Artigo do colunista Bryan Bueno Lechenakoski, com as acadêmicas de direito Ana Rita Carvalho dos Santos e Caroline Cristina de Souza Bauer, elaborando excelente pesquisa empírica sobre a seletividade no sistema penal. Vale a leitura! '' Se de uma perspectiva Lombrosiana (e extremamente equivocada), alguns retirando suas máscaras (de cidadãos de bem?) poderiam apontar que a população mais carente, negra e com baixa escolaridade seriam as pessoas que mais cometeriam delitos, em outra perspectiva criminológica, tem-se completamente desenhado (para aqueles que necessitam que desenhe), a desigualdade e seletividade do tratamento penal''. Por Bryan Bueno Lechenakoski, Ana Rita Carvalho dos Santos e Caroline Cristina de Souza Bauer. Há aqueles que ainda relutam em reconhecer o preconceito racial e social instituído nas raízes culturais brasileiras, outros saem das sombras para retirar as máscaras e mostrar a verdadeira face do preconceito. Em uma rápida pesquisa feita pela plataforma google, com cerca de 20 (vinte) pessoas, a título exemplificativo para o presente escrito, obteve-se resultados que refletem esse pensamento intrínseco na nossa sociedade. Sendo assim, na pergunta número um, questionou-se quais as características (etnia) são de um criminoso [1], sendo que 31,6% dos entrevistados colocaram que viam o criminoso com a pele negra. Na pergunta número dois, questionou-se quais as características (classe social) são de um criminoso [2], sendo que 73,7% (14 dos 19 entrevistados), colocaram que vê o criminoso com renda financeira baixa. Já na pergunta número três, que inquiria aos aludidos entrevistas se os mesmos achavam que o criminoso possuía tatuagens e ou piercings, ocorreu um empate de 36,8%, pois relataram que sim e a mesma porcentagem que não [3]. Tratando-se da pergunta número quatro, que se refere ao grau de escolaridade de um criminoso, para os entrevistados, 58,8% (10 pessoas de 17 que responderam esta aludida pergunta), colocaram que o criminoso possuía apenas o ensino fundamental incompleto [4]. Já na questão número cinco, foi abordando a idade de um criminoso, as respostas variam de 16 a 38 anos de idade, sendo que 29,4% apontou que percebe um criminoso com 16 anos de idade. Não menos evidente que este reflexo classista e racista reflete na população carcerária, na medida em que em uma rápida consulta nos dados informados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2019), verifica-se que temos ao total de 748.009 presos no Brasil (relembrando que esse número pode ser ainda maior, na medida que pessoas entram e saem do sistema carcerário todos os dias em virtude do cumprimento de pena, ou decretação de prisões em flagrante ou cautelares). Como na atualidade foi excluído a questão da etnia das pessoas presas, ao menos até onde se pesquisou nas informações disponibilizadas pelo INFOPEN, foi preciso buscar nas informações de Junho/2017, a qual constata-se que “somados, pessoas presas de cor/etnia pretas e pardas totalizam 63,6% da população carcerária nacional” (INFOPEN, 2017, pp. 30/31). Por outro lado, em relação aos últimos dados obtidos acerca do censo em relação a etnia dos brasileiros, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) revelam que “o total de pardos e pretos representam 55,4% da população brasileira” (INFOPEN, 2017, pp. 31/32). Não menos chocante quando confrontados os dados da massa encarcerada em relação a escolaridade, pois em 2017, por exemplo, 3,45% das pessoas encarceradas era analfabeta, sendo 5,85% considerados alfabetizados. Ainda, 51,35% das pessoas encarceradas possuíam ensino fundamental incompleto, e 13,15% com ensino fundamental completo. Aqueles que possuía até o ensino médio incompleto representam 14,98% da população carcerária. Tais porcentagens, por exemplo, se somados os dados de pessoas com até o ensino fundamental completo, chega-se a 73,80% do total dos encarados. Tornando ainda mais problemático esse número, tomando por base pessoas com até o Ensino Médio Incompleto, chega-se a 88,78% da população carcerária total (INFOPEN, 2017, p. 34). Por outro lado, de acordo com o PNAD Contínua de 2017, acerca da população brasileira de forma geral, tem-se que 7,2% são analfabetos, 33% ensino fundamental incompleto, 8% com ensino fundamental completo, 4,4% com ensino médio incompleto, 26,80% com ensino médio completo, 3,6 com ensino superior incompleto, e 17% com ensino superior completo (INFOPEN, 2017, p. 34). Diante de tal informação, temos o total de 44,60% da população brasileira formada com pessoas até o ensino médio incompleto. A diferença entre a realidade brasileira e a população carcerária é notória e fica evidente com os gráficos disponibilizados pelo INFOPEN (2017, p. 34): Se de uma perspectiva Lombrosiana (e extremamente equivocada), alguns retirando suas máscaras (de cidadãos de bem?) poderiam apontar que a população mais carente, negra e com baixa escolaridade seriam as pessoas que mais cometeriam delitos, em outra perspectiva criminológica, tem-se completamente desenhado (para aqueles que necessitam que desenhe), a desigualdade e seletividade do tratamento penal. Para os desavisados, que, porventura, possam levantar a bandeira de que os white collar crimes estão sendo perseguidos pelo Estado e, também punidos, retirando a legitimidade do discurso da seletividade penal, deve-se alertar ao aviso que ZAFFARONI e SANTOS realizam sobre a punição de pessoas que ocupam os cargos mais altos: “A criminalização desses poucos macrodelinquentes caídos em desgraça é útil para mostrá-los como contrapartida do self made man e vender a ilusão de uma punição igualitária ao público” (ZAFFARONI; SANTOS, 2020, p. 123). Em uma abordagem criminológica, em especial do Labelling Approach, tem-se uma possível explicação (?!) para esse fenômeno, senão vejamos. Uma advertência antes de adentrar sucintamente a teoria do Labelling Approach, é que para compreensão das teorias criminológicas, é necessário conhecer as teorias pelas quais a teoria do Labelling Approach tomou como base, pois como menciona FERRO (2004): “A criminologia se fez lentamente, pelas mãos e penas de muitos, não do dia para a noite, mas, como é natural, ao passo dos séculos: cada nova corrente criminológica repousa sobre o terreno semeado por outras correntes” (FERRO, 2004, p. 99). Desta forma, abordando sucintamente somente duas perspectivas da teoria, percebe-se que inicialmente temos a criminalização primária, que de acordo com ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR (2006, p. 43): “Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”. Observando dentre inúmeras outras variáveis, tem-se que há uma quantidade exacerbada de condutas criminalizadas, sendo que as agências estatais incumbidas de aplicar as normas não dão conta desta totalidade, sendo uma consequência natural que os órgãos oficiais levem “a cabo a seleção de criminalização” (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2006, p. 44). Assim, inúmeros delitos recaem nas cifras (douradas, ocultas, etc.), permanecem na segunda etapa da criminalização apenas as condutas que os órgãos oficiais do Estado conseguem dar conta, através de uma seletividade “natural” do sistema penal. Na criminalização secundária, ainda que nos dias correntes a seletividade penal tenha abraçado outro grupo além daqueles marginalizados e excluídos [5], nos concentraremos aqui na seleção destes grupos. Os critérios para que os indivíduos sejam selecionados pelo sistema penal, passa inevitavelmente por uma estrutura complexa, na qual conta com a atuação policial (influenciada e condicionada por outras agências como as midiáticas e políticas), critérios a partir de quem é a vítima etc. (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA; SLOKAR, 2006, pp. 44/45). O sistema seletivo penal, por muitas vezes e em sua grande maioria, não é orientado pela má-fé dos agentes oficiais encarregados, mas sim por uma