Artigo da colunista Paula Yurie Abiko no sala de aula criminal, sobre a necessidade de homologação das faltas graves apenas após o trânsito em julgado da sentença condenatória, vale a leitura! ''Nos casos concretos da execução penal, portanto, devem ser homologadas faltas graves nos crimes dolosos e determinadas regressões de regime em ações penais posteriores, apenas após o trânsito em julgado, com fundamento no princípio da presunção de inocência. Nesse sentido, o entendimento anterior era uma ofensa a presunção de inocência, tendo em vista o expresso teor do texto constitucional que apenas deve considerar culpado um indivíduo após o trânsito em julgado de sentença condenatória irrecorrível''. Por Paula Yurie Abiko 1.1. ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS ADC’S 43, 44 E 54 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A presunção de inocência consta no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, e é classificada dentro dos direitos e garantias individuais. Isso quer dizer que os referidos direitos constituem cláusula pétrea no ordenamento jurídico brasileiro, nos termos do que dispõe o artigo 60, §4º, inciso IV da Constituição Federal, devendo ser devidamente analisado e aplicado nos casos concretos, inclusive no âmbito da execução penal. A Súmula 526 do STJ dispõe que não seria necessário trânsito em julgado de sentença penal condenatória para se impor falta grave nos crimes dolosos, diante de nova prática delitiva. Referida súmula foi editada sob égide de entendimento jurídico prevalecente, o qual teria sido proferido na vigência do entendimento anterior do HC 126.292 do Supremo Tribunal Federal, o qual previa a desnecessidade de trânsito em julgado para execução provisória da pena, gerando como consequência a prisão de pessoas antes do termo da ação penal. O habeas corpus referia-se ao entendimento que fora posteriormente superado com as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43[1], 44 e 54. Vale dizer, a Súmula 526 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe acerca da desnecessidade de trânsito em julgado de nova ação penal para se impor falta grave perdeu a eficácia com o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54 do STF, na qual se reafirmou a interpretação do artigo 5º, LVII da Constituição Federal que impõe a presunção de inocência até sentença condenatória irrecorrível. A consequência é a interrupção da execução provisória de pena e a reafirmação da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. A Súmula 526 do Superior Tribunal de Justiça foi baseada em precedente julgado pelo rito do recurso repetitivo. No julgamento do REsp 1.336.561, o colegiado entendeu que o reconhecimento de falta grave decorrente do cometimento de fato definido como crime doloso no cumprimento da pena prescinde do trânsito em julgado de sentença penal condenatória no processo penal instaurado para apuração do fato, mas esse entendimento fora firmado antes do julgamento das ADCS, 43, 44 e 54 do Supremo Tribunal Federal, no qual reafirmou-se a presunção de inocência até sentença condenatória não mais sujeita a recursos. Após meses de escuridão, novamente a presunção de inocência claramente trazida na redação do art. 5º, LVII da Constituição Federal voltou a luz. Portanto, se antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória não é possível apreciar os requisitos formais para a execução da pena, as ações penais posteriores dos apenados devem ser valoradas apenas após o trânsito em julgado. Nos casos concretos da execução penal, portanto, devem ser homologadas faltas graves nos crimes dolosos e determinadas regressões de regime em ações penais posteriores, apenas após o trânsito em julgado, com fundamento no princípio da presunção de inocência. Nesse sentido, o entendimento anterior era uma ofensa a presunção de inocência, tendo em vista o expresso teor do texto constitucional que apenas deve considerar culpado um indivíduo após o trânsito em julgado de sentença condenatória irrecorrível. Ademais, a previsão da presunção de inocência não está prevista apenas no texto constitucional, mas também em diversos tratados internacionais nos quais o Brasil é signatário, nesse sentido expõe ROIG[2]: ‘’O princípio da presunção (na verdade estado) de inocência remonta ao art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (“Tout homme étant présumé innocent jusqu’à ce qu’il ait été déclaré coupable”), sendo concebido no intuito de assegurar garantias àqueles que, até então, eram unicamente vistos como objeto do processo’’. O princípio também consta na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, o Pacto de San José da Costa Rica, também dispõe no artigo 8º, item 2, que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”[3]. 