O artigo de hoje, do colunista Bryan Lechenakoski, faz uma lúcida crítica acerca da jurisprudência sobre a aplicabilidade do tráfico privilegiado no Brasil. “Verifica-se que a não aplicação da causaespecial de diminuição de pena pela quantidade de entorpecentes e/ou natureza da droga faz parte de uma criação jurisprudencial sem qualquer suporte legal, e, consequentemente ilegal”. Por Bryan Lechenakoski O delito de tráfico de entorpecentes definido no caput do artigo 33 da lei 11.343/06 prevê pena de 05 (cinco) anos de reclusão até 15 (quinze) anos, mais pena de multa de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. Contudo, de modo a atender a proporcionalidade do delito, para evitar que o traficante habitual receba a mesma pena daquele que eventualmente realizou o tráfico, o parágrafo 4º do artigo 33 da lei 11.343/06 traz a aplicação da causa especial de diminuição de pena, denominada pela práxis de tráfico privilegiado. O parágrafo 4º assim determina: Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. Ao que se verifica, o parágrafo 4º acima reproduzido traz 4 requisitos para sua aplicação, sendo que o denunciado não poderá ter nenhuma anotação criminal, não se dedique a atividades criminosas, nem faça parte de organização criminosa. O primeiro ponto a se destacar é o fato da inexistência de vedação para aplicação da causa especial de diminuição de pena pela quantidade de entorpecentes, ou seja, seria possível a aplicação da causa especial de diminuição de pena para àquele que é flagrado e condenado por uma grande quantidade entorpecentes? A jurisprudência achou uma solução criativa para tentar vedar a aplicação do 4º do art. 33 da lei 11.343/06 para àquele que é detido com uma quantidade expressiva de entorpecentes, senão vejamos:
Não é incomum encontrar jurisprudências como as colacionadas acima, realizando uma suposição de que, devido a quantidade entorpecentes é possível evidenciar a dedicação do sentenciado em atividades criminosas. Contudo, com a devida vênia aos entendimentos acima elencados, há um questionamento a ser realizado: Se o denunciado/sentenciado nunca foi flagrado anteriormente com entorpecentes, não há denúncia e até mesmo condenação no mesmo feito pelo artigo 35 da lei 11.343/06 (associação ao tráfico), nem mesmo a denúncia ou condenação pela organização criminosa, como é possível supor algo que não demandou o efetivo contraditório ou se possibilitou exercer a ampla defesa? Entendemos que tal aplicação viola frontalmente o princípio do devido processo legal previsto no artigo 5º, inc. LIV da Constituição da República, bem como a própria presunção de inocência e o in dubio pro reo garantidos no inc. LVII do artigo 5º da Constituição da República, sendo que estas são garantias inafastáveis de toda e qualquer decisão após o advento da Constituição da República de 1988. Ademais, trata-se de inovação jurisprudencial limitando direitos, o que por si só torna ilegítima tal decisão, vez que tal entendimento estará passando por cima de texto expresso da lei que deveria vincular o magistrado, não permitindo interpretação extensiva que possa eventualmente limitar garantias. O alerta de COUTINHO é extremamente válido quando menciona que: “a hermenêutica, na conduta de muitos, vira um brinquedo pelo qual se interpreta como se quiser, dando aos textos os sentidos próprios, suas próprias verdades” (COUTINHO, 2018, p. 94). O que sustentamos aqui é que, para evidenciar a dedicação de atividades criminosas, há no mínimo que se ter um lastro probatório mínimo de tal dedicação a atividades criminosas ou possível integração a organização criminosa, devendo ser submetido ao processo tais fatos, para que então seja possível exercer o contraditório e ampla defesa, o que normalmente não é realizado. Não se extrai do texto expresso da lei a vedação da aplicação da causa especial de diminuição de pena em razão da quantidade ou natureza da substância apreendida, sendo verificado tais circunstâncias tão somente na análise de dosimetria de pena, mais precisamente no artigo 42 da lei 11.343/06, senão vejamos:
Perceba que se o legislador quisesse vedar a aplicação da causa especial de diminuição de pena em razão da natureza e quantidade de entorpecentes, assim o teria feito expressamente, porém não o fez. No máximo, poder-se-ia dizer que para aferição da fração (1/6 ou 2/3) que determina o quantum de redução na causa especial de diminuição de pena, poderia ser levada em conta os aspectos da quantidade e natureza da droga, assim como é feito em alguns julgados, a título exemplificativo segue um julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria:
Ao que se verifica do julgado acima colacionado é que, a natureza e quantidade da substância apreendida podem ser levadas em conta tanto na primeira fase da dosimetria da pena, quanto na terceira fase na causa especial de diminuição de pena, não podendo, contudo, serem aplicadas cumulativamente sob pena de bis in idem. Mesmo que ainda se recaia em um critério subjetivo de quantidade e natureza da droga, percebe-se que tal solução é mais aceitável do que negar a causa especial de diminuição de pena ao denunciado/sentenciado por critérios que sequer existem na lei, pautando-se quase sempre em argumentos não submetidos ao contraditório e ampla defesa, bem como por deveras subjetivos, recaindo em um decisionismo judicial sem aporte legislativo. A lei de drogas (11.343/06) possui inúmeras lacunas em seu texto normativo, demandando esforços e análises redobradas por parte do Poder Judiciário quando de sua aplicação (ex. os critérios de diferenciação entre usuário e traficante), contudo, a matéria tratada no presente escrito não se trata de lacuna normativa, pois o texto legal é expresso em narrar os quatro critérios para aplicação da minorante prevista no §4º, do art. 33 da lei 11.343/06, tratando-se, inclusive, de um rol exaustivo, não permitindo ampliação. Desta forma, se não houve a preocupação do legislador em adicionar a quantidade ou natureza dos entorpecentes no rol previsto no art. 33, §4º da lei 11.343/06, estará impossibilidade o julgador de o fazer. Até mesmo, na exposição de motivos da lei 11.343/06 não é mencionado a quantidade de entorpecentes como fator para a não aplicação da causa especial de diminuição de pena, senão vejamos: Outra questão tratada pelo projeto, e que em sendo objeto de profunda discussão, é a que se refere ao pequeno traficante, de regra dependente, embora imputável, para quem sempre se exigiu tratamento mais benigno. Não olvidando a importância do tema, e a necessidade de tratar de modo diferenciado os traficantes profissionais e ocasionais, prestigia estes o projeto com a possibilidade, submetia ao atendimento a requisitos rigoroso como convém, de redução das penas, ao mesmo tempo em que se determina sejam submetidos, nos estabelecimentos em que recolhidos, ao necessário tratamento.[1] Ou seja, o requisito para avaliação de aplicação da causa especial de diminuição de pena é atividade continua ou habitual ou permanente do tráfico, ou como mencionado na exposição de motivos, a profissionalização do tráfico de entorpecentes ilícitos. Nesta toada, entendemos que a para tal negativa de aplicação da causa especial de diminuição de pena, há que se ter obrigatoriamente a descrição de forma pormenorizada e expressa de tais fatos na denúncia, demonstrando a habitualidade e profissionalismo no tráfico, bem como na sentença, sob pena de afrontar os princípios do contraditório, ampla defesa, devido processo legal, e a presunção de inocência. Ousamos dizer ainda, que nos casos de profissionalização do tráfico, a partir de tal constatação, verifica-se que quase inevitavelmente culminará, se for o caso, no oferecimento da denúncia pelo delito previsto no Art. 35 que assim dispõe: “Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei”, estando, portanto, submetido a ampla defesa e contraditório. Ademais, com relação a organização criminosa, por óbvio que para tal constatação é necessário estar expressamente na denúncia os elementos descritos no art. 1º, §1º da lei 12.850/2013, que assim determina: Se ausentes qualquer um dos requisitos acima (estrutura hierárquica, associação de no mínimo 04 (quatro) pessoas, ordenada, com divisão de tarefas e etc.), não há configuração da organização criminosa, não podendo-se, portanto, supor que haja, sendo necessária a prova incontestável em homenagem ao princípio do devido processo legal, bem