidade), deve-se questionar:
Todas essas perguntas devem ser formuladas, sucessivas e complementarmente, com o objetivo de integrar os princípios, os meios e os fins, de forma a harmonizar os princípios fundamentais com a realidade (adequação e necessidade dos meios em relação aos fins propostos). Esse princípio implícito no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, tem como finalidade proibir a aplicação de penas excessivas ou desproporcionais. Cirino (2017, p. 30) defende que a retribuição da pena ao fato punível deve ser equivalente ao desvalor de ação ou do resultado, desdobrando-se em duas dimensões o princípio da proporcionalidade, abstrata e concreta. A abstrata relacionada à criminalização primária (legislação), excluindo-se lesões insignificantes e delimitando-se a cominação de penas criminais conforme a natureza e extensão do dano social produzido pelo crime. A concreta em relação à criminalização secundária (juiz), para que se equacione os custos individuais e sociais em relação à aplicação e execução da pena. Seria o custo/benefício entre crime/pena, tendo como resultado reflexo o custo social para a condenada, sua família e a sociedade: Menos afortunadas são as que não têm família por perto, condição que as obriga a ver as crianças espalhadas em casas alheias ou recolhidas em abrigos sob a responsabilidade do Conselho Tutelar. As que têm filhos mais velhos e a felicidade de morar em casa própria muitas vezes preferem que eles vivam sozinhos porém juntos, condição na qual adolescentes de treze, quinze anos, se tornam chefes de família. O que a sociedade ganha trancando essas mulheres por anos consecutivos? O que representa, no volume geral do tráfico, a quantidade de droga que cabe na vagina da mulher? Que futuro terão crianças criadas com mãe e pai na cadeia? Quantas terão o mesmo destino? As mulheres-ponte flagradas todos os fins de semana nas portarias poderiam ser condenadas a penas alternativas e a sanções administrativas, como a proibição de entrar em presídios do estado. O preso a quem se destina a encomenda poderia ser punido com a perda de benefícios e a extensão da pena. Qualquer solução seria mais sensata que a atual: elas vão para a cadeia, os filhos ficam abandonados em situação de risco e o homem que encomendou a droga arranja outra ponte para manter o fluxo de caixa (VARELLA, 2017, p. 209). Muitas mulheres são presas portando drogas, escondidas, descobertas em razão das revistas íntimas pelas quais passam para poderem visitar seus companheiros, namorados e maridos presos, esses sim, os verdadeiros traficantes. “São mães, esposas, namoradas, tias, avós, ou irmãs de presos que juram estar condenados à morte caso não paguem dívidas contraídas com assassinos implacáveis” (VARELLA, 2017, p. 206). Após sofrerem ameaças e pressões, comprometem-se a adentrar a prisão com as drogas, que se destinam ao consumo e, até mesmo, para a comercialização dentro da prisão realizada por esses homens, porém, em razão de suas condutas, as mulheres é quem são enquadradas como traficantes. A criminalização secundária desses crimes praticados sem violência agravam o conflito social já existente representado pelo crime, pois os custos sociais dessa criminalização são maiores para essa mulher e sua família, geralmente, de classes e categorias inferiores. Observa-se, ainda, a deficiência na aplicação da Lei de Drogas, que em seu artigo 28 prevê o consumo pessoal, mas por falta de políticas públicas, estudos e debates acerca do uso de drogas, na prática, o seu reconhecimento fica a critério do entendimento dos juízes, que mesmo diante de muitos casos de apreensão de pequenas quantidades de drogas, enquadram a conduta no tráfico de drogas. De acordo com Marat apud Zaffaroni (2004, p. 342): A retribuição não pode ser justa em sociedades altamente injustas quanto ao sistema de produção (na América Latina mais de 40% da população está à margem do sistema de produção industrial) e quanto ao seu sistema de distribuição (a maior parte da renda concentra-se em uma minoria). Definitivamente, isto faz com que o retribucionismo, que tem a vantagem de denunciar os excessos biologistas e racistas do positivismo, converta-se em uma ideologia que, frequentemente, para não dizer quase sempre, sirva aos setores mais ou menos tecnocratas do segmento judicial e a seus vizinhos do sistema penal, fechando-se