1.2. Há presunção de inocência na execução penal? Conforme o que dispõe a Constituição da República e os tratados internacionais nos quais o Brasil é signatário, é fundamental o reconhecimento da presunção de inocência na execução penal, de modo que homologações de faltas graves nos crimes dolosos e regressões de regime prisional só sejam efetuadas após o trânsito em julgado, nos termos do que dispõe o artigo 52 da Lei de Execução Penal[5]. Ocorre que a aplicação do princípio da presunção de inocência ainda não é aplicado de forma ampla, e quando aplicado, recorrentes são os recursos interpostos insurgindo-se contra as decisões proferidas. A presunção de inocência na execução penal é importante não apenas nos casos de manutenção de regime e não regressão a regime prisional mais gravoso, mas também para a concessão de benefícios como comutação e indulto. A comutação possui o intuito de auxiliar indivíduos com bom comportamento carcerário, que não tiveram nos últimos meses de promulgação do decreto presidencial a homologação de falta grave, possibilitando a redução da pena caso cumprido 25% da pena (se primários em delitos comuns), ou 33% da pena (quando reincidentes em delitos comuns), já que não é possível comutação e indulto em ações penais com delitos hediondos. O indulto é possível de concessão quando o apenado cumpriu 50% da pena em uma ação penal, e possui bom comportamento carcerário. As regras podem variar de um decreto presidencial para o outro, mas em regra não é possível o indulto de pena para apenados com penas superior a 8 anos de reclusão. Fato é, não considerar a presunção de inocência em ação penal posterior é uma afronta a todos os princípios e tratados internacionais mencionados, além de prejudicar os direitos individuais dos apenados. Conforme ressalta ROIG[6]: ‘’ Subordinar a concessão dos direitos da execução penal à presunção de que o condenado não voltará a delinquir significa claro atentado ao princípio do estado de inocência, na medida em que vincula o gozo de um direito ao mero exercício de futurologia, sem amparo empírico, além de transversamente impor a inversão do ônus da prova em desfavor do próprio preso’’. É fundamental o reconhecimento da presunção de inocência na execução penal em ações penais posteriores, e importante buscar o cumprimento da Constituição da República, a tutela dos direitos dos apenados, bem como para o cumprimento dos tratados internacionais nos quais o Brasil é signatário, ressaltando Beiras[7] nesse sentido: ‘’ Em primeiro lugar cabe afirmar, em atenção ao desenvolvimento de uma política em matéria penal que seja respeitosa da legalidade e da proteção dos direitos fundamentais, que sua implementação deve necessariamente se comprometer a cumprir com os ditames dos organismos internacionais de direitos humanos dos quais o país é signatário’’. 1.3. Necessidade de homologação das faltas graves apenas após o trânsito em julgado, presunção de inocência e direitos individuais. A homologação de faltas graves possui vários reflexos no cumprimento de penas dos apenados, e o artigo 50 da Lei de Execução Penal estabelece as condutas que classificam-se como faltas graves. As faltas graves possuem rol taxativo, nos termos dos artigos 50, 51 e 52 da Lei de Execução Penal. Com o advento da lei nº 13.964/2019, houve a inclusão como falta grave no inciso III do artigo 50, que dispõe: “recusar submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético”, ressaltando LEBRE nesse sentido[8]: ’’Visivelmente, a intenção do legislador foi a de forçar (coibir) o preso a realizar o referido exame, ainda que contra a sua vontade, para não sofrer as consequências da infração disciplinar’’. As faltas graves são analisadas concomitantemente com os estatutos penitenciários de cada estado, no Paraná, o estatuto do DEPEN dispõe sobre as sanções disciplinares por falta grave no artigo 64, inciso III. Quando uma falta grave é homologada em uma ação penal, seja por fuga do apenado da unidade prisional, ou outro delito em ação penal posterior, é fundamental a elaboração do PAD, procedimento administrativo disciplinar, de modo que a sua ausência enseja nulidade absoluta do incidente de falta grave. Ressalta-se que a obrigatoriedade do PAD incide sobre todas as faltas disciplinares no âmbito da execução penal. Ainda dispõe o Superior Tribunal de Justiça na Súmula 533 que “para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado”. Conforme ressalta AVENA[9]: ‘’ A falta grave, uma vez apurada e homologada, será registrada no prontuário do condenado, interferindo na concessão ou manutenção de benefícios’’. Além disso, a homologação de faltas graves altera a data base para a progressão de regime e concessão do livramento condicional[10], benefícios importantes para os apenados no âmbito da execução penal. Fato é, a presunção de inocência é um princípio fundamental, e deve ser seguido na execução penal em ações penais posteriores sem o trânsito em julgado, eis que após o julgamento das ADC’s 43, 44 e 54 do Supremo Tribunal Federal, e o reconhecimento da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, somente podem ser considerados culpados quando houver o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. É no mínimo desarrozoado e desproporcional regredir os apenados de regime e homologar faltas graves, observado o impacto das respectivas sanções disciplinares na pena dos apenados, antes do trânsito em julgado e formação da culpa, eis que em vários casos podem vir a ser absolvidos posteriormente. Além disso, é importante considerar o caótico cenário do cárcere brasileiro, e o reconhecido estado de coisas inconstitucional declarado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347. Considerar a presunção de inocência em ações penais posteriores, portanto, é apenas uma forma de minimizar essas afrontas aos direitos e garantias individuais dos apenados no sistema prisional. Paula Yurie Abiko Advogada (OAB/PR, nº 108.747). Aluna ouvinte na disciplina de Execução Penal e sistema penitenciário, PPGD