Como é notório, em um Estado Social e Democrático de Direito, o Direito Penal só deve atuar quando se produzam lesões ou perigos de lesão intoleráveis contra os bens jurídicos essenciais ao desenvolvimento humano em sociedade.[1] Destarte, o bem jurídico tem papel fundamental na configuração e aplicação do Direito Penal.
Segundo aduz Busato[2]:
Nesse sentido, vislumbra-se a importância do bem jurídico no Estado democrático de Direito, no qual no entendimento de ROXIN, ‘’ a autorização de intervenção jurídico penal devem resultar de uma função social do Direito Penal’’[3]. Sendo assim, ‘’as normas jurídico penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos humanos. Por isso, o Estado deve garantir, com os instrumentos jurídico penais, não somente as condições individuais necessárias para uma coexistência semelhante, mas também as instituições estatais adequadas para este fim’’.[4] Especificamente com relação ao crime de lavagem de dinheiro, há grande discussão doutrinária a respeito de qual seria o bem jurídico protegido. Discussão que influencia diretamente na possibilidade ou não de condenação em algumas espécies do crime, especialmente na de autolavagem. De início, importante apontar que existem autores, como Miguel Bajo Fernandéz, que entendem pela inexistência de bem jurídico protegido pelo crime de lavagem. Para este autor, a lavagem de dinheiro como crime autônomo implica na tentativa de impedir que o dinheiro auferido por organizações criminosas possa ser utilizado na prática de novos delitos, razão pela qual o delito só se explicaria pelo perigo ínsito neste comportamento e não pela lesão de um bem jurídico[5]. Por adotar tal posicionamento, Bajo Fernandéz conclui que é um equívoco que se possa condenar pelo crime de lavagem de dinheiro, em concurso com o crime antecedente, o autor deste último. Não obstante, tal posicionamento pela ausência de bem jurídico nos crimes de lavagem é minoritária e ignora que uma sociedade em que se pune sem que haja bem jurídico a ser protegido pelo crime o faz exclusivamente como demonstração de poder. De outro lado, parcela da doutrina, amparados na Convenção de Viena, bem como na lei 9.613/98 (reformada recentemente pela Lei 12.683/12), entende que a lavagem de dinheiro caracteriza crime contra a Administração da Justiça, na medida em que impede o descobrimento e a punição do crime prévio. Neste sentido, Roberto Podval afirma que “ao punir a lavagem de dinheiro, tenta-se impedir que o produto do ilícito possa ser transformado ou 'dissolvido' no meio social, evitando, assim, seu confisco, bem como a identificação e materialidade do crime anterior”[6]. Ao adotar tal posição quanto ao bem jurídico protegido pelo crime, Bottini leciona que é possível condenação pela autolavagem, na medida em que há ofensa qualificada a administração da justiça. Ao analisar a Ação Penal 470 (“Mensalão”), o doutrinador afirmou que:
No crime de lavagem de dinheiro, portanto, não incide a exoneração do autor do ilícito antecedente, como ocorre nos casos de favorecimento real (art. 349 do CP). E isso pelos seguintes motivos: i) o tipo penal de favorecimento, assim como a lavagem de dinheiro, tutela a administração da justiça. Portanto, em ambos o bem jurídico protegido é distinto (em regra) daquele lesionado pelo crime anterior e seria aplicável a dupla incriminação. No entanto, no favorecimento real o tipo penal expressamente afasta a punição do autor original, enquanto na lavagem de dinheiro a ressalva inexiste. ii) Mas, ainda que o crime do art. 339 do CP não indicasse expressamente a exoneração do autor do crime original, a punição do autor do delito antecedente seria descabida pela inexigibilidade de conduta diversa, pois não parece possível impor ao agente de um delito prévio que não tome medidas e precauções para tornar seguro o proveito dele decorrente. Esse raciocínio, no entanto, não se aplica à lavagem de dinheiro. Ainda que esse último delito também afete a administração da Justiça, ele o faz de forma mais incisiva, mais intensa, pois o agente não se contenta em tornar seguro o proveito do crime. Ele vai além, busca tal segurança através da reciclagem, do mascaramento, da reinserção dos bens na economia formal, com aparência lícita. Trata-se de uma lesão qualificada à administração da Justiça que afasta a inexigibilidade de conduta diversa. Do agente do crime anterior se espera que atue para tornar seguro o proveito do crime, mas não que o faça por meio de manobras para conferir a ele um manto de licitude, por meio de operações financeiras e comerciais de aspecto legítimo. Em suma, esse plus em relação ao mero proveito seguro do crime justifica a possibilidade de punição do autor do delito anterior pela lavagem de dinheiro por ele praticada subsequentemente. Por isso, correta a interpretação da Suprema Corte, indicando o crime de lavagem de dinheiro como comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa, até mesmo pelo agente ou partícipe da infração anterior.[7] Por fim, cumpre afirmar que outra parcela (majoritária) da doutrina entende que o bem jurídico tutelado pelo crime de lavagem de dinheiro é a ordem econômica, ligados aos danos à “programação econômica e à liberdade de mercado, sempre focalizada na máxima realização possível da dignidade da pessoa humana”[8]. Portanto, são bem jurídicos instrumentais. À respeito, leciona BOTTINI[9]:
Esta, por sua vez, se subdivide em: ordem econômica em sentido amplo; tráfico lícito de bens; e pluriofensividade, na medida em que afeta a ordem econômica e a administração da Justiça. Quanto ao primeiro ponto, ao analisar a condenação pela autolavagem na Ação Penal 470, Laufer sintetiza o pensamento da André L. Callegari, no sentido de que a lavagem provém da necessidade de ocultar o lucro ilícito, sendo a reintegração sua fase mais lesiva, na medida em que o investimento oriundo de capitais ilegais acarreta “perigo de que economias inteiras caiam sob seu controle, que se distorça o sistema financeiro e que o sistema democrático, em determinados países, fique sem estabilidade”[11]. A segunda, encontra em Juana Del Carpio Delgado, sua melhor sustentação. Para esta autora a ordem econômica lato senso não pode ser considerada bem jurídico, somente é possível o reconhecimento da vinculação entre a proteção do patrimônio e a de outros interesse econômicos coletivos. Percebe-se, assim, que a punição pelo crime de lavagem aos autores do crime antecedente está diretamente ligada a qual o bem jurídico que se protege pela lavagem. Razão pela qual afirma Laufer que:
A punição pelo crime consequente, em concurso com o crime prévio, só terá incidência para aquela parte (dominante) da doutrina que vê na ordem socioeconômica, como um todo ou em algumas de suas facetas, o bem jurídico tutelado pelo tipo penal em análise.[12] Sendo assim, vislumbra-se que a discussão sobre o bem jurídico tutelado na lavagem de dinheiro possui diversos entendimentos, cuja análise é crucial para se verificar a legitimidade ou não da punição do crime, especialmente no que diz respeito à autolavagem. Rechaça-se, de tal modo, posições que entendem possível a condenação pela lavagem sem que haja um bem jurídico protegido, pois em um Estado Social e democrático de Direito, nos quais, consoante o pensamento de Roxin, a intervenção jurídico penal deve observar e resultar da função social do Direito Penal, garantindo assim, a existência segura de todos os indivíduos [13]. Paula Yurie Abiko Acadêmica de Direito do Centro Universitário Franciscano FAE, 9º período Estagiária do Ministério Público Federal Membro do Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal Membro do grupo de Pesquisa O mal estar no Direito Membro do grupo de Pesquisa Trial By Jury e literatura Shakesperiana Membro associada International Center for Criminal Studies Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Processo Penal Especialista em Direito e Processo Penal Especialista em Ciências Criminais e práticas de advocacia criminal Pós graduando em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná [1] BUSATO. Paulo Cesar. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2013. p. 59. [2] BUSATO. Paulo Cesar. Direito Penal. Parte Geral. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2015. p.22. [3] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2006. Organização e Tradução: André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli.p. 16. [4] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2006. Organização e Tradução: André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, p. 17 e 18. [5] LAUFER, Christian. Da lavagem de dinheiro como crime de perigo... p. 107. [6] Apud LAUFER. Da lavagem de dinheiro como crime de perigo... p. 125. [7] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Reflexões sobre a AP 470 e a lavagem de dinheiro. Disponível em: . Acesso em [8] SCHIMIDT, Andrei Zenkner. O bem jurídico protegido pelo direito penal econômico. In:Perspectivas das Ciências Criminais: coletânea em homenagem ais 55 anos de atuação profissional do Prof. René Ariel Dotti. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2016. 55. [9] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro Aspectos Penais e Processuais penais.3ª edição revista, atualizada e ampliada, 2ª tiragem. Revista dos Tribunais, 2017, p. 86 e 87. [10] O autor é contra a ideia de um bem jurídico econômico a ser protegido : ‘’ Mesmo que em parcela significativa dos casos exista realmente uma pluralidade de bens jurídicos lesionados, a norma concretizada do tipo penal de lavagem de dinheiro tem por escopo a proteção de um único bem jurídico: a administração da Justiça’’. [11] LAUFER, Christian. Da lavagem de dinheiro como crime de perigo... p. 132. [12] LAUFER, Christian. Da lavagem de dinheiro como crime de perigo... p. 170. [13] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2006. Organização e Tradução: André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, p.16. Referências BUSATO. Paulo Cesar. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2013. BUSATO. Paulo Cesar. Direito Penal. Parte Geral. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2015. BOTTINI, Pierpaolo Cruz, BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro Aspectos Penais e Processuais penais, comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. 3ª edição revista, atualizada e ampliada, 2ª tiragem. Revista dos Tribunais, 2017. ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2006. Organização e Tradução: André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. LAUFER, Christian. Da lavagem de dinheiro como crime de perigo: o bem jurídico tutelado e seus reflexos na legislação brasileira. 2012. (Mestrado em Direito). Universidade Federal do Paraná. Comments are closed.
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