a qualquer dado de realidade que provenha da sociologia ou da economia, que não tem cabimento dentro da sua interpretação jurídica. Nos últimos anos, tem servido aos penalistas defensores da segurança nacional nos países do cone sul. Ou seja, não há uma análise pormenorizada de cada caso, pois se fossem observados critérios proporcionais para o retribucionismo no tráfico de drogas protagonizado pelas mulheres latino-americanas, o encarceramento seria o último meio para reprimir a conduta, simplesmente pelo fato dessas não terem relevância no mundo do crime, não apresentarem periculosidade alguma e suas prisões apresentarem um custo social elevadíssimo, tornando evidente a seletividade penal nessas prisões desnecessárias e flagrantemente ineficazes. 4. Princípio da Humanidade Princípio que leva em consideração a racionalidade e, também, a proporcionalidade, que decorre do mesmo processo histórico em que se originaram os princípios da legalidade, da intervenção mínima e da lesividade, sob o prisma da “danosidade social” (BATISTA, 2007, p. 99). Para Nilo Batista (2007), o princípio da humanidade intervém na cominação, aplicação e execução da pena, tendo por racionalidade (uma derivação da proporcionalidade) a necessidade de um sentido compatível com o ser humano, não podendo deter-se na simples retributividade, quando converte seu modo em seu fim, pois em nada se distinguiria da vingança, mas deve levar em consideração as aspirações humanas, como a proibição de pena perpétua, no quesito proporcionalidade. O princípio da humanidade deduz-se da dignidade da pessoa humana, fundamento de Estados Democráticos de Direito, conquanto proíbe penas de morte, perpétuas, forçadas, degradantes, de banimento, de trabalhos forçados e cruéis, como castrações, mutilações, esterilizações e todas as que firam a essência do ser humano (CIRINO DOS SANTOS, 2017, p. 32). Para Bodin de Moraes apud Sarlet (2013, p. 35), o substrato material da dignidade decorrem de quatro princípios jurídicos fundamentais: I) Igualdade – que, em suma, veda toda e qualquer discriminação arbitrária e fundada nas qualidades da pessoa; II) Liberdade – que assegura a autonomia ética e, portanto, capacidade para a liberdade pessoal; III) Integridade física e moral – que no nosso sentir inclui a garantia de um conjunto de prestações materiais que asseguram a vida com dignidade; IV) Solidariedade – que diz com a garantia e a promoção da coexistência humana, em suas diversas manifestações. Positivado desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), em seu artigo 8º: “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada”; na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), no artigo 5º, inciso II: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” [grifo nosso], que serviu de base para o artigo 5º, incisos III, XLIX, XLVII, da Constituição Federal Brasileira, o princípio da humanidade visa à garantida da integridade física e moral do ser humano preso. Todavia, mesmo amplamente difundido, previsto e tão falado, não é observado em nenhuma das cadeias públicas e penitenciárias do sistema penal brasileiro. Ao adentrarem o sistema prisional essas mulheres, além de serem retiradas do convívio com a sociedade e verem a desintegração do seu núcleo familiar [muitas perdem o contato com seus familiares], dentro do sistema não veem perspectivas de mudança, pois, da mesma forma que chegam: desempregadas; submissas; amedrontadas; sem preparação para concorrem às vagas do mercado de trabalho; sem estudo ou com baixa escolaridade, a maioria analfabetas (cerca de 64,77%)[6] e sem quaisquer condições que lhes deem uma chance de voltar a sonhar com um futuro diferente, assim saem e voltam para a sociedade. Em sua experiência de mais de 28 (vinte e oito anos) de contato com presos, realizando atendimento médico em São Paulo, na Casa de Detenção - Carandiru e, atualmente, na Penitenciária Feminina da Capital, o médico Drauzio Varella relata em seu livro “Prisioneiras” (2017, 78-79), várias experiências, confissões feitas pelas mulheres encarceradas e denuncia problemas comuns a todos os presídios brasileiros: O que poucos sabem é que o trabalho constitui uma das principais aspirações da massa carcerária, menos por amor a ele do que por razões fáceis de compreender: além de combater a ociosidade das horas, dos meses e anos que se arrastam – um dos flagelos mais angustiantes da vida carcerária -, a cada três dias trabalhados descontam um da pena a cumprir. [...] A maioria dos nossos presídios foi construída sem levar em conta a criação de espaços para oficinas de trabalho. [...] é preciso lembrar que não há possibilidade de trabalho sem oferta de emprego. Quantos empresários estão dispostos a contratar operários que prestem serviços no interior das prisões? Quantos julgam que a imagem da empresa seria prejudicada? Na verdade a mesma sociedade que se queixa da vida ociosa dos presídios e dos custos do sistema lhes nega acesso ao trabalho. Varella, faz ainda uma crítica à política de combate às drogas: Enquanto vigorarem as leis atuais de combate às drogas ilícitas e insistirmos em manter no regime fechado pequenos contraventores que não praticaram atos violentos, nada leva a crer que haverá saída para os problemas da superpopulação que transformaram nossas cadeias em escolas do crime. Pelo contrário: o desemprego, a falta de oportunidades para os mais jovens, a desagregação familiar e as sucessivas crises econômicas enfrentadas pelo país só vão agravá-los. Boa parte do crescimento populacional nos presídios se deveu à legislação sobre o tráfico de drogas promulgada em 2006, que endureceu as penas. Antes dela, 13% dos presos brasileiros cumpriam sentenças por tráfico. Hoje, no estado de São Paulo esse contingente é de 30% entre os homens e perto de 60% nas cadeias femininas. A situação das mulheres encarceradas, que não possuem condições mínimas de higiene, não têm atendimento e acompanhamento médico, nem mesmo quando grávidas, é, sem sombra de dúvidas, o maior exemplo de tratamento degradante, desumano e indigno. Muitas convivem com doenças infecciosas, adquiridas antes da gravidez, que se agravam por conta de não receberem tratamento médico e não terem acompanhamento pré-natal, o que acaba infectando os bebês ao nascerem. Nesses casos, após o parto, a mãe volta para o sistema penitenciário e não pode acompanhar e cuidar de seu filho durante o período em que fica internado para tratamento, tudo em razão das deficiências infraestruturais das prisões brasileiras, que não possuem a quantidade suficiente de agentes penitenciários disponíveis para escoltá-las, nem carros que possam transportá-las até o hospital, impondo à criança a ausência da mãe desde seus primeiros dias de vida. As mulheres grávidas, que se encontram presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas, correspondem a um percentual de 70,9%[7]. Cabe ressaltar, ainda, que mesmo com a aprovação da Lei 13.434/2017, vedando o uso de algemas pelas detentas, antes, durante e, inclusive, após o parto, não é isso que ocorre. Muitas grávidas dão à luz seus filhos algemadas e assim permanecem sem que possam, até mesmo, trocar a fralda de seus filhos. O momento do parto, além de ser de muita sensibilidade pois, a mulher se encontra totalmente despida e vulnerável e com os sentimentos à flor da pele, acabe se tornando um suplício para essas detentas que, além de serem acompanhadas por agentes penitenciários homens, em flagrante desrespeito à sua intimidade, não raras vezes sofrem agressões físicas e verbais. A Lei de Execução Penal, em seu artigo 82, § 2º, prevê a existência de berçários nos presídios femininos para que as mães possam cuidar e amamentar seus filhos até os 6 (seis) meses de vida, contudo, se nem condições mínimas de higiene são proporcionadas às presas, berçários são considerados artigo de luxo. 5. Considerações Finais A proibição do uso de drogas gera violência e mortes, geralmente, das pessoas mais vulneráveis (pobres, sem estudos, marginalizados, desempregados), que veem no tráfico de drogas uma oportunidade de mudança de vida rápida, focando na grande demanda e nos lucros auferidos. Porém, tudo não passa de ilusão, porque, assim como no sistema capitalista, é uma minoria que detém o domínio do mercado, restando aos demais, nesse caso, às mulheres, apenas o trabalho, a exposição à violência, ao risco de morte e à prisão. Ao terem sua liberdade privada, essas mulheres são afastadas do convívio social e familiar, deixando para trás filhos à mercê de privações materiais, porque, muitas vezes, são elas as únicas responsáveis pelo sustento da casa, iniciando-se, então, um ciclo vicioso sem fim, pois esses irão crescer sem suas mães, ficando vulneráveis ao uso de drogas