Mestrado (UFPR), coordenado pelo Professor André Giamberardino. Graduada em direito – Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE). Especialista em Direito Penal e Processual Penal – Academia Brasileira de Direito Constitucional. Pós graduanda em Direito Digital (CERS). Membro do grupo de estudos em Filosofia do Direito da FAE Centro Universitário: O mal estar no Direito, Membro do Grupo de Pesquisa: Modernas Tendências do Sistema Criminal. Membro do grupo de pesquisas: Trial By Jury e Literatura Shakesperiana (Cnpq). Membro Associada do International Center for Criminal Studies. Membro do grupo de estudos avançados de teoria do delito, IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Membro do NUPEJÚRI (Grupo de pesquisas de Tribunal do Júri da FAE Centro Universitário (Cnpq), Membro do Neurolaw (grupo de pesquisas de direito penal e neurociências (Cnpq). Colunista do Sala de Aula Criminal (ISSN: 2526-0456) e Canal Ciências Criminais (ISSN: 2446-8150).Colunista Direito e Arte – Empório do Direito (ISSN: 2446-7405). Integrante da comissão de criminologia crítica do canal ciências criminais. Integrante da comissão de Direito & literatura do Canal ciências criminais. Link do currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2536291667706242. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: AVENA, Norberto, Execução penal, 5ª edição, revista, atualizada e ampliada, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2018. BEIRAS, Iñaki Rivera, Desencarceramento por uma política de redução da prisão a partir de um garantismo radical, tradução Bruno Rotta Almeida, Maria Palma Wolff, 1ª edição, Florianópolis, Tirant Lo Blanch, 2019. BRASIL, Lei de Execução Penal nº 7.210/1984, <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>, acesso em 02 de fev. de 2021. DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro, Difel, 2018. LEBRE, Marcelo. Pacote Anticrime: anotações sobre os impactos penais e processuais. Curitiba: Editora Aprovare, 2020. ROIG, Rodrigo Duque Estrada, Execução penal: teoria crítica, 4ª edição, São Paulo: Saraiva Educação, 2018. NOTAS: [1] Referente a Ação Declaratória de Constitucionalidade 43, ‘’Decisão: O Tribunal, por maioria, nos termos e limites dos votos proferidos, julgou procedente a ação para assentar a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011, vencidos o Ministro Edson Fachin, que julgava improcedente a ação, e os Ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia, que a julgavam parcialmente procedente para dar interpretação conforme. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 07.11.2019’’, acesso em 21 de dezembro de 2020. http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4986065, (grifos nossos). [2] ROIG, Rodrigo Duque Estrada, Execução penal: teoria crítica, 4ª edição, São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 40. [3] ROIG, Rodrigo Duque Estrada, Execução penal: teoria crítica, 4ª edição, São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 40. [4] Ademais, quando não há uma preocupação em garantir os direitos individuais dos apenados, denota-se o aumento do poder punitivo sem refletir sobre os impactos do cárcere na sociedade em totalidade. Ressalta DAVIS:‘’a prisão funciona ideologicamente como um local abstrato no qual os indesejáveis são depositados, livrando-nos da responsabilidade de pensar sobre as verdadeiras questões que afligem essas comunidades das quais os prisioneiros são oriundos em números tão desproporcionais’’, DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro, Difel, 2018, p. 16. [5] BRASIL, Lei de Execução Penal nº 7.210/1984, ‘’Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasionar subversão da ordem ou disciplina internas, sujeitará o preso provisório, ou condenado, nacional ou estrangeiro, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado’’, <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>acesso em 02 de fev. de 2021. [6] ROIG, Rodrigo Duque Estrada, Execução penal: teoria crítica, 4ª edição, São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 41. [7] BEIRAS, Iñaki Rivera, Desencarceramento por uma política de redução da prisão a partir de um garantismo radical, tradução Bruno Rotta Almeida, Maria Palma Wolff, 1ª edição, Florianópolis, Tirant Lo Blanch, 2019, p. 74. [8]LEBRE, Marcelo. Pacote Anticrime: anotações sobre os impactos penais e processuais. Curitiba: Editora Aprovare, 2020, p. 79. [9] AVENA, Norberto, Execução penal, 5ª edição, revista, atualizada e ampliada, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2018, p. 103. [10] O livramento condicional é a antecipação da liberdade após cumpridos os requisitos objetivos e subjetivos. Os requisitos objetivos são o cumprimento de 50% das penas cominadas, e o requisito subjetivo o bom comportamento carcerário e não homologação de faltas graves, ressalta ROIG ainda: ‘’O livramento condicional, assim como ocorre com outros direitos da execução penal, deve ser passível de reconhecimento de ofício pelo Juiz da execução. Sua denegação, por outro lado, não pode ocorrer de ofício, sob pena de nulidade, haja vista a necessidade de se assegurar ampla defesa ao condenado (art. 112, § 2º, da LEP)’’, ROIG, Rodrigo Duque Estrada, Execução penal: teoria crítica, 4ª edição, São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 208.
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