ritualística quase impregnada intrinsecamente nos aparatos oficiais, que em virtude de uma estrutura débil, devem selecionar pessoas e condutas para submeter a persecução penal, quase sempre essa ritualística passa por fazer o mais simples, ou seja, selecionar: “a) por fatos burdos ou grosseiros (a obra tosca da criminalidade, cuja detecção é mais fácil), e b) de pessoas que causem menos problemas (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou à comunicação massiva)” (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA; SLOKAR, 2006, p. 46). A formação do estereótipo do ser desviante, além das influências externas ao sistema de justiçamento penal [6], advém justamente desta ritualística empregada no seio da sociedade como um todo, uma vez que estes indivíduos selecionados pelo sistema penal através dos critérios retro elencados, “acabam sendo divulgados por esta como os únicos delitos e tais pessoas como os únicos delinquentes. A estes últimos é proporcionado um acesso negativo à comunicação social que contribui para criar um estereótipo no imaginário coletivo” (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA; SLOKAR, 2006, p. 46). Nesta perspectiva, por se tratar de pessoas mais vulneráveis socialmente, engendra-se o preconceito na própria sociedade, “o que resulta em fixar uma imagem pública do delinquente com componentes de classe social, étnicos, etários, de gênero e estéticos” (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA; SLOKAR, 2006, p. 46). Caro leitor, se, mesmo depois de todo o mencionado, você ainda está na dúvida da seletividade do direito penal, e se efetivamente existe diferença de tratamento pela sociedade entre as pessoas que supostamente “praticam” os mesmos delitos, por exemplo, veja a seguinte diferença nos meios de comunicação: Ainda que se diga que a distinção entre universitários e traficantes não represente efetivamente uma seletividade, ou estereótipo do ser desviante, um levantamento em São Paulo divulgou dados estarrecedores que evidenciam ainda mais a função seletiva do direito penal a partir da classe social, etnia, faixa etária, gênero etc. A pesquisa foi realizada pela Agência Pública, que analisou 04 mil sentenças na justiça estadual de São Paulo, e pode-se constatar que pessoas negras são mais condenadas por tráfico e com menos drogas do que em comparação com as pessoas brancas (DOMENICI; BARCELOS; FONSECA, 2019). A título exemplificativo, em um recorte realizado na pesquisa pela Agência Pública, quando se trabalha com a quantidade de até 25gramas, da substância popularmente conhecida como maconha, tem-se o seguinte quadro (DOMENICI; BARCELOS; FONSECA, 2019): Segundo a Agência Pública, a porcentagem acima realizada é resultado da equação: Total de Negros Condenados pelo Total de Negros Julgados e Total de Brancos Condenados pelo Total de Brancos Julgados. Nesta perspectiva o sistema de justiçamento penal seletivo é importante aliado na formação do preconceito e, acaba por ser mais um instrumento de manutenção do status quo nas relações de hegemonia de poder, colocando em cheque, inclusive, a própria legitimidade de um sistema penal como um todo, na medida em que “põe em questão nada menos que a eficácia de qualquer norma penal, levando em conta a diferença kelseniana entre a validade e a eficácia da norma” (ZAFFARONI; SANTOS, 2020, p. 40). Portanto, o aperfeiçoamento deve ocorrer no sistema, almejando-se a justiça a equidade de todos, sem distinções nem pré-julgamentos ou estereótipos, compreendendo-se, portanto, “que o que precisa ser modificado é o sistema, e não o ser humano”. (KAISER, 1988, p. 07). Enquanto o sistema penal continuar sendo seletivo, pessoas como George Floyd, João Pedro, Pedro Henrique e tantos outros, se não perderem suas vidas nas ruas, as perderão sendo presos, muitas vezes, injustamente. Enquanto o sistema penal for cruel, haverá pessoas comemorando e vibrando com a morte de um sequestrador e, não com a liberdade