INTRODUÇÃO:
O sistema carcerário brasileiro há muitas décadas enfrenta demasiados problemas estruturais, superlotações, sucateamento, e sua ineficiência denotam a dificuldade de reestruturar o sistema em sua totalidade. No país todo ocorrem reiteradas rebeliões, que ocasionam violência e mortes, sendo uma resposta ao tratamento dado a todos os que encontram-se privados de liberdade. Analisando as últimas décadas, é notável o aumento da população carcerária, que passou de aproximadamente 90 mil presos para 600 mil pessoas. E em contrapartida, não houve políticas estatais desenvolvidas para conter esse crescimento exacerbado, como investimentos em educação. A maioria dos presídios dos país não possuem condições mínimas para que os indivíduos cumpram as penas com dignidade, não há trabalho para todos, e, em decorrência disso, a reincidência alcança índices altíssimos, denotando que a função de ressocialização da pena tornou-se utopia. O sistema penal através da privação de liberdade utiliza discursos de finalidade da pena, sendo elas as funções preventivas geral e especial, no qual a especial positiva busca a ressocialização dos indivíduos. Observando as discussões atuais, é notável o crescimento de defensores da privatização dos presídios como uma solução para a crise do sistema carcerário brasileiro, enfatizando que tal medida ajudaria em pontos como a superlotação e questões estruturais.
A história do sistema carcerário, não é a mesma da história da prisão / pena. Antigamente, na Idade Média e em meados do século XVIII, a finalidade da prisão era a custódia, um local de suplícios, no qual o réu sofria inúmeros castigos corporais, até o momento da execução de sua pena. A prisão não possuía o caráter de pena, no Estado Absolutista era objetivado que se implantasse um medo e temor coletivo[1]. No século XVIII, com o Iluminismo e o pensamento reformador, e com a contribuições das ideais de Cesare Beccaria, o mesmo mostrou-se contrário a legislação criminal da Europa, tendo em vista as inúmeras arbitrariedades cometidas, castigos corporais e crueldade extrema, bem como a pena de morte, e denotando que o processo penal estava repleto de subjetivismos e problemas, tornaram Beccaria uma referência para a prevenção de delitos, analisando o surgimento do pensamento liberal[2]. O liberalismo dando ênfase então ao indivíduo e a liberdade, limitando os poderes do Estado, teve uma inspiração no Iluminismo, conhecido também o ‘’século das luzes’’. Na mesma época, as ideais de Cesare Beccaria se difundiam, abordando as ideias da ressocialização da pena e sua importância. Beccaria defendia no auge do Iluminismo um novo modelo de sistema criminal, contrário a um Estado Absoluto e autoritário, e analisava a importância de desenvolver um sistema que fosse adequado aos preceitos da dignidade da pessoa humana. No seu livro o mesmo afirma que ‘’a finalidade da penalidade não é torturar e afligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já está praticado’’[3], e nesse contexto é analisado de tal afirmação que a função do Estado não deve ser vingar-se dos indivíduos que cometeram os delitos, mas sim prevenir para que novos atos ilícitos não ocorram[4]. Posteriormente, uma análise sobre a efetividade das penas e o sistema punitivo podem ser feitas, e conforme preceitua Zaffaroni ‘’achamo-nos, em verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade?’’[5]. E nesse ponto é vislumbrado a disparidade entre o ‘’ser’’ e ‘’dever-ser’’ no âmbito penal, e na realidade atual do sistema carcerário no país. O Direito Penal é a matriz do sistema penal, e neles estão englobadas as condutas de tipificação dos crimes pelo legislador, o ‘’dever-ser’’. O legislador notavelmente tenta enquadrar uma quantidade imensurável de hipóteses delitivas, demasiadas vezes impulsionados pela mídia e pelo clamor popular, tentando dar uma resposta rápida a sociedade, quando na verdade, não consegue planejar planos a médio e longo prazo que efetivamente poderiam surtir efeitos razoáveis a sociedade, contribuindo para a manutenção de um sistema que mostra-se ineficaz. 2 . A CONTRADIÇÃO DA DEMANDA MÍNIMA NO SISTEMA CARCERÁRIO E OS PROBLEMAS ORIUNDOS DE UMA PRIVATIZAÇÃO. Os princípios basilares de um Estado democrático de Direito são caracterizados pela submissão de todos a lei. O Brasil, como uma democracia representativa, estabelece uma sociedade igualitária e solidária a todos, tendo como seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, efetivando construir uma sociedade livre e justa, erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais conforme dispõe o artigo 3º da CF/1988[6]. Portanto, o Direito penal deve analisar se esses objetivos do Estado estão sendo alcançados. A pena privativa de liberdade possui a finalidade de tutelar bens jurídicos e conter a criminalidade, e a prevenção especial positiva, bem como a ressocialização são o argumento difundido para legitimar o sistema punitivo estatal e privatizar os presídios. Observando a Parceria Público Privada feita pelo Poder Concedente, no qual é vislumbrado a ocupação de pelo menos 90% das vagas criadas no sistema de parceria privado, sendo expresso no cálculo da contraprestação mensal da Concessionária, é contraditório por si só com as finalidades enfatizadas pela pena e o caráter de ressocialização[7]. Na análise da Parceria