Artigo do Colunista Douglas Rodrigues sobre a identificação criminal e a coleta de material genético. Vale a leitura! ''De todo modo, é certo também que a lei não prevê a permanência dos dados ad eternum no banco de informações. Com as modificações da Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime), está claro que os dados devem ser excluídos em caso de absolvição do agente ou, se condenado, após duas décadas do cumprimento da pena. Um destaque negativo, porém, está na situação do arquivamento do inquérito, não tratada na norma''. Por Douglas Rodrigues O presente estudo, em suas breves linhas, tem por escopo apresentar os argumentos favoráveis e contrários à constitucionalidade da legislação brasileira que permite à coleta de material genético para fins de identificação criminal. No entanto, antes do efetivo ingresso nos argumentos favoráveis e contrários à constitucionalidade do indigitado diploma legal, sobreleva pontuar algumas questões contextuais importantes para que se compreenda adequadamente em que condições a norma tratada sobreveio ao ordenamento jurídico pátrio.
As origens da norma remontam ao ano de 2009, quando, por meio da Lei n. 12.037, houve a regulamentação do artigo 5º, inciso LVIII, da Constituição da República, relativo à vedação de identificação criminal daquele que já se encontra civilmente identificado. Ou seja, como se infere do texto constitucional, a identificação criminal deve ser uma medida excepcional ante um indivíduo que possua adequada e suficiente identificação civil, devendo seguir estritos parâmetros legais para que possa ser utilizada pelos órgãos de persecução penal. E, nesse sentido, a legislação ordinária veio justamente no intuito de definir balizas mais precisas sobre os limites dessa identificação criminal. A referida norma, dentre diversos pontos, indica quais os documentos civis capazes de proceder à identificação civil e, na insuficiência ou suspeita sobre eles, as hipóteses de identificação criminal, em regra, concretizada por meio datiloscópico (impressões digitais) e fotográfico. Entretanto, o ponto mais polêmico da norma reside em seu artigo 5º, parágrafo único, incluído pela Lei n. 12.654/2012. A alteração legislativa apresentou como uma das possibilidades de identificação criminal a coleta de material genético por meio de obtenção de material biológico, pelo que, em suma, seria possível à autoridade policial o armazenamento de informações de DNA em banco de dados genéticos como consequência do procedimento de identificação. E é justo aqui onde residem os principais problemas. Para alguns, como é o caso de Aury Lopes Junior (2013, p. 629-637), o ponto vulnerável da constitucionalidade da norma reside na sua aparente violação ao princípio constitucional de não autoincriminação, por meio do qual nenhum investigado tem a obrigação de colaborar com sua própria incriminação, sobretudo por meio da produção probatória em seu prejuízo. Embora a lei não trate, prima facie, da questão como um meio de obtenção de prova em eventual processo, denominando a situação como procedimento de identificação criminal, ao fim e ao cabo, é a isso que se presta. Como indicado por Gisele Mendes de Carvalho e Thaís Corazza (2014, p. 429), a coleta de material biológico, em específico o DNA (ou ADN na sigla em português), não seria necessária à identificação, notadamente quando é sabido que a identificação datiloscópica, em ciência, detém forte aceitação e respeitabilidade como mecanismo de individualização de um ser humano, sendo uma ferramenta mais do que adequada para proceder à identificação criminal de alguém. E, assim sendo, pensar o DNA como somente um instrumento de identificação tornaria a norma inócua e sem sentido. Por tal razão é que não se deve observá-la apenas como um instrumento de identificação, especialmente porque a própria norma prevê o depósito desses dados genéticos em um grande banco nacional unificado, gerido pelo Ministério da Justiça. Nessas condições, pois, a questão transcende à mera identificação. E justo por isso, por ser um instrumento de prova, a constitucionalidade da medida torna-se questionável, máxime quando a legislação ordinária autoriza a coleta desse material em duas situações: para fins da investigação criminal, como forma de indicar a autoria de um delito; e em sede de execução penal, quando determina a entrega compulsória desse material por condenados em crimes dolosos com violência grave à pessoa ou considerados hediondos. O primeiro ponto crítico à constitucionalidade, como já dito, está no aspecto da não autoincriminação. Pois quando alguém, voluntariamente, entrega seu material genético à autoridade policial para fins da investigação preliminar, não há maiores problemas, é um conduta positiva do sujeito que, no fim das contas, poderá servir como forma de exercício de uma autodefesa positiva. A grande celeuma, contudo, está em se permitir a coleta coercitiva do material em determinadas hipóteses, tornando-a compulsória, e isso ocorre nas duas situações apontadas. No caso de suspeitos de crime, a lei é até bastante ampla. Embora exija ordem judicial para que se proceda à coleta, não há delimitação de quais crimes podem ser objeto dessa medida, pelo que se pode compreender que qualquer crime autorize tal ação. Mas o ponto mais relevante aqui, sem dúvida, está na possibilidade de obtenção do material genético sem o consentimento do investigado. Um exame da questão aponta para uma relativização da não autoincriminação na medida em que obriga o investigado a colaborar com a persecução, pois, em caso contrário, será submetido a isso por meio de coerção. Nas palavras de Aury Lopes Junior (2013, p. 633), com essa previsão “fulminou-se a tradição brasileira de respeitar o direito de defesa pessoal negativo – nemo tenetur se detegere”. Em casos de condenados – no âmbito da execução penal –, a constitucionalidade também se apresenta como matéria delicada. Na hipótese do artigo 9º-A da Lei de Execuções Penais (especialmente após as alterações promovidas pela autointitulada “Lei Anticrime”), o preso – pela prática dos delitos ali descritos – não só deve ser submetido à coleta do material biológico como eventual recusa pode sujeitá-lo à falta grave. E isso, como bem se vê, nada mais é do que uma medida coercitiva de cessão de material probatório, muito embora aqui o objetivo já não seja mais o crime pelo qual o sujeito executa a pena, mas uma prova de crime futuro, acaso seja reincidente ou pratique outro fato – conquanto esse não seja o objetivo declarado da previsão legal. Tudo isso, claro, sem olvidar do problema em relação à estigmatização que a medida impõe aos presos por crimes hediondos ou problemas em relação aos limites do instrumento em casos nos quais o crime apurado tenha baixa complexidade probatória e a coleta de material genético não detenha um caráter de preponderância. Sinteticamente – sem descurar da complexidade da situação –, essas hipóteses legais, numa primeira leitura, podem ser vistas como violadoras ao direito fundamental de não autoincriminação. Por outro vértice, todavia, alguns defendem a constitucionalidade da medida, como é o caso de Douglas Fischer e Eugênio Pacelli (2013, p. 397), em especial ao caso da investigação criminal. E assim o fazem amparados em dois fundamentos: a falta de natureza absoluta dos direitos fundamentais e, sobretudo, o denominado “princípio de proteção eficiente”, enquanto desdobramento do princípio da proporcionalidade na esfera criminal. Para os defensores dessa vertente, em casos de investigação criminal, não caberia falar de plano em violação ao nemo tenetur se detegere. Como se depreende do artigo 3º, inciso IV, da Lei n. 12.037/2009, a coleta coercitiva de material só ocorreria mediante observância de estritos requisitos legais, notadamente a comprovação da “emergência” probatória, em conjunto a uma ordem judicial fundamentada. Nesses casos, assim como ocorre com a violação de domicílio (busca e apreensão) e violação de comunicações privadas (interceptação telefônica), o constituinte abre espaços para relativizações diante de situações excepcionais e que estejam resguardas pelo mais rigoroso véu da legalidade e da proporcionalidade da medida adotada. E, aqui, a própria norma impõe uma coleta indolor e pelo meio menos invasivo, a qual não terá espaço se inexistir comprovação da insuficiência dos meios ordinários de prova (ultima ratio) e a sua necessidade para resolução daquele específico caso concreto, tudo em consonância aos estreitos limites da ordem judicial fundamentada. Com efeito, “a Lei n. 12654/12 se acomoda perfeitamente às exigências constitucionais do controle judicial das intervenções da vida privada” (FISCHER; PACELLI, 2013, p. 397). Aliás, parte dos defensores da coleta de material genético apontam-na como menos invasiva e agressiva do que a própria coleta datiloscópica, por exemplo. De todo modo, é certo também que a lei não prevê a permanência dos dados ad eternum no banco de informações. Com as modificações da Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime), está claro que os dados devem ser excluídos em caso de absolvição do agente ou, se condenado, após duas décadas do cumprimento da pena. Um destaque negativo, porém, está na situação do arquivamento do inquérito, não tratada na norma. A segunda hipótese legal, no entanto, se apresenta um pouco mais problemática, pois envolve, em caso de condenados, a coleta compulsória e sem ordem judicial desse material genético mesmo quando não há a existência de um processo ou investigação concreta e presente. Nesse ponto, a constitucionalidade deve decorrer de uma interpretação conforme à Constituição. Em específico, a compulsoriedade da coleta somente poderia residir em casos com condenação com trânsito em julgado e em situações de crimes sexuais ou de execução sumária. Não poderia, ao revés, incluir todo e qualquer crime praticado mediante grave violência contra à pessoa, como um latrocínio ou um crime passional. No mais, seria preciso que a medida tenha efetiva utilidade, em hipóteses nas quais o crime deixa vestígios. Fora dessas balizas, seguramente a identificação genética compulsória se apresenta demasiadamente abusiva e sem escolta constitucional, máxime diante da suficiência da identificação criminal comum nesses casos. Enfim. A questão não é simples. De nossa parte, tendemos a caminhar em sentido convergente à parcela que enxerga a constitucionalidade da medida, desde que, por evidente, se observe os estreitos limites da proporcionalidade e, no mais, observe a efetiva utilidade da medida (sobretudo no caso de condenados). Por outro lado, não se pode consubstanciar a constitucionalidade como forma de criar um mecanismo de estigmatização pura e simples ou criar uma perniciosa inversão de caminhos da instrução preliminar, partindo-se de um direito penal de autor em busca de bodes expiatórios em crimes presentes. Certo é, porém, que entre o céu e o mar há muita coisa a ser vista. Douglas Rodrigues da Silva Mestrando em Direito (UNICURITIBA) Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNICURITIBA) Bacharel em Direito (UNICURITIBA) Professor de Direito Penal Econômico e Legislação Penal Especial nas Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais (FIEP-IEL) Advogado Criminal em Curitiba, Paraná. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORAZZA, Thaís Aline Mazetto; CARVALHO, Gisele Mendes de. A Identificação Genética dos Civilmente Identificáveis como Meio de Prova de Autoria. Revista Jurídica Cesumar-Mestrado, v. 14, n. 2, p. 413-434, 2014. FISCHER, Douglas; PACELLI, Eugênio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2013. LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
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