Artigo do colunista Paulo Silas Filho no sala de aula criminal, vale a leitura! ''VOX é uma distopia que apresenta ao leitor um universo no qual as mulheres são subjugadas por uma sociedade regida por um governo fundamentalista. A religião funciona como a lei que por todos deve ser observada e rigorosamente cumprida. Com base numa passagem bíblica que estabelece que o marido deve ser o cabeça da mulher, as mulheres são relegadas unicamente à função de boas mães, esposas e donas de casa – devendo estrita obediência aos seus maridos. Toda e qualquer liberdade lhes é retirada, sendo-lhes vedada uma carreira profissional, acadêmica ou qualquer vida outra que fuja do estereótipo “bela, recatada e do lar”. Por Paulo Silas Filho Ao considerar e levar em conta o recorte metodológico “direito na literatura”, ou ainda “direito através da literatura”, um olhar jurídico sobre a obra VOX, de Christina Dalcher, é possível, resultando assim na possibilidade de se pensar em alguns problemas presentes na realidade social em que se situa o universo normativo brasileiro a partir dos exemplos ficcionais presentes no livro em questão. As abordagens são convidativas, não se limitando a uma única forma de se analisar a referida obra literária.
Mesmo assim sendo, tem-se que a questão da mulher e sua representação no corpo social é o elemento que mais se evidencia no livro, ensejando numa abordagem jusliterária que acaba necessariamente por levar em conta esse aspecto. É por assim ser que esse texto se situa no âmbito daquilo que se designou como abordagem jusliterária da mulher na literatura e da mulher da literatura[1], apontando para algumas poucas questões da autora e de sua personagem protagonista presentes no romance que auxiliam a refletir nas questões aqui postas. Em seu site oficial, Christina Dalcher se apresenta como escritora, leitora, romancista e, dentre outras atribuições, costureira, cozinheira e esposa. As funções e posições que ocupa e a forma de declará-las com orgulho é bastante significativo ao contrastar com sua personagem de VOX, evidenciando ser equivocada a ideia que alguns fazem no sentido de que a frente feminista considera como algo baixo, vil ou indigno o papel da mulher na condição de esposa, mãe e dona de casa. Quando surge alguma crítica nesse sentido contra os movimentos feministas, significa que quem critica não entendeu nada. Christina Dalcher se orgulha em ser esposa, costureira e cozinheira por gostar e ter optado por cada um desses atributos que a qualifica. A questão reside justamente na ideia de escolha, algo bem diferente daquilo que é visto no universo de VOX, no qual às mulheres esses papeis são impostos. Não há escolha em VOX, apenas a imposição que deve ser acatada – e é justamente aí que reside o problema da coisa toda. VOX é uma distopia que apresenta ao leitor um universo no qual as mulheres são subjugadas por uma sociedade regida por um governo fundamentalista. A religião funciona como a lei que por todos deve ser observada e rigorosamente cumprida. Com base numa passagem bíblica que estabelece que o marido deve ser o cabeça da mulher, as mulheres são relegadas unicamente à função de boas mães, esposas e donas de casa – devendo estrita obediência aos seus maridos. Toda e qualquer liberdade lhes é retirada, sendo-lhes vedada uma carreira profissional, acadêmica ou qualquer vida outra que fuja do estereótipo “bela, recatada e do lar”. A questão mais gritante que aparece no romance são as pulseiras de uso obrigatório para as mulheres que contabilizam as palavras que são ditas ao longo de cada dia. O limite diário de palavras é cem. Em caso de inobservância dessa limitação, a pulseira dispara um choque elétrico na mulher ousada – com cada vez mais intensidade. Em VOX, até o direito de falar das mulheres é retirado. A protagonista, Dra. Jean McClellan, vive a vida que o governo lhe impôs: mãe de alguns filhos, passa o dia cuidando e limpando da casa enquanto aguarda pelo retorno do marido para a janta e os momentos caseiros da noite. A vida profissional e acadêmica ativa que possuía ficou para trás, tendo cessado quando as mudanças drásticas anunciadas pelo novo governo foram efetivamente implementadas. A personagem optou no passado por ser mãe e esposa, quando isso lhe aparecia como opção. No momento em que se passa a história de VOX, porém, tais papeis são os únicos que lhes são possibilitados, deixando de existir a ideia da opção e da escolha. Por mais que inicialmente o livro soe como algo que se distancie em muito da realidade, justamente por se tratar de uma distopia, o fato é que aos poucos, na medida em que a leitura avança, as similitudes do universo de VOX com a realidade vão surgindo, aparecendo, revelando-se. É nas pequenas coisas, aparentemente insignificantes, que as semelhanças se escancaram, resultando assim num assombro que toma o leitor quando não mais é possível ignorar as comparações feitas com a sociedade atual. Talvez o fator linguagem, dito aqui de forma abrangente enquanto discurso, que se faz presente e opera produzindo efeitos nas falas oficiais do Estado e que repercutem direta e indiretamente na fala de todos, seja o ponto central de