como ampla defesa e contraditório. Por mais que se compreenda que o legislador ao positivar tal causa especial de diminuição de pena queira dar um tratamento mais brando àquele traficante não habitual, que muitas vezes vende para sustentar o próprio vício, permitir que o Judiciário avance sobre norma expressa adicionando requisitos não contidos na lei, recai inevitavelmente no decisionismo judicial, sendo extremamente temerário tal postura como menciona STRECK: Isto porque a caixa de pandora do “criacionismo jurídico”, de onde se tira todo tipo de decisionismo, de subjetivismo, livre convencimento, enfim, todo tipo de decisão ad hoc fundamentada em nada além da consciência daquele que escolhe. Direito vira “escolha a partir da opinião pessoal (STRECK, 2018). Outrossim, mesmo que eventualmente se tenha algum espaço interpretativo na norma penal, FERRAJOLI (2006, 427) destaca que toda e qualquer decisão deve guardar coerência com a Constituição, na medida que esta “restringe, ao mesmo tempo, contrariamente ao que muitas vezes se julga, a incerteza sobre seu significado, uma vez que reduz a discricionariedade interpretativa, tanto da jurisprudência como da ciência jurídica” e, como já alertou STRECK (2014, p. 102): “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”. Desta forma, verifica-se que a não aplicação da causa especial de diminuição de pena pela quantidade de entorpecentes e/ou natureza da droga faz parte de uma criação jurisprudencial sem qualquer suporte legal, e, consequentemente ilegal, sem falar, ainda, que a não submissão ao contraditório e a ampla defesa de uma possível habitualidade da conduta através da quantidade de entorpecentes, importa em uma decisão manifestamente inconstitucional, pois estará violando os princípios do devido processo legal, ampla defesa, contraditório, presunção de inocência e in dubio pro reo. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminalista Professor de Direito Penal e Criminologia na Universidade do Contestado - UnC Mestre em Direito pela Uninter Especialista em Direito Penal e Processo Penal Pela Academia Brasileira de Direito Constitucional Pós-graduado em Direito Contemporâneo com Ênfase em Direito Público pelo Curso Jurídico REFERÊNCIAS BRASIL. JURISPRUDÊNCIA. STF. HC 120146/SP. Primeira Turma. Rel. Min. Dias Toffoli. Julg. 22/04/2014. Pub. 03/06/2014, DJe-106. BRASIL. JURISPRUDÊNCIA. STJ. HC 427339 RJ 2017/0313649-4. T5 - QUINTA TURMA. Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA. Julg. 27/08/2018. DJe 08/03/2018. BRASIL. JURISPRUDÊNCIA. TJ-AM. 00004617220178045600 AM 0000461-72.2017.8.04.5600. Primeira Câmara Criminal. Rel. Carla Maria Santos dos Reis. Julg. 14/05/2018. BRASIL. JURISPRUDÊNCIA. TJ-MT. Ap 18857/2018. Rel. Des. Juvenal Pereira da Silva. Terceira Câmara Criminal. Julg. em 12/09/2018. Pub. no DJE 21/09/2018 BRASIL. Legislação Informatizada - LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006 - Exposição de Motivos. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2006/lei-11343-23-agosto-2006-545399-exposicaodemotivos-150201-pl.html> Acesso em: 28/09/2018. BRASIL. Lei 11.343/06. Lei de Drogas. BRASIL. Lei 12.850/2013. Lei das Organizações Criminosas. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os Sistemas Processuais Penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018. STRECK, Lênio Luiz. O motim hermenêutico e os mitos do "bom" e do "mau" ativismo. Consultor Jurídico, 27/12/2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-dez-27/senso-incomum-motim-hermeneutico-mitos-bom-mau-ativismo>. Acesso em: 31/01/2020. STRECK, Lênio Luiz. Compreender Direito: desvelando as obviedades do discurso jurídico. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. FERRAJOLI, Luigi. O estado de direito entre o passado e o futuro. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Org.). O estado de direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 417-464. [1] Legislação Informatizada - LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006 - Exposição de Motivos. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2006/lei-11343-23-agosto-2006-545399-exposicaodemotivos-150201-pl.html>
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