Público Privada, nota-se que ao garantir a ocupação das vagas em índice tão elevado, o Estado enfatiza o descrédito na sua função de ressocialização, aduzindo que o sistema penal não previne os delitos. O sistema carcerário brasileiro possui aproximadamente uma porcentagem de 70% de reincidentes, segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça. Com a mostra da falência generalizada do sistema carcerário, e os discursos da ineficiência de recursos e gestão pública, observa-se um processo de terceirização parcial de alguns sistemas prisionais, como nos Estados do Ceará, Bahia, Amazonas, Espírito Santo, Santa Catarina, Maranhão e Pernambuco, podendo evoluir para as privatizações[8]. A Lei nº 11.079/2004, criou a modalidade de concessão de serviço ou obra pública através das Parcerias Público Privadas, e posteriormente, foi elaborado o Projeto de Lei nº 513/11, estabelecendo normas para essas contratações e administração no sistema penal. Nos motivos elencados pelo Projeto de Lei nº 513/11, é notável a violação de direitos no trabalho dos presos, pois autoriza os particulares a explorar a força de trabalho dos mesmos da forma que acharem viável e necessário. Nesse sentido, nota-se que para o sistema prisional privado ser atrativo, o sistema prisional público deve ser o pior possível, sem garantias mínimas de desenvolvimento dos indivíduos que ali encontram-se, no qual, tendo a possiblidade de sair, aceitará obviamente qualquer alternativa que lhe seja imposta. Além disso, entre as diretrizes estabelecidas na contratação da Parceria Público Privada, conforme o Projeto de Lei nº 513/11, é destacado uma possível ressocialização por meio de desenvolvimento de trabalhos obrigatórios. Contudo, quando ocorre a transferência de custódia do preso para o ente privado, atrai os olhares de empresas para a utilização desse serviço de forma análoga a escravidão, sem os direitos trabalhistas, pois é autorizado ao Concessionário explorar livremente o trabalho desses indivíduos, diretamente ou por subcontratação[9]. Sendo assim, conforme o respectivo projeto de Lei, qual seria efetivamente a pretensão estatal, a ressocialização ou o lucro? Essa política de delegação da gestão do sistema carcerário para a iniciativa privada, traz inúmeros questionamentos, tendo em vista que quando o Estado desonera-se de sua função e cria um mercado aproveitando da mão de obra dos indivíduos que encontram-se privados de liberdade, nota-se que indiretamente alimenta uma gama de empresas que circundam o sistema prisional, efetivamente com o intuito de lucro[10]. Com isso, nota-se que a pena privativa de liberdade em meados do século XVIII, já buscavam perspectivas utilitaristas de resolução de problemas, baseadas em interesses econômicos e sociais. Décadas depois, o discurso da pena privativa de liberdade com a função preventiva de delitos é ainda atual, com as teorias de prevenção geral e prevenção especial. Na política neoliberal dos sistemas capitalistas, o sucesso depende teoricamente do esforço individual e pessoal. E então, surgem os excluídos e marginalizados que não enquadram-se nesse grupo social, sendo vislumbrado por parte de um discurso social a necessidade de serem afastados e contidos do convívio desses indivíduos, sendo o local apropriado para isso o sistema carcerário. A privatização de presídios vem ocorrendo nos Estados Unidos, e aos poucos no Brasil, tendo em vista a inauguração do primeiro Complexo Prisional Privado, por meio das Parcerias Público Privadas, em Ribeirão das Neves em Minas Gerais. A inconstitucionalidade de tal medida pode ser observada na Constituição, tendo em vista que a delegação de atribuições exclusivas do Estado ao particular é vedada, quando aduz no artigo 144 que a segurança pública é dever do Estado, e também no artigo 4º, III, da Lei nº 11.079/2004, que regulamenta os contratos da Parceria Público Privada, demonstrando a inconstitucionalidade e incompatibilidade da privatização do sistema carcerário em um Estado Democrático de Direito[11]. E por fim, o que é vislumbrado é que essas medidas podem tornar-se fontes de lucros para inúmeras empresas, tendo em vista o alto índice de encarceramento, e os problemas do encarceramento em massa são evidentes, na medida que contribuem para a manutenção de um sistema violento, num círculo vicioso de delitos, sem alcançar o que efetivamente deve ser buscado, que é a ressocialização e condições dignas de desenvolvimento dos indivíduos em sua totalidade. Paula Yurie Abiko Acadêmica de Direito do Centro Universitário Franciscano FAE, 8º período Estagiária do Ministério Público Federal Membro do Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal [1] ADAUMIR ARRUDA DA SILVA, José. A privatização de presídios: Uma ressocialização perversa e a incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito, página 19. [2] Op. Cit, pág. 19 [3] BECCARIA, Cesare, p. 19. [4] [4] ADAUMIR ARRUDA DA SILVA, José, p. 22. [5] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Revan, Rio de Janeiro. p. 12 [6] [6] ADAUMIR ARRUDA DA SILVA, José, p. 22. [6] ADAUMIR ARRUDA DA SILVA, José, p. 133. [7] ADAUMIR ARRUDA DA SILVA, José, p. 134. [8] Op, cit. P. 135. [9] Op. Cit. P. 137 [10] [10] ADAUMIR ARRUDA DA SILVA, José, p. 139. [11] ADAUMIR ARRUDA DA SILVA, José, p. 143. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |