Jean Valjean foi figura reincidente na prática de crime. Elemento carimbado pelo sistema penal. Ainda quando jovem, roubou um pão. Foi fortemente admoestado pelo Estado diante de seu crime, pelo que recebeu uma pena dura de longos anos de serviços forçados. Não bastasse o seu ímpeto criminoso, tentou por várias vezes fugir durante o tempo em que cumpria pena, cujas faltas praticadas durante a execução de sua pena prologaram sua jornada enquanto recluso. Seus cinco anos originais, impostos pela sentença do caso do roubo de pão, transformaram-se em dezenove. Foram, portanto, quase duas décadas nas quais Jean Valjean cumpriu pena. Quase vinte anos preso onde o Estado lhe retribuiu o mal que causou quando livre, onde foi ressocializado através do trabalho, pois o trabalho dignifica o homem. Quase duas dezenas de anos onde Jean Valjean pode refletir sobre seus atos, pagando pelo seu pecado, pelo seu crime, pela sua audácia que interferiu indevidamente na propriedade alheia. O Estado é bondoso. O Estado concede novas chances. Oportuniza aos desviantes a chance de se reerguer, de se redimir, de se reestruturar, de retornar para o seio da sociedade a fim de que se torne uma pessoa honrada, digna, correta. Diante disso, o Estado concede nova chance a Jean Valjean. Após os dezenoves anos em que o reeducou, o Estado o coloca em liberdade. A generosidade é tamanha que o Estado paga ao condenado, descontadas algumas taxas devidas, um valor expressivo pelo labor prestado durante todos aqueles anos, a fim de que possa Jean ter com o que se virar agora que solto. Fornece ainda um novo documento de identidade ao ex-recluso, o qual é belamente trabalhado numa folha amarela, destacando-se os atributos de seu portador. Eis a nova chance concedida pelo Estado. Cabe a Jean Valjean aproveitá-la. Jean Valjean é presunçoso e arrogante. Ao invés de se tornar mais humilde, transformou-se num ser que culpa os outros pelos seus próprios erros. Talvez dezenove anos não tenham sido suficientes para que pudesse efetivamente refletir sobre sua delicada situação. Sua postura inadequada afasta todos aqueles que cruzam o seu caminho. O dono da taberna não pode lhe dar de comer e beber, claro, pois a presença de Jean Valjean intimida a todos os clientes. Resta expulsar o condenado do estabelecimento, mantendo-se assim a paz necessária do local. De igual modo, o dono da hospedaria não pode aceitar uma pessoa como Jean Valjean em um dos seus quartos. Afugentaria outros hóspedes, além de correr o risco de furtos noturnos. O melhor é solicitar ao condenado que se retire. E assim é feito. A culpa, claro, é de Jean Valjean, que pragueja contra tudo e todos. Talvez jamais devesse ter saído do cárcere. Um bispo de uma comunidade por qual passa Jean Valjean é caridoso em demasia. Seu coração é extremamente bondoso, fazendo com que caia no erro de se compadecer da situação do condenado e convidá-lo para jantar e dormir em sua residência. Jean Valjean, oportunista e sem o tal chá de semancol, aceita o convite de bom grado. O condenado abusa da boa vontade e devora o alimento que lhe é servido em instantes. Homem sem modos que causa desconforto naqueles que sentam com ele a mesa. Após o jantar, o repouso noturno. Eis a oportunidade perfeita para que Jean Valjean demonstre sua verdadeira faceta. Enquanto dormem na residência do bispo, Jean Valjean furta alguns itens de valor significativo e depois foge. Ardilosamente esperto, vez que o furto foi crime premeditado – durante o jantar, enquanto um olho estava na comida que devorava, o outro estava à procura de objetos de valor que poderiam ser furtados posteriormente. A reincidência de Jean Valjean se fez presente. Isso era certo. Mesmo com todas as chances e a educação estatal que lhe foram oferecidas, optou por continuar no mundo crime. Quem faz uma vez, faz duas. Não há seletividade quando o Estado acerta na escolha daqueles que devem ser neutralizados. A reincidência é uma grande prova disso. Deveria Jean ter permanecido recluso. Evitar-se-ia a prática de um novo crime, fazendo mais uma vítima. Antes foi o pão, agora foi a prataria. A mesma pessoa, o mesmo crime. Deve ser afastado da sociedade para que, preso, esteja impedido de causar novos males. Mas Jean Valjean é pego. Não consegue ir muito longe. Os agentes estatais que efetuam sua captura levam o detido até o bispo, a fim de que os objetos furtados sejam restituídos e o reconhecimento do criminoso seja realizado. Jean Valjean é apresentado ao bispo. O bispo o reconhece, mas nega ter ocorrido crime. Conta aos agentes estatais que os objetos não foram furtados, mas sim dados espontaneamente e de bom grado ao condenado. Não havia motivo nem razão para a prisão. Jean Valjean podia e deveria ser solto ali mesmo naquele instante. E assim foi. Amarras desfeitas e uma chance para a liberdade, graças a invencionice do bispo. Pobre bispo, que espera recuperar o irrecuperável com o seu ato de bondade. Sequer imagina que certamente Jean Valjean desperdiçará a nova chance que lhe foi dada. Se nem mesmo todos os ensinamentos que recebeu durante os dezenove anos em que ficou preso foram suficientes para impedi-lo de praticar novos crimes, não será agora, mediante uma peculiar lição presente num ato de amor que irá fazer com que o condenado mude. O crime está presente em Jean Valjean enquanto pessoa. É um homem voltado para a prática do crime. É reincidente, demonstrando assim toda a sua periculosidade, o risco que oferece enquanto solto para a sociedade e a possibilidade concreta de que tornará a cometer novos crimes. Seu lugar é no cárcere, pois solto acabará por causar prejuízo para novas vítimas. Jean Valjean segue solto. Não se sabe mais do seu paradeiro, vez que nunca mais foi visto. Mediante a análise de sua trajetória existencial, tendo passado mais tempo preso do que solto, podendo por isso se concluir que deve permanecer sempre recluso da sociedade, é possível imaginar com concretude o que deve estar fazendo: cometendo novos crimes – cada vez mais graves, prejudicando novas vítimas – cada vez de maneira mais significativa, e demonstrando cada dia mais todo o perigo que representa para a sociedade. Jean Valjean. Figura reincidente. Pessoa voltada para o crime. Periculosidade evidente. A prisão é o seu lugar. A liberdade não é para todos! Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] Comments are closed.
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