1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL
HC 419.157/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 28/11/2017, DJe 04/12/2017. Ementa do julgado: HABEAS CORPUS. VIAS DE FATO, AMEAÇA E RESISTÊNCIA. CONDENAÇÃO. APELAÇÃO. RAZÕES RECURSAIS APRESENTADAS PELA DEFENSORIA PÚBLICA. PEÇA TOTALMENTE GENÉRICA E QUE FAZ MENÇÃO A OUTRO CRIME. AUSÊNCIA DE DEFESA TÉCNICA. NULIDADE. RECONHECIMENTO. CONCESSÃO, EM MENOR EXTENSÃO. 1. Hipótese em que as razões de apelação foram oferecidas pela Defensoria Pública em peça totalmente genérica, sem qualquer menção a fato ou circunstância relativa ao caso concreto. O documento serviria para qualquer processo, limitando-se a requerer a absolvição por falta de provas. O único trecho que seria específico menciona o crime de violação de direito autoral, que não corresponde ao crime a que foi condenado o paciente. O próprio Ministério Público requereu a devolução dos autos para regularização da defesa, mas o Desembargador relator não acolheu o pleito. 2. A garantia da ampla defesa biparte-se na autodefesa e na defesa técnica, sendo esta última irrenunciável. Nesse diapasão, revela-se nulo o processo no qual são apresentadas razões de apelação genéricas, com menção a crime diverso daquele tratados nos autos. 3. Até a formulação das alegações finais, não se constata ilegalidade, pois tal peça processual indicou circunstâncias do caso concreto e argumentos que demonstram o estudo do processo e a existência de suficiente defesa. O vício somente ocorreu com a formulação das razões recursais. 4. Ordem concedida, em menor extensão, para anular a ação penal a partir do oferecimento das razões recursais, inclusive. 2 O CASO M.J.V. foi denunciado e condenado pela prática das infrações penais de vias de fato, ameaça e resistência, praticados em contexto de violência doméstica à pena de 6 meses e 22 dias de detenção, tendo sido a ele concedido o benefício de suspensão condicional da pena pelo prazo de dois anos. Intimado da sentença, manifestou seu desejo de recorrer e a defensoria pública foi intimada para oferecimento das razões recursais, in verbis: Não merece prosperar a sentença condenatória proferida no presente processo, tendo em vista a insuficiência de provas com relação aos fatos imputados pela acusação. Como se sabe o ônus da prova compete ao Ministério Público no processo penal brasileiro, impondo-se a improcedência da denúncia quando a acusação não obtém êxito no sentido de apresentar provas suficientes, que produzam a certeza absoluta da culpabilidade do réu pelo fato. Diante de provas duvidosas sobre a materialidade do crime de violação de direito autoral, deve o nobre Julgador absolver o réu, pois uma condenação baseada em provas duvidosas viola os mais básicos direitos e garantias constitucionais do acusado. O mestre italiano Luigi Ferrajoli, por sua vez, menciona que a presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, mesmo que isto acarrete na impunidade de algum culpado, pois, ao corpo social, basta que os culpados sejam geralmente punidos, sob o prisma de que todos os inocentes, sem exceção, estejam a salvo de uma condenação equivocada. Se ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, como dispõe o inciso LVII do art. 5º, é de rigor que, em caso de dúvida, a decisão seja dada em prol do acusado, pois um juízo condenatório deve ser baseado em um lastro mínimo de certeza. Neste sentido temos posicionamento do grande Mestre Tourinho Filho, nos seguintes termos: "Cabe, pois, à parte acusadora provar a existência do fato e demonstrar sua autoria. Também lhe cabe demonstrar o elemento subjetivo que se traduz por dolo ou culpa. Se o réu goza de presunção de inocência, é evidente que a prova do crime, que a parte objetiva, quer a parte subjetiva, deve ficar a cargo da acusação". Nesta linha de pensamento, se não logrou êxito o Ministério Público em arregimentar aos autos elementos probatórios convincentes, imprescindível, para se evitar o risco de um grave erro judiciário, o