da vítima, pois na expressão de Douglas Belchior no Negro Belchior o que está na “moda é o necroamor”: É natural então que quando o sequestro termina com a vítima ilesa, todo mundo comemore. O que é algo muito diferente de comemorar a morte do sequestrador. Uma coisa é a comemoração da vida, outra coisa a comemoração da morte (BELCHIOR, 2019). Mas afinal, na sociedade em que a vidraça da instituição financeira tem mais valor do que a vida do “indesejável”, o que importa mesmo é eliminar seu hostil, seja através da violência, seja através do justiçamento penal. Ana Rita Carvalho dos Santos Acadêmica no Curso de Direito Universidade do Contestado (UnC) do Campus Marcílio Dias, e-mail: [email protected] Bryan Bueno Lechenakoski Professor na Universidade do Contestado (UnC), Mestre em Direito pelo Centro Universitário Internacional - Uninter. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogado criminalista. E-mail: [email protected] Caroline Cristina de Souza Bauer Acadêmica no Curso de Direito da Universidade do Contestado (UnC), Campus Marcílio Dias, e-mail: [email protected] NOTAS: [2] Gráfico da pesquisa realizada: [3] Gráfico da pesquisa realizada: [4] Gráfico da pesquisa realizada: [5] Neste sentido aponta ZAFFARONI e SANTOS: “A novidade dos últimos tempos é que se acrescenta à seletividade estrutural dos poderes punitivos da região o ressurgimento da seleção política persecutória, às vezes recuperando método típicos dos tempos ditatoriais, ainda que geralmente praticados com o já mencionado procedimento lawfare, para o qual, como vimos, os procônsules do totalitarismo corporativo fazem uso de sus monopólios da mídia e de alguns setores judiciais que servem aos seus interesses. Em suma, a criminalização secundária não recai apenas sobre os excluídos, mas também mostra a tendência marcada para criminalizar opositores políticos e dissidentes. ZAFFARONI; SANTOS, 2020, p. 122).
[6] Termo justiçamento é aqui empregado justamente pelo sentido crítico do termo justiça, na medida que a violação de diversos princípios constitucionais, como exemplo a Isonomia (tratando as pessoas de forma desigual na seleção e aplicação da lei penal) é tudo, menos justiça e, assim, não merece ser utilizado o termo justiça penal, enquanto houver tratamento desigual no sistema penal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BELCHIOR, Douglas. Ele comemorou, não a vida das vítimas, mas a morte do sequestrador. Brasil e a era do necroamor. Pub. 20/08/2019. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/ele-comemorou-nao-a-vida-das-vitimas-mas-a-morte-do-sequestrador-brasil-e-a-era-do-necroamor/>. Acesso em: 06/06/2020. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN). Jun/2017. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf>. Acesso em: 06/06/2020. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN). Dez/2019. Disponível em: <https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9>. Acesso em: 06/06/2020. DOMENICI, Thiago; BARCELOS, Iuri; FONSECA, Bruno. Negros são mais condenados por tráfico e com menos drogas em São Paulo. Pub. 06/05/2019. Disponível em: <https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/> Acesso em 06/06/2020. FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. KAISER, Gunter. Introducción a la Criminología. Trad. de José Arturo Rodríguez Nunez. 7. ed. Madrid: Dykinson. 1988. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. Vol. 1. Rio de Janeiro: Revan. 2006. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; SANTOS, Ílison Dias dos. A Nova Crítica Criminológica: Criminologia em tempos de totalitarismo financeiro. Trad. Rodrigo Murad do Prado. São Paulo: Tirant Lo Blanch. 2020.
1 Comment
6/15/2020 08:03:44 pm
Parabéns. Artigo muito bem feito. Uma realidade que, infelizmente, ainda ocorre. Não somente no Brasil. Vide caso George Floyd (EUA) e o racismo no futebol... Coisa de doido!!!
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