e marginalidade, muitas vezes, entregues ao mesmo destino delas, correndo o risco até de serem “adotados” pelos reais traficantes. O fato dessas mulheres adentrarem o sistema prisional grávidas e ali permanecem sem o devido acompanhamento médico, sofrendo constantes violações de direitos, até que seus filhos nasçam e desde seu primeiro dia de vida paguem pelos erros de suas mães, tendo sua dignidade e liberdade violados, sujeitando-se por extensão à situação degradante em que elas já se encontram, evidencia a completa desproporcionalidade e desumanidade que o sistema penal, não só do Brasil, mas de toda a América Latina enfrenta, expondo suas falhas e a falência/fracasso da política de combate às drogas, que tem gerado índices alarmantes de mulheres responsabilizadas, em sua grande maioria, por condutas de menor ou nenhuma participação no tráfico internacional de drogas. O castigo [punição] não é um meio adequado para reagir diante de um delito e por melhor que possa vir a ser utilizado, ainda assim não surtirá os efeitos desejados, pois, o sistema inteiro foi criado para perpetuar uma ordem social injusta, seletiva e estigmatizante, de forma que até mesmo sistemas que possuam um funcionamento tido como satisfatório não deixarão de ser violentos (ACHUTTI, 2016, p. 93). Como expõe Zaffaroni (2004, p. 58), “os delinquentes pertencem aos setores sociais de menores recursos [...] Isto indica que há um processo de seleção das pessoas às quais se qualifica como ‘delinquentes’ e não, como se pretende, um mero processo de seleção de condutas ou ações qualificadas como tais”. Pune-se incorretamente, desproporcionadamente, desumanamente, inclusive, inocentes. Luana Aristimunho Vargas Paes Leme Graduada em Direito pelas Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu - Unifoz Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera - Uniderp Pós-Graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Assis Gurgacz - FAG Advogada [1] O nome atribuído ao animal híbrido, resultante do cruzamento de um jumento com uma égua, que se caracteriza por ser do sexo feminino e por servir como animal geralmente usado para o transporte de cargas. [2] Relatório Infopen. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/explicado/2017/01/14/Lei-de-Drogas-a-distin%C3%A7%C3%A3o-entre-usu%C3%A1rio-e-traficante-o-impacto-nas-pris%C3%B5es-e-o-debate-no-pa%C3%ADs>. Acesso em: 28 de agosto de 2017. [3] População carcerária feminina cresce 700% em dezesseis anos no Brasil. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/26/populacao-carceraria-feminina-cresce700-em-dezesseis-anos-no-brasil.htm>. Acesso em: 28 de agosto de 2017. [4] Relatório Infopen. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 10 de setembro de 2017. [5] População carcerária feminina cresce 700% em dezesseis anos no Brasil. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/26/populacao-carceraria-feminina-cresce-700-em-dezesseis-anos-no-brasil.htm>. Acesso em: 28 de agosto de 2017. [6] Dos 574 mil detentos e detentas no Brasil, apenas 20% trabalham e 8,6% estudam. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2017/07/26/dos-574-mil-detentos-e-detentas-no-brasil-apenas-20-trabalham-e-86-estudam/index.html>. Acesso em: 20 de outubro de 2017. [7] Estudo revela o drama das presas grávidas no Brasil: “depois do parto, eles me algemaram”. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/09/11/estudo-revela-drama-das-presas-gravidas-no-brasil-depois-do-parto-eles-me-algemaram/>. Acesso em: 12 de setembro de 2017. Referências ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 20 de setembro de 2017. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210compilado.htm>. Acesso em: 20 de setembro de 2017. BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 20 de setembro de 2017. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: parte geral. 7. ed., rev. atual. ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. CONRADO, Hysabella. Estudo revela o drama das presas grávidas no Brasil: “depois do parto, eles me algemaram”. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/09/11/estudo-revela-drama-das-presas-gravidas-no-brasil-depois-do-parto-eles-me-algemaram/>. Acesso em: 12 de setembro de 2017. FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015. GALEANO, Eduardo. 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