reconhecimento da inocência do denunciado, como bem reconhecida pela sentença, pois não lhe cabe provar a ausência de culpa, já que predomina em nosso Direito Constitucional o princípio da presunção de inocência. Com efeito, de acordo com o art. 386, inciso VII, do CPP., não havendo nos autos provas suficientes da autoria e materialidade do delito imputado, deve o Julgador proferir sentença absolutória, somente sendo possível a condenação quando farta e inconteste a prova da responsabilidade penal, o que, definitivamente, não é a hipótese dos presentes autos. Neste diapasão, temos o ensinamento do grande Jurista Mirabete, nos seguintes termos: "Por último, deve ser absolvido o réu se "não existir prova suficiente para a condenação". Refere-se a lei genericamente aos casos em que, excluídas todas as hipóteses anteriores, não pode se a ação julgada procedente por falta de provas indispensáveis à condenação. Assim, é cabível quando houver dúvida quanto à existência de uma causa excludente de ilicitude ou culpabilidade alegadas e que, embora não comprovadas, levam à absolvição pelo in dúbio pro reo". Ante o exposto, requer o apelante seja dado provimento ao presente apelo para ser reformada a sentença condenatória, para que seja julgada improcedente a denúncia por insuficiência de provas, na forma do art. 386, inciso VII do código de processo penal, por ser esta a decisão que representa no presente caso a mais cristalina Justiça. Em seu parecer, a Procuradoria de Justiça arguiu preliminar de nulidade da apelação em razão de deficiência técnica das razões, uma vez que foram genéricas. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou provimento ao recurso de apelação, ignorando a preliminar levantada pelo parquet, razão pela qual foram opostos embargos de declaração, os quais foram negados, conforme se vê: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO NO EXAME DA PRELIMINAR ARGUIDA PELA PROCURADORIA DE JUSTIÇA POR OCASIÃO DO OFERECIMENTO DO PARECER. Razão assiste à douta Procuradoria de Justiça. Com efeito, o acórdão foi omisso, já que não se manifestou expressamente acerca da preliminar arguida por aquele órgão, consubstanciada na alegação de que o recurso defensivo, “além de genérico, contém referência a outro fato que não o destes autos (‘violação de direito autoral’)”, entendendo estar o apelante indefeso. A preliminar, no entanto, não merece acolhimento. Conforme já restou assente no despacho exarado pelo Desembargador Relator (pasta eletrônica 189), não se pode afirmar que as razões oferecidas pelo Defensor Público, em que pese serem genéricas, deixaram o apelante indefeso tão somente por constar da referida peça a expressão “violação do direito autoral”, e não “vias de fato e ameaça”. O entendimento a que se chega é da ocorrência apenas de erro material. Ademais, vale ressaltar que o recurso defensivo possui amplo e irrestrito campo temático, devolvendo ao Tribunal o exame de toda a matéria, o que efetivamente ocorreu. DECLARATÓRIOS CONHECIDOS E ACOLHIDOS, para rejeitar a preliminar arguida pela douta Procuradoria de Justiça. Por fim, foi impetrado Habeas Corpus substitutivo ao Superior Tribunal de Justiça, o qual concedeu a ordem para anular o processo a partir do oferecimento das razões recursais. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO A Ministra Relatora demonstrou que as razões recursais tiveram “caráter totalmente genérico, serviria para qualquer processo, limitando-se a requerer a absolvição por falta de provas.”, destacando que referência ao crime, inclusive, foi feita de forma equivocada. Causou maior preocupação à Ministra a afirmação do Desembargador relator do acórdão dos embargos de declaração, pois o mesmo destacou que "os recursos subscritos por esse Defensor Público, via de regra, são semelhantes ao ora em exame". Segundo a Ministra, a afirmação do Desembargador só veio corroborar a ineficiência e, consequente, nulidade da defesa, uma vez que comprova que o Defensor Público se utiliza de um modelo genérico para todas as defesas. Nas palavras da Ministra “o Defensor Público limitou-se a utilizar um modelo genérico e alterar apenas o nome do paciente, sem sequer adequar o delito a que foi condenado. Tal contexto demonstra uma situação de total falta de defesa técnica.”. 4 PROBLEMATIZAÇÃO Para que exista ampla defesa no processo penal não basta que haja a apresentação de petições ou mesmo a representação por advogado constituído. A defesa deve ser ampla ou plena. Corriqueiramente, verificam-se processos nos quais os defensores se limitam a fazer alegações genéricas; copiar integralmente peças anteriores; deixam de trazer teses jurídicas facilmente constatáveis, fazer citações doutrinárias e jurisprudenciais. Muito embora seja dificil afirmar até onde as teses poderiam influenciar no julgamento, é inequívoco que o acusado acaba por perder uma chance de convencer ao julgador. Quando o acusado fica desprovido de defesa no processo, tal qual no caso em análise, o mesmo acaba por se tornar nulo. Neste sentido, ainda que desatualizada com a Constituição Federal: STF Súmula nº 523 - 03/12/1969 - DJ de 10/12/1969, p. 5933; DJ de 11/12/1969, p. 5949; DJ de 12/12/1969, p. 5997. Processo Penal - Falta ou Deficiência da Defesa - Nulidade e Anulabilidade No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu. À despeito da redação da súmula, sequer se pode pensar que a ausência de defesa técnica substancial é causa de nulidade relativa, pois se trata de matéria referente à ampla-defesa, direito que integra o rol dos direitos fundamentais. Ao analisar a súmula, Aury LOPES JR. traz importante lição: “A súmula nº 523 STF gera uma situação paradoxal, […] Não é necessário maior esforço para verificar o erro de considerar que o oposto de ampla seria a falta. Ora, se a Constituição assegura a 'ampla' defesa, sua antítese é a defesa restrita ou deficiente, sendo essa situação causa de nulidade. O que a Súmula do STF diz é: o contrário de 'ampla' é 'falta' e, portanto, a defesa deficiente ou restrita não viola a garantia constitucional. O equívoco é manifesto, mas, infelizmente, a Súmula é constantemente invocada e utilizada por sua própria imperfeição. Ou seja, é um erro que legitima a violação da garantia constitucional.”[1] No mesmo sentido que Lopes Jr., Lúcio Santoro de CONSTANTINO afirma que a única interpretação possível quanto à súmula é de que a falha na defesa técnica gera nulidade absoluta: Ocorre que em um estudo mais atencioso e jungido ao garantismo constitucional, podemos observar que a segunda parte “... sua deficiência só a anulará se houver prova de prejuízo para o réu” traz, por si só, a mácula da nulidade absoluta. É que se existe deficiência na defesa é evidente o prejuízo ao acusado. Uma defesa deficiente é uma defesa carente, limitada, ou seja sem eficiência. Nestas condições, o prejuízo é manifesto. Ora, se existe uma acusação eficiente e o acusado tem direito à ampla defesa, jamais esta poderá ser limitada pela deficiência. (…) tratar-se-á de nulidade absoluta, pelo evidente prejuízo.”[2](2009, p.77) Em um processo que se pretende democrático, é de importância singular que haja um equilíbrio de competência entre a acusação e a defesa. Quando o defensor de qualquer acusado não se mostrar a altura da defesa dos interesses processuais deveria ser substituído por outro. A defesa dos acusados constitui requisito indispensável à ordem pública. Como bem salienta Leonardo Costa de PAULA, “para efetivar o controle da prova é necessário que o acusado esteja amparado por um defensor que não pode ter somente a qu1alificação profissional de advogado, e impõe-se que tenha capacidade e compromisso suficiente para responder à acusação. Em contrário, o acusado não terá o efetivo respeito ao preconizado pela sua obrigatoriedade de defesa.”[3] Neste sentido, o informativo 693 do Supremo Tribunal Federal trouxe caso muito significativo, no qual o advogado se limitou a copiar peças anteriores: Advogado e defesa técnica - 1 A 1ª Turma iniciou julgamento de habeas corpus em que se pretende a declaração de nulidade do processo, em virtude de ausência de defesa ou dos atos praticados por advogado que, com inscrição suspensa na OAB, apresentara as razões de apelação. Sucessivamente, pleiteia a fixação da pena-base no mínimo legal e, no tocante ao acréscimo decorrente da continuidade delitiva, o estabelecimento da fração mínima de 1/6. Requer, ainda, a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, nos moldes do art. 44 do CP. Na situação em exame, trata-se de paciente condenado definitivamente a 5 anos de reclusão por infringir o previsto no art. 1º, I, da Lei 8.137/90 (“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”). HC 110271/ES, rel. Min. Marco Aurélio, 18.12.2012. (HC-110271) Advogado e defesa técnica - 2 O Min. Marco Aurélio, relator, julgou extinto o habeas, ao entender ser substitutivo de recurso ordinário constitucional, mas concedeu, de ofício, a ordem para declarar nulo o processo a partir, inclusive, das alegações finais. A princípio, assinalou que a dosimetria da pena, presentes as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, seria problemática a resolver-se no campo da justiça ou injustiça e não da ilegalidade. Na sequência, explicitou que o advogado, em alegações finais, teria apenas consignado a necessidade de citar-se determinada pessoa, ao discorrer acerca do veiculado por outra acusada. Enfatizou que, após sentença de inúmeras folhas, as razões da apelação praticamente implicariam a repetição da peça de alegações, sem buscar infirmar os fundamentos da decisão condenatória. Asseverou que a cláusula consoante a qual ninguém será julgado sem defesa técnica, observável em qualquer instância, não surgiria simplesmente formal. Exigir-se-ia desempenho do profissional da advocacia nesse contexto. Assim, na apelação, mostrar-se-ia indispensável o exame das premissas do pronunciamento judicial para impugná-las, o que não teria acontecido. Após, pediu vista a Min. Rosa Weber. HC 110271/ES, rel. Min. Marco Aurélio, 18.12.2012. (HC-110271) Não se pode afirmar que a nulidade em questão é relativa ou que o momento adequado de arguí-la preclui, pois não se pode vincular a garantia de ampla-defesa dos acusados (em geral, pessoas leigas), aos erros de seus defensores. Por isso, assiste razão a PAULA quando afirma que: Preclusão para arguição da nulidade é pressupor que todo defensor técnico é mais aproximado do ideal possível. Obriga e vincula o réu aos erros de seus defensor, pois esse último pode ter deixado de se manifestar na hora oportuna. Com essa premissa, se aceita a ponderação da amplitude de defesa, passando a ser mera representação de defesa, e não substancial e plena.[4](2013, p.148) Destarte, imprescindível que seja resguardo o direito fundamental à ampla-defesa e, tão logo seja constatado vício na defesa, seja oportunizado ao acusado constituir outro defensor. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Processo Penal Especialista em Direito e Processo Penal Especialista em Ciências Criminais e Práticas de advocacia criminal Pós graduando em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. REFERÊNCIAS CONSTANTINO, Lúcio Santoro de. Nulidades no Processo Penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Vol. 1. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. PAULA, Leonardo Costa de. As nulidades no Processo Penal: sua comparação por meio da afirmação do Direito como Controle ao Poder de Punir. Curitiba: Juruá, 2013. [1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol.1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 447. [2] CONSTANTINO, Lúcio Santoro de. Nulidades no Processo Penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009. p. 77. [3] COSTA DE PAULA, Leonardo. As nulidades no Processo Penal: sua comparação por meio da afirmação do Direito como Controle ao Poder de Punir. Curitiba: Juruá, 2013. [4] ob. cit. p. 148. Comments are closed.
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