O mandado constitucional de criminalização insculpido no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal de 1988, preleciona que o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Tal modalidade é equiparada aos crimes hediondos (Lei nº. 8.072/1990).
Diante da necessidade de uma nova legislação infraconstitucional penal que regulasse a matéria, adveio a Lei nº. 11.343/2006 – que ab-rogou as anteriores leis nº. 6.368/1976 e nº. 10.409/2002. Por um lapso de quase quatro anos, a Lei de Drogas de 2006 pautou-se na aplicação positivista do texto legal: crime inafiançável; insuscetível de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória; regime de cumprimento de pena integralmente fechado (até o surgimento da Lei nº. 11.464/2007, que entrou em vigor na data de sua publicação e alterou o regime para inicialmente fechado); proibida a conversão de suas penas em restritivas de direitos; e a possibilidade do benefício da redução de um sexto a dois terços ao traficante primário e sem ligações criminosas, verificado o caso concreto e adogmática jurídica do aplicador da lei penal. Os tribunais superiores e os estaduais asseveravam que a proibição genérica não caracterizava qualquer violação a direitos e garantias constitucionais individuais (como a liberdade de locomoção, a presunção de inocência e a individualização da pena),tendo em vista que o próprio constituinte originário previra tratamento mais rigoroso aos crimes hediondos e equiparados, incluindo-os no mesmo Capítulo I (“Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”), do Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”), da Constituição Federal. Porém, tal posicionamento positivista tornou-se minoritário. Atualmente, a corrente majoritária sustenta uma visão garantista, com argumentos baseados na supremacia de direitos e garantias constitucionais fundamentais (direitos de primeira geração – liberté), pactos internacionais, teorias humanistas e de ressocialização. Analisando abstratamente e em termos gerais, para o agente que comete uma infração penal, e neste caso específico refiro-me à lei de drogas, quatro principais etapas o aguardam: 1) inquérito policial (em regra, prisão em flagrante delito – posteriormente convertida em preventiva, nos termos do artigo 310, inciso II, do Código de Processo Penal, com fundamento (massivamente genérico) na proibição da liberdade provisória descrita no artigo 44 da Lei nº. 11.343/2006); 2) oferecimento da denúncia pelo membro do Ministério Público, iniciando a ação penal pública incondicionada com o procedimento específico e delineado, e com o agente aguardando o término do trâmite processual encarcerado; 3) trânsito em julgado da sentença penal condenatória; 4) execução da pena. Com relação à proibição expressa da concessão da liberdade provisória, o plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas-corpus 104.339/SP (no dia 10 de maio de 2012), por maioria de votos, decidiu, incidenter tantum, pela inconstitucionalidade da referida vedação constante do artigo 44 da Lei nº. 11.343/2006, com escopo nos princípios constitucionais do devido processo legal e da presunção de inocência (incisos LIV e LVII, respectivamente, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988). Por conseguinte, quando inviáveis medidas cautelares alternativas, a decretação da prisão preventiva fundamentar-se-ános requisitos do periculum libertatis(artigo 312 do Código de Processo Penal – garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; conveniência da instrução criminal; assegurar a aplicação da lei penal) e fumus commissi delicti (indícios de autoria e materialidade). A depender do quantum da causa de diminuição aplicada ao tráfico privilegiado (artigo 33, § 4º, da Lei nº. 11.343/2006), possível seria a substituição da pena privativa de liberdade pelas restritivas de direitos, desde que observado o limite máximo de quatro anos de pena imposta (artigo 44, inciso I, do Código Penal). Entretanto, uma vez que o tráfico de drogas é equiparado aos crimes hediondos, e dispondo a Lei nº. 8.072/1990 em seu artigo 2º, § 1º, que o regime de cumprimento de pena será o inicialmente fechado, não haveria conflito entre as leis? O habeas-corpus nº. 111.840/ES julgado pelo plenário da Suprema Corte (no dia 27 de junho de 2012), declarou, com efeito incidenter tantum, a inconstitucionalidade do trecho“inicialmente fechado” do § 1º, do artigo 2º, da Lei nº. 8.072/1990, com vistas ao princípio constitucional da individualização da pena (inciso XLVI, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988). Deste modo, para definição da reprimenda inicial, o magistrado utilizar-se-á do artigo 33, § 2º, do Código Penal, considerando a pena concretamente imposta. Por fim, a lei aponta no artigo 33, § 4º, da Lei nº. 11.343/2006, quatro requisitos taxativos e cumulativos para a concessão da causa de diminuição,nos limites de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços): primariedade;bons antecedentes; não se dedicar a atividades criminosas; e não integrar organização criminosa. Imaginemos o agente primário que seja condenado ao mínimo da pena prevista para o crime de tráfico de drogas – cinco anos de reclusão. Por si só, não haveria como sequer imaginar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, vez que não preenchido o requisito do inciso I, do artigo 44, do Código Penal – “a pena privativa de liberdade não superior a quatro anos”. Porém, com a redução máxima de 2/3 (dois terços),a pena chegará ao patamar de 01 (um) ano e 08 (oito) meses de reclusão, viabilizando a aplicação da substituição, pois preenchido o requisito objetivo autorizador (obviamente, os requisitos subjetivos dos incisos II e III também deverão ser analisados). Contudo, como ficaria a vedação descrita no artigo 44 da Lei nº. 11.343/2006? Pronunciando-se a respeito, o plenário do Pretório Excelso (no dia 1º de setembro de 2010), ao julgar o habeas-corpus nº. 97.256/RS, declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do § 4º, do artigo 33, e do trecho “vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”, previsto no artigo 44, ambos da Lei nº. 11.343/2006, com base no princípio constitucional da individualização da pena (inciso XLVI, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988). Após tal decisão definitiva, o Senado Federal, em atividade privativa incumbida pela Constituição Federal (artigo 52, inciso X), elaborou a Resolução nº. 05, de 15 de fevereiro de 2012, e suspendeu a execução da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, do § 4º, do artigo 33 da Lei de Drogas, impondo efeito erga omnes. Podemos observar, então, que o tráfico de drogas é regulado por duas leis: nº. 11.343/2006 e nº. 8.072/1990. Alguns dos dispositivos em vigência foram“mitigados” pelo Supremo Tribunal Federal em vias de controle difuso de constitucionalidade (ressalte-se que suas decisões, verdadeiros precedentes jurisprudenciais nacionais, influenciam diretamente no julgamento dos órgãos judiciários inferiores). A Suprema Corte, norteada pelo garantismo (será ainda garantista com a terrível decisão proferida no habeas-corpus nº. 126.292/SP – possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau?), com diretrizes aos princípios constitucionais (individualização da pena, presunção de inocência, liberdade), permitiu a aplicação da concessão da liberdade provisória, regime de cumprimento de pena diverso do inicialmente fechado e a possibilidade da substituição da pena, em contrapartida ao estabelecido pelo legislador ordinário. Portanto, estaria a Suprema Corte brasileira legislando e (inter)ferindo no sistema da separação dos poderes constituídos (checksand balances), modelo proposto por Montesquieu e previsto no artigo 2º do atual texto constitucional? Um tema para reflexão! Murilo Z. Crespo Advogado Criminal Comments are closed.
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