Ana Cristina Gmach e Ana Paula Greim Alves no sala de aula criminal, tratando sobre a onerosidade da prova testemunhal, vale a leitura! ''As falsas memórias afetam diretamente o direito penal, onde atualmente a declaração da testemunha tem extrema, valoração no mundo das provas, sendo que está a rainha das provas pode ser na verdade um grande erro. Erro este, capaz de levar a prisão uma pessoa inocente, simplesmente pelo fato de apresentar características em comum com aquele que cometeu o crime ou pelo próprio despreparo da atuação estatal''. Por Ana Cristina Gmach e Ana Paula Greim Alves Muito se ilude aquele que ainda tem a esperança de que a memória[1] seria como uma máquina fotográfica, onde uma vez registrada a cena, ali sempre ficará guardada e quando desejar revê-la basta procurar. Porém, a memória humana é falha e extremamente interessante sendo capaz de produzir o que se denomina falsas memórias, onde o sujeito pode ter certeza de determinada cena ou fato, de que nem se quer foi vivenciado. Da mesma forma, o cérebro humano é capaz de suprimir[2] memórias traumáticas, não permitindo que elas sejam revividas como realmente aconteceram.
As falsas memórias afetam diretamente o direito penal, onde atualmente a declaração da testemunha tem extrema valoração no mundo das provas, sendo que está a rainha das provas pode ser na verdade um grande erro. Erro este, capaz de levar a prisão uma pessoa inocente, simplesmente pelo fato de apresentar características em comum com aquele que cometeu o crime ou pelo próprio despreparo da atuação estatal. A testemunha é um homem, um homem com seu corpo e com sua alma, com seus interesses e com suas tentações, com suas recordações e com seus ouvidos, com sua ignorância e com sua cultura, com sua valentia e com seu medo. Um homem que o processo coloca numa posição incômoda e perigosa, submetido a uma espécie de requisição por utilidade pública, separado de pública, separado de seu negócio e de sua paz, utilizado, exprimido, inquirido, convertido em objeto de suspeito. Não conheço um aspecto da técnica penal mais preocupante que o que se refere ao exame e até, em geral, ao trato da testemunha. Também aqui, por demais, a exigência técnica termina por se resolver em uma exigência moral: se ela devesse se resumir em uma fórmula colocaria no mesmo o respeito à testemunha e o respeito ao imputado. No centro do processo, em última análise, não estão tanto o imputado, ou a testemunha, quanto o indivíduo. Todos sabem que a prova testemunhal é a mais enganosa de todas as provas; a lei a rodeia de muitas formalidades, que desejavam prevenir os perigos; a ciência jurídica chega até o ponto de considerá-la um mal necessário; a ciência psicológica regula e inventa inclusive instrumentos para sua valoração, ou seja, para distinguir a verdade da mentira, mas o melhor modo de garantir o resultado tem sido e sempre será o de reconhecer um homem e conceder-lhe o respeito que todo homem merece[3]. Uma das provas muito utilizadas é a de reconhecimento do autor pela testemunha, podendo ser feita pessoalmente ou por fotografias, no ordenamento jurídico brasileiro não há regulamento especifico para determinada fonte de prova, sendo utilizado apenas em teoria o que está previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal[4]. Porém esse procedimento não acaba sendo um padrão único, onde cada autoridade realiza de sua maneira e a testemunha pode acabar induzida a erro. Perguntas repetitivas a testemunha, sugestionamentos de qual seria o suspeito, marcas como tatuagens e cicatrizes, impressões pessoais e o tempo após o crime, podem acabar levando a um reconhecimento errôneo pela testemunha. Além disso, a questão de instruir a testemunha antes do reconhecimento de que pode ou não o autor ser um daqueles suspeitos, faz total diferença, devido ao fato de que a testemunha ou a própria vítima acreditam ter a responsabilidade de reconhecer um deles como autor. Já nos Estados Unidos o procedimento segue um padrão, onde foi criado o documento pelo Departamento de Justiça chamado "Evidência da Testemunha Ocular: um guia para a aplicação da lei"[5], onde está contido várias orientações de como deve ocorrer o reconhecimento e como a autoridade deve se dirigir a testemunha durante esse ato, com o fim de evitar possíveis erros. Ocorre no sistema uma supervalorização da palavra da testemunha como prova no ordenamento jurídico, o que já levou muitos inocentes para trás das grades injustamente, enquanto o verdadeiro autor do crime estava em sua liberdade. Infelizmente, a justiça humana está feita de tal maneira que não somente se faz sofrer os homens porque são culpados, senão também para saber se são culpados ou inocentes[6]. No estado do Rio de Janeiro no ano de 2015 foi realizada uma pesquisa[7] pelo Instituto Sou da Paz, que visa contribuir para implementação de políticas públicas, do qual se chegou ao resultado que das 7,734 pessoas detidas provisoriamente cerca de 54% dessas pessoas foram encarceradas erroneamente, ou seja, 4.211 pessoas estavam presas indevidamente, foram considerados inocentes. No Chile foi criado um projeto chamado Proyecto Inocentes[8] que trabalha com base em uma defensoria pública e possui como objetivo mostrar as autoridades e para a sociedade, através de casos concretos do próprio país que o sistema de justiça pode cometer erros e que é necessário corrigi-los desde o próprio processo de investigação. Sendo assim, vem trazendo elementos dos principais tipos de provas não cientificas que levam inocentes a prisão, principalmente a prova de reconhecimento pela vítima ou testemunha. Os principais erros nesse procedimento são o reconhecimento sugestionado pela autoridade, suspeitos sem mínimas características físicas em comum, um único suspeito apresentado de acordo com a descrição, entre outros fatores que levaram inocentes serem privados de sua liberdade. Nesse projeto há uma imensa lista de nomes e seus respectivos casos judiciais, em que pessoas foram presas erroneamente devido erros processuais, erros pessoais de autoridades como de identificação e erros em práticas pseudocientíficas como no caso do reconhecimento. Nos Estados Unidos desde 1942 ocorre o Innocence Project[9] que tem como objetivo libertar inocentes presos injustamente no país, como também prevenir condenações de inocentes criando uma justiça mais jutas e equitativa. Combatendo principalmente casos raciais que é muito comum com estadunidenses. De acordo com dados deste projeto muitas pessoas foram condenadas pela justiça e libertadas pela ciência, onde cerca de 69% das 375 condenações de inocentes por reconhecimento de testemunhas, foram anuladas por evidencias de DNA após já terem ocorrido os julgamentos. Como forma de evitar essas condenações de inocentes o projeto visa trazer uma série de melhorias a justiça, buscando uma reforma nos procedimentos do sistema. O Innocence Project vem obtendo êxito em sua jornada, visando que cerca de 25 estados do país, já implementaram respectivas reformas promovidas. Já no Brasil desde o ano 2016 a associação sem fins lucrativos, Innocence Project Brasil[10] vem se desenvolvendo com fim de reverter à condenação de inocentes no país, prestando assistência jurídica as pessoas presas erroneamente. Esse projeto elaborou um relatório chamado "Prova de Reconhecimento e Erro Judiciário", em que demonstra dados estatísticos de erro de reconhecimento como também busca a criação de protocolos para diminuir erros causados por provas dependentes da memória humana. Ocorre um grande problema quando o crime ganha visibilidade midiática, em que ocorre uma busca incessante pelo anseio do culpado e que este seja condenado por seus atos, gerando uma repercussão muitas vezes em âmbito nacional. Aumentando os riscos de levar um inocente a condenação, onde um grande número de pessoas ficam envolvidas no caso, podendo trazer informações falsas a investigação e pressionando a vítima a identificar alguém como o autor do crime. A mídia se torna verdadeira agência do sistema penal[11]. O programa Fantástico realizou um experimento social[12] com estudantes de direito de uma faculdade de São Paulo, com objetivo de observar se o reconhecimento de suspeitos realmente é um procedimento confiável. Nesse experimento, um homem intencionalmente furta um notebook em meio uma sala de aula em que todos presenciavam. Os acadêmicos deveriam tentar identificar entre 05 suspeitos, qual havia realizado o furto. Foram divididos os estudantes em dois grupos sendo que em um desses grupos foram realizadas orientações para o reconhecimento com as normas do Departamento de Justiça Americano e o outro grupo foi realizado as orientações conforme as normas brasileiras. O resultado foi que grande parte dos 42 participantes erraram o autor no reconhecimento, principalmente os que foram orientados pela norma brasileira, cabe ressaltar que estes orientados pela norma brasileira apontaram um autor e destes 76% erraram. Já os estudantes que foram orientados pela com as normas do Departamento