Arthur Dent é um personagem um tanto quanto peculiar. Pudera, dado o mundo ficcional em que se situa. O protagonista de “O Guia do Mochileiro das Galáxias” proporciona diversos ensinamentos ao leitor, sem jamais perder o tom jocoso e até mesmo irônico que permeiam toda a obra. A começar pela forma com a qual foi construída, “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, de Douglas Adams, trata-se do primeiro volume de uma trilogia de cinco livros. Sim, o absurdo está envolto na obra, a qual por mais que use e abuse do nonsense, não deixa de perder o tom em momento algum. Logo no início do primeiro livro da série vemos Arthur Dent praticando a resistência passiva. Ou desobediência, diriam alguns. Seja como for, o fato é que Arthur Dent descobre certo dia que na manhã seguinte sua casa será demolida para dar lugar a um desvio. “É necessário construir desvios”, dizem-lhe sob tom de justificativa para a drástica medida. O ainda residente insere seu desespero e angústia em uma roupagem resoluta de impasse. “Vamos ver quem é mais chato”, arremata Arthur aos operários que tentam convence-lo a sair da casa para que o progresso se efetive. O lar de Arthur é que está em jogo, e por mais que haja uma determinação legal autorizando a derrubada da moradia, o protagonista se recusa a deixar que a ordem seja cumprida. Necessário explicar aqui como se deu a descoberta por Arthur sobre a demolição da casa, a fim de melhor situar o leitor que eventualmente não tenha tido contato com “O Guia do Mochileiro das Galáxias”. A irresignação do morador se dá principalmente por ter descoberto sobre a destruição de seu lar apenas um dia antes da início da obra. Segue um trecho do diálogo entre Arthur e o Sr. Prosser (o operário que tenta negociar a saída do morador de sua própria casa): “-O senhor teve um longo prazo a seu dispor para fazer quaisquer sugestões ou reclamações, como o senhor saber – disse o Sr. Prosser. -Um longo prazo? – exclamou Arthur – Longo prazo? Eu só soube dessa história quando chegou um operário na minha casa ontem. Perguntei a ele se tinha vindo para lavar as janelas e ele respondeu que não, vinha para demolir a casa. É claro que não me disse isso logo. Claro que não. Primeiro lavou umas duas janelas e me cobrou cinco pratas. Depois é que me contou. -Mas, Sr. Dent, o projeto estava à sua disposição na Secretaria de Obras há nove meses. -Pois é. Assim que eu soube fui lá me informar, ontem à tarde. Vocês não se esforçaram muito para divulgar o projeto, não é verdade? Quer dizer, não chegaram a comunicar às pessoas nem nada. -Mas o projeto estava em exposição... -Em exposição? Tive que descer ao porão para encontrar o projeto. -É no porão que os projetos ficam em exposição. -Com uma lanterna. -Ah, provavelmente estava faltando luz. -Faltavam as escadas, também. -Mas, afinal, o senhor encontrou o projeto, não foi? -Encontrei, sim – disse Arthur. – Estava em exibição no fundo de um arquivo trancado, jogado num banheiro fora de uso, cuja porta tinha a placa: Cuidado com o Leopardo.” A burocracia (mal intencionada, no caso) enfrentada por Arthur Dent lembra os labirintos kafkianos de “O Processo”, ou ainda os porões com arquivos secretos que Semedo passaria a investigar caso Saramago tivesse tido tempo de concluir sua última obra. A questão posta é que Arthur, de uma hora para outra, viu-se numa situação terrível, passando a ocupar uma posição notavelmente hipossuficiente, na qual nada podia fazer, pois o seu prazo para contestar, para se insurgir, para reclamar, já havia passado. O Estado havia feito a sua parte, oportunizando ao morador a chance de descobrir sobre o projeto e se manifestar sobre este em tempo. Prazo findo. Direito precluso. O que restava fazer? Não havendo mais o que ser feito, Arthur fica deitado no chão, entre sua casa e “um trator grande e amarelo que avançava por cima de seu jardim”. Praticou, ali, sozinho, em frente a uma multidão de operários que não viam a hora de derrubar a casa para que pudessem concluir o trabalho até o final da tarde e retornarem para suas próprias casas, um ato de desobediência. Uma resistência passiva. Era o seu ato de protesto. Somente o que lhe restava fazer. Para além da defesa de seu patrimônio, a atitude de Arthur ecoava como um grito contra o sistema. Não há que se falar em crime praticado por Arthur Dent. Como mencionado, sua atitude foi defensiva, em tom de protesto. Não se incutiu na prática de qualquer desordem que valha o braço punitivo alcançar. Mera defesa de um direito patrimonial através de uma postura passiva e resistente. Os operários não poderiam passar por cima do corpo de Arthur (por mais que tenha ocorrido uma ameaça velada em tal sentido: “O senhor sabe que danos esse trator sofreria se eu deixasse ele passar por cima do senhor? [...] Absolutamente zero.”). O residente daquela casa estava apenas ali, parado, impedindo que uma ordem fosse cumprida. Claro que para alguns Arthur poderia ser “enquadrado” como desobediente. Havendo tipificação penal para tanto, processado criminalmente deveria ser por “desobedecer a ordem legal de funcionário público”, conforme prevê o artigo 330 do nosso Código Penal. Seria tal o tipo penal aplicável, pois, conforme diferencia Rogério Greco, “verificamos que os delitos de desobediência e resistência são muito parecidos. A diferença fundamental entre eles reside no fato de que na resistência existe uma “desobediência belicosa”, [...] enquanto na desobediência representa uma resistência passiva”. Mas justamente por isso que é importante sempre contextualizar os fatos, as circunstâncias, pois a singularidade é um fator que se faz presente em cada caso concreto. Teria Arthur praticado algum crime? Como já pontuado, não. Praticou algo no estilo da desobediência civil construída por Thoreau, ou seja, mediante uma postura de consciência de objeção, não cooperou com o ato estatal injusto. Arthur foi evidentemente lesado de maneira injusta. Veio a saber apenas uma dia antes, meio que por acaso, que sua casa seria demolida. Uma ação estatal em prol da melhoria de muitos (um desvio) enquanto em detrimento dos direitos de um único cidadão (o patrimônio – a moradia – de Arthur). Uma concepção utilitarista sem freios que não é vista apenas nos livros.Dificuldades e injustiças como a aqui exposta ocorrem diariamente em todos os cantos do país. Enquanto uns se recusam abertamente a cumprir determinações judiciais sem que nada ocorra, outros (que são vistos como os “outros”) quando o fazem recebem a mão pesada do Estado. A violência legítima (para quem?) acaba se fazendo presente a fim de coibir resistências passivas (ou até mesmo ativas, a depender as situação). Não há contexto quando o Estado age em “último caso”. Não se quer saber se houve algo antes. Apenas o ali importa. Nada além. Mas quando o tudo é de fato necessário? E quando é que o lado legal incorre em erro? Como e quando distinguir o legítimo do ilegítimo, o justo do injusto, o a ordem da desordem? A casa de Arthur Dent teve um destino bastante peculiar, principalmente ao considerar a moradia como algo bem mais amplo. Mas e nós e nossa moradia, como ficamos e como devemos ficar? Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura E-mail: [email protected] BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ADAMS, Douglas. O Guia do Mochileiro das Galáxias. Rio de Janeiro: Sextante, 2010 GRECO, Rogério Curso de Direito Penal: parte especial, volume IV. 9ª Ed. Niterói: Impetus, 2013. p. 521
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