Não é exagero afirmar que a presunção de inocência é um dos pilares centrais do sistema jurídico penal moderno. Em torno desta regra de tratamento se construíram diversos preceitos normativos, tanto de cunho material quanto de cunho processual.
A legalidade, a ofensividade, a exigência do desvalor do resultado, a culpabilidade como elemento do conceito analítico de crime e como princípio geral do direito penal, o próprio desenvolvimento das teorias da imputação, com prevalência para a construção de Roxin baseada na realização do risco, todos estes elementos fazem sentido a partir da visão que a presunção de inocência traz para o relacionamento entre o Estado e o suspeito/acusado/réu. Porém, observa-se na quadra atual um forte movimento de relativização e degeneração do significado desta regra de tratamento constitucional. Parece que o cerne do problema tem que ver com uma interpretação que desvirtua o real sentido do enunciado constitucional acerca da atribuição do status de culpado. Rememorando o que estabelece a CF/88 (art. 5, LVII): “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória”. Para reforçar, o CPP, no art. 283, vai determinar em adição que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.” Já escrevi sobre a questão da impossibilidade de se alterar, por manifestação jurisdicional, o sentido da expressão “trânsito em julgado”[1]. Enfim, o objetivo deste texto não é recapitular tudo o que já se disse sobre os equívocos do HC 126.292/SP e tantos outros que se abatem sobre a apreciação da presunção de inocência. Objetiva-se antes analisar uma forma de compreensão que parece contribuir para melhor compreensão deste elemento basilar do sistema jurídico de aplicação da pena. Trata-se da percepção trazida pelo Prof. Carl-Friedrich Stuckenberg, da Universidade de Bonn, na Alemanha[2]. Segundo o prof., a presunção de inocência não é um direito subjetivo, individual, dado como garantia ao cidadão. Antes, trata-se de uma garantia do procedimento, voltada a permitir a democraticidade do processo penal como único meio legítimo para aplicação da sanção penal pelo Estado Social Democrático de Direito. Parte o professor de um amplo estudo acerca dos dois componentes da expressão aludida – presunção e inocência. Após explicar que “inocência” aqui não se trata de uma afirmação sobre a realidade, mas antes, uma negação das condições de possibilidade da punição, Stuckenberg traz uma interessante reflexão sobre as presunções no ordenamento jurídico contemporâneo. Segundo o professor de Bonn:
Com essas observações, pode-se ponderar o caso brasileiro e chegar a importantes conclusões. Em primeiro lugar, a presunção de inocência não deve ser vista como uma garantia dada especificamente ao acusado. Não figura como um “bem” próprio, individual. Isso significa que a apreciação de que “está clara a culpa”, seja pela condução de vida do acusado (apreciação ilegítima), seja em virtude da confirmação da condenação em segunda instância ou por órgão colegiado (apreciação jurisdicional legítima da culpa), não traz consigo a consequência de afastar ou dar como superada a presunção de inocência normativa. Como garantia do procedimento, a presunção de inocência compõe o regramento processual, cuja violação anula (por tratar-se de elemento de direito público, previsto constitucionalmente) o meio pelo qual o Estado atuou para exercer seu poder punitivo. Em virtude disso é que surge a importância do que conclui o professor Stunckeberg, quando afirma que “diferentes ordenamentos jurídicos oferecem diferentes respostas para a questão e é por isso que, por exemplo, a presunção de inocência norte-americana pode legitimamente diferir das suas irmãs canadense e europeia.” Uma vez que o sistema criminal de cada país obedece a determinações político-criminais distintas, resta clara a possibilidade de que cada ordenamento, a depender do patamar democrático, grau de segregação social de seus cidadãos, gravidade das penas e debilidade do sistema carcerário, além de tantos outros elementos, atribua a presunção de inocência diferentes limites. Justamente por isso um dos argumentos mais utilizados no HC 126.292/SP é tão vazio de sentido – a afirmação de que em outros países a pena pode ser executada após a confirmação da condenação por um tribunal de revisão. Isso nada de relevante aponta para a apreciação do instituto no caso brasileiro. Dito isso, o que se percebe da avaliação específica acerca da norma nacional que traduz presunção de inocência para nosso sistema jurídico? Ora, diferente de outros ordenamentos, a CF/88 fixa, apara além de qualquer dúvida, o momento em que cessa esta presunção, ou melhor, em que foi superada a dúvida razoável acerca da culpa – o trânsito em julgado. Desde que o Brasil foi descoberto, trânsito em julgado tem o mesmo sentido jurídico – a ausência de possibilidade de interpor recurso processual legítimo ao que restou decidido. Sendo assim, fica claro em que momento a presunção de inocência, no ordenamento procedimental (processual) brasileiro, pode ser considerada como vencida, fazendo com que o poder punitivo possa ser aplicado em conformidade com a norma constitucional. No final das contas, como bem apontada o professor Stuckenberg, a presunção de inocência “é uma questão de quem deve arcar com ônus do erro causado pela incerteza, o Estado ou o cidadão”. Dentro desta límpida definição, fica fácil perceber que a escolha permitirá aferir o quão “democrático de direito” é um Estado. Como aduz Stuckenberg, “a principal consequência dessa compreensão da presunção de inocência é a proibição da antecipação da pena antes que o procedimento tenha chegado ao final”. Qualquer graduando de direito do primeiro período, colocado no lugar dos Ministros do STF, poderia responder com convicção qual é o final que nossa Constituição prevê para o processo penal. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da World Complexity Science Academy Membro do Research Committee on the Sociology of Law Advogado [1] Na ocasião me manifestei da seguinte maneira: Na realidade, “trânsito em julgado” não é um objeto ou fenômeno empírico; não é nem mesmo uma abstração utilizada para descrever algo dado pelo mundo “natural”, como “árvore” ou “mar”. Antes, trata-se de uma expressão que descreve um estado de coisas forjado pelos homens dentro de um contexto social bem específico, ou seja, o mundo jurídico ou, mais precisamente, o “mundo do processo”. Significa dizer que só se pode obter o significado de “trânsito em julgado” a partir do conhecimento do uso consensual deste termo no contexto em que ele foi forjado e com o sentido que se atribui a ele pelos participantes do ambiente comunicativo em que ele costuma ser utilizado Em outras palavras, só posso chegar ao conhecimento do que significa “trânsito em julgado”, olhando para seu uso no meio social em que ele possui um sentido compartilhado pelos atores que lançam mão deste conceito de modo harmônico. INCOTT, Paulo. Crônicas de uma morte anunciada: o agonizante fim do HC 126.292. Canal Ciências Criminais, 28/08/2017. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/cronica-morte-anunciada-hc. Acesso em 18/10/2017. [2] Todas as citações tiradas de: STUCKENBERG, Carl-Friedrich. Quem é presumido inocente do que e por quem? Revista de Estudos Criminais, Ano XVI, Abril-Junho/2017, nº 65. pp. 35-58 Referências: INCOTT, Paulo. Crônicas de uma morte anunciada: o agonizante fim do HC 126.292. Canal Ciências Criminais, 28/08/2017. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/cronica-morte-anunciada-hc. STUCKENBERG, Carl-Friedrich. Quem é presumido inocente do que e por quem? Revista de Estudos Criminais, Ano XVI, Abril-Junho/2017, nº 65 Comments are closed.
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