de Justiça Americano o resultado foi que 63% disseram não se sentir confiantes para a identificação do autor. Como também, 26% dos 42 estudantes afirmaram com certeza qual dos homens havia realizado o furto e estavam errados. Se fosse um caso real uma pessoa inocente seria responsabilizada por um crime que não cometeu, devido ao reconhecimento equivocado. Fica nítido, que há diversos pontos que merecem atenção no sistema penal brasileiro, onde este deve adotar as descobertas da ciência com objetivo de que provas com procedimento incerto e erros estatais parem de ser um veículo para a condenação de inocentes no país. Ainda, provas testemunhais devem conter equidade em sua valoração, sempre respeitando o princípio do in dubio pro reo como critério para resolução de incertezas, evitando erros que custem a liberdade de inocentes. Se culpam os indivíduos, não os sistemas[13]. Ana Cristina Gmach Acadêmica do Curso de Direito da Universidade do Contestado – Campus Canoinhas/SC Ana Paula Greim Alves Acadêmica do Curso de Direito da Universidade do Contestado – Campus Canoinhas/SC Referências: VASCONCELLOS, Silvio José Lemos. Memória, evolução e psicologia evolucionista. LAPLANCHE, J. PONTALIS, J.B, Vocabulário da psicanálise, 3ª edição, Lisboa: Moraes Editores, 1976, p. 594. CARNELUTTI, Francesco, Misérias do processo penal, São Paulo: Pilares, 2006, p. 67-68. Código de Processo Penal Brasileiro. (Redação dada pela Lei nº 3.689 de, 03.10.1941). Police And Criminal Evidence Act – Code D, 1984. Disponível em: https://webarchive.nationalarchives.gov.uk/ukgwa/20200729053637/https://www.gov.uk/government/publications/pace-code-d-may-2008. CARNELUTTI, Francesco, Misérias do processo penal, São Paulo: Pilares, 2006, p. 66. Mais de 50% dos presos em flagrante do Rio de Janeiro foram mantidos presos indevidamente. Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/mais-de-50-dos-presos-em-flagrante-do-rio-de-janeiro-foram-mantidos-presos-indevidamente-2/ Proyecto Inocentes, Defensoria Penal Pública. Disponível em: http://www.proyectoinocentes.cl. Acesso em: 10 de abril de 2022. Innocence Project. Disponível em: https://innocenceproject.org. Acesso em: 10 de abril de 2022. Innocence Brasil. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org. Acesso em: 10 de abril de 2022. ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 3. CHRISTIE, Limites à Dor, 2016, Editora D'Plácido, p. 61. NOTAS: [1] Para Vasconcellos a memória pode ser descrita, em termos gerais, como a capacidade de repetir um desempenho (VASCONCELLOS, Silvio José Lemos. Memória, evolução e psicologia evolucionista). [2] A repressão ou a supressão, em um sentido amplo, é considerada a operação psíquica que tende a fazer desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno: ideia, afeto, entre outras. (LAPLANCHE, J; PONTALIS, J.B. Vocabulário da psicanálise. 3° ed. Lisboa: Moraes Editores, 1976, p. 594). [3] CARNELUTTI, Francesco. Misérias do processo penal. São Paulo: Pilares, 2006, p. 67-68. [4] Nos termos do Código de Processo Penal Brasileiro: Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma [...] Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento. (Redação dada pela Lei nº 3.689 de, 03.10.1941). [5] Police And Criminal Evidence Act – Code D, 1984. Disponível em: https://webarchive.nationalarchives.gov.uk/ukgwa/20200729053637/https://www.gov.uk/government/publications/pace-code-d-may-2008. Acesso em: 10 de abril de 2022. [6] CARNELUTTI, Francesco. Misérias do processo penal. São Paulo: Pilares, 2006, p. 66. [7] Mais de 50% dos presos em flagrante do Rio de Janeiro foram mantidos presos indevidamente. Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/mais-de-50-dos-presos-em-flagrante-do-rio-de-janeiro-foram-mantidos-presos-indevidamente-2/. Acesso em: 10 de abril de 2022. [8]Proyecto Inocentes, Defensoria Penal Pública. Disponível em: http://www.proyectoinocentes.cl. Acesso em: 10 de abril de 2022. [9] Innocence Project. Disponível em: https://innocenceproject.org. Acesso em: 10 de abril de 2022. [10] Innocence Brasil. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org. Acesso em: 10 de abril de 2022. [11] ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um processo penal democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 3. [12] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/7592637/. Acesso em: 10 de abril de 2022. [13] CHRISTIE, Limites à Dor, Editora D'Plácido, 2016, p.61
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