análise da obra que mais mereça atenção nesse sentido, pois é através da fala (do ignorar ou do pouco que se faz dela) que o impensável se tornou possível e presente em VOX. Talvez não seja mera coincidência o fato de Christina Dalcher ser também linguista enquanto Jean McClellan possui formação acadêmica e tenha atuado profissionalmente na área da neurolinguística. É esse um elemento que une autora e personagem e repercute na atenção voltada para o fator linguagem que se faz visível na trama. Em VOX, as mudanças que repercutiram no calar das mulheres foram bruscas, o que não significa que vários indicativos já existiam no sentido de que a coisa toda acabaria evoluindo para o cenário drástico observado na obra. Falas minimizadas, avisos ignorados, reducionismos do que significavam problemas apontados figuram como fatores que se operaram pela linguagem – como pode ser observada na passagem em que as manifestações de uma amiga da protagonista, ativista pelos direitos das mulheres, são taxadas como exageradas, cujo descrédito dos avisos de que a coisa toda iria piorar repercutiu até mesmo em Jean McClellan. Situações como essa, de minimização pela fala, de ressignificação pela linguagem que resulta numa redução do problema, podem ser encontradas aos montes na realidade em que se situa a sociedade atual. Em entrevistas feitas com celebridades, por exemplo, há uma diferença notável que costuma aparecer quando as perguntas são direcionadas para homens e para mulheres. Rihanna, Scarlett Johansson, Cate Blanchett e Keira Knightley já figuraram nos holofotes das respostas bem dadas para perguntas sexistas feitas: questionamentos sobre como é possível conciliar vida pessoal com a carreira profissional e sobre o uso de roupas íntimas com o figurino aparecem como essa discrepância existente quando se comparadas com as perguntas feitas para homens. No âmbito jurídico, a coisa acaba sendo bem mais explícita, por mais que ignorada sob o manto da “brincadeira”, ingenuidade ou até mesmo ignorância. “Existe a Lei Maria da Penha, mas quando vão fazer a Lei João da Penha?”, “o salário da mulher deve ser menor porque ela engravida”, “eu não contrato mulheres que querem ser mães” e “mulher de marido violento continua casada porque gosta de apanhar” são frases comuns ditas por muitos cotidianamente. É quase como estivessem situadas num plano de normalidade em que poucos questionam os absurdos ditos por concordarem com a mensagem que elas carregam. Relativiza-se pela linguagem. A seriedade e gravidade de pensamentos assim explicitados são minimizados como sendo coisas de pouca importância ou apenas brincadeiras sem maior repercussão. E assim a coisa segue. Também operam como fatores concretos resultantes dessa forma deturpada de ver a condição e a posição da mulher na sociedade alguns outros sintomas que evidenciam a psicopatologia social do machismo que se faz presente, resultando nas mais diversas situações constrangedoras surgidas e presentes no âmbito jurídico: basta lembrar das diversas culpabilizações que são feitas contra as vítimas de estupro, o episódio da determinação de uma juíza em impedir que advogadas entrassem ao fórum ao considerar o cumprimento dos vestidos ou ainda o caso da juíza que foi criticada por postar uma foto sua de biquíni no Twitter para se ter alguns exemplos visíveis de como a violação da condição feminina opera até mesmo nos ambientes que supostamente são ocupados por pessoas esclarecidas. VOX possibilita uma leitura de alerta, de denúncia, de desvelar práticas sociais que muitas vezes são vistas como inofensivas, mas que em seu âmago são nocivas. A aproximação da ficção de VOX com a realidade social permite que muitas dessas práticas ignoradas ou minimizadas sejam vistas com um olhar mais acurado. Que a atenção devida esteja então presente, promovendo-se assim o necessário avanço em prol da efetivação dos direitos das mulheres, impedindo que o discurso opere em sentido contrário a isso. A luta por direitos está longe de ser qualquer espécie de exagero. Christina Dalcher demonstra isso muito bem com o seu preciso romance distópico. Referência DALCHER, Christina. Vox. São Paulo: Arqueiro, 2018. Paulo Silas Filho Mestre em Direito (UNINTER); Especialista em Ciências Penais; Especialista em Direito Processual Penal; Especialista em Filosofia; Pós-graduando (lato sensu) em Teoria Psicanalítica; Bacharelando em Letras (Português); Professor de Processo Penal e Direito Penal (UNINTER e UnC); Advogado; Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; Membro da Comissão de Assuntos Culturais da OAB/PR; Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura; Diretor de Relações Sociais e Acadêmico da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (APACRIMI); Membro Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito e Literatura NEPEDILL (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito e Literatura Legis Literae) da UNIUBE; E-mail: [email protected] NOTA: [1] Conforme assim se apontou: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-mulher-na-e-da-literatura-possibilidades-de-abordagens-jusliterarias
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