É essencial para a leitura e compreensão do presente escrito, o artigo publicado anteriormente na coluna sobre Política de Drogas, se você ainda não leu, clique aqui.
Assim, partindo do pressuposto de termos fixado as premissas básicas do que pretendemos construir, partimos para o que interessa, a criminalização primária no Labelling Approach e a lei 11.343/06. Na lei 11.343/06, não há critérios objetivos com relação a diferenciação entre o usuário e o traficante, cabendo a análise do que dispõe o artigo 28, §2º da lei 11.343/06:
Para destrinchar os requisitos trazidos acima, pode-se dizer que 02 requisitos estão baseados no objeto material (quantidade e natureza da droga), 02 circunstâncias acerca do desvalor da ação (local e condições que se desenvolveu a ação), e 04 requisitos baseados em caráter de ordem pessoal (circunstâncias sociais e pessoais, conduta e antecedentes). Delimitaremos a abordagem nos requisitos de ordem pessoal, apesar das diversas críticas com relação a falta de um critério objetivo de quantidade e natureza da droga, bem como o que seriam o local e as condições em que se desenvolveram a ação. Temos, portanto, 04 critérios fundados em requisitos de ordem pessoal, sendo primeiramente circunstâncias sociais e pessoais, que, em verdade, podem significar segundo GOMES: “modus vivendido agente (ele vive do que?). (...) Qual sua fonte de receita? Qual é sua profissão? Trabalha onde? Quais sinais exteriores de riqueza aparenta? Tudo isso conta para a correta definição jurídica do fato.”[1] Ao que aparenta, em uma análise rápida, será avaliada a condição financeira daquele detido na posse de drogas, o que remete ao raciocínio: Se for pobre será traficante, se for rico será usuário., como exemplo trazido por GOMES: “Não faz muito tempo um ator de televisão famoso foi surpreendido comprando uma quantidade razoável de drogas. Aparentemente, pela quantidade, seria para tráfico. Depois se comprovou ex abundantiasua qualidade de usuário.”[2] O questionamento que se realiza é: Se fosse um sujeito da classe baixa da sociedade, que fosse pego com uma quantidade razoável de entorpecentes, qual seria seu destino? Importante questionar neste ponto, qual seria a quantidade razoável para alguém da classe mais baixa ser considerado usuário? Isso existe? Mas esta noção de que o pobre seria o traficante e a classe média e alta da sociedade seria usuário e vítima do traficante advém desde a década de 60 nos EUA, na qual já circulava o discurso de que o jovem da periferia era delinquente e aquele consumidor em condição social distinta, era visto como usuário, e vítima daquele que trouxe droga para dentro dos lares da classe média e alta, senão vejamos a lições de OLMO:
O problema da droga se apresentava como “uma luta entre o bem e o mal”, continuando com o estereotipo moral, com o qual a droga adquire perfis de “demônio”; mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se o pânico devido aos “vampiros” que estavam atacando tantos “filhos de boa família”. Os culpados tinham de estar fora do consenso e ser considerados “corruptores”, daí o fato de o discurso jurídico enfatizar na época o estereotipo criminoso, para determinar responsabilidades; sobretudo o escalão terminal, o pequeno distribuidor, seria visto como o incitador ao consumo, o chamado Pusherou revendedor de rua. Este indivíduo geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil qualificá-lo de “delinqüente”. O consumidor, em troca, como era de condição social distinta, seria qualificado de “doente” graças à difusão do estereotipo da dependência, de acordo com o discurso médico que apresentava o já bem consolidado modelo medico-sanitário.[3] Na América Latina nos anos 70, não foi diferente o tratamento dado a diferenciação entre usuário e o traficante segundo a sua classe social, senão vejamos o que bem explica OLMO:
Mas é importante ressaltar que tal fenômeno não decorre tão somente da intervenção estatal, mas os veículos de comunicação possuem grande força na formação do estereótipo do criminoso como leciona ZAFFARONI: “O sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona de acordo com estereótipos fabricados pelos meios de comunicação de massa.”[5] Assim, percebe-se que a face oculta que a lei 11.343/06 ainda se agarra aos conceitos da década de 60 e 70, na criação do estereótipo ou a etiqueta do sujeito criminoso como aquele que não produz, não aufere renda, é pobre, pertencente a classe mais baixa, ou seja, as classes percebidas como potencialmente perigosas ao Estado[6], realizando a criminalização primária através de conceitos de ordem subjetiva na diferenciação entre usuário e traficante. E mais, retoma-se aqui os dois outros conceitos do §2º do artigo 28 da lei 11.343/06, ainda não abordados, quais sejam a conduta e antecedentes do agente. Neste ponto, há que se ressaltar que há um círculo completo do Labelling Approach, sendo que considerar os antecedentes do agente como elemento de diferenciação entre o usuário e traficante, é utilizar a teoria do etiquetamento aplicada com sucesso. Veja que a norma incriminadora já realiza uma diferenciação ou como chamada a seleção do público alvo do direito penal, sendo que, após serem detidos (criminalização secundária), processados, e condenados por tráfico de entorpecentes (criminalização terciária), será aplicada a etiqueta de criminoso com sucesso, tornando-se um círculo vicioso. Ademais, ao analisar circunstância do aspecto subjetivo do agente, deixa-se de analisar o fato delituoso para avaliar o agente, recaindo no direito penal do autor como mencionam BIZZOTTO e RODRIGUES:
Assim, ao que se verifica, a legislação que trata sobre entorpecentes se encaixa na Teoria do Labelling Approach, desde sua criminalização primária (através da seleção dos indivíduos a serem criminalizados), até mesmo na aplicação do rótulo de criminoso ou etiqueta quando da avaliação dos antecedentes para diferenciação entre usuário e traficante. No mesmo sentido, tratando as pessoas como se fossem criminosas, traficantes, e etc. recaímos na assunção do papel por aquele determinado sujeito, que segundo ZAFFARONI explicita como: “Ao generalizar-se o tratamento de acordo com o “como se fosse” e sustentar-se no tempo quase sem exceção, a pessoa passa a se comportar de acordo com o papel atribuído, ou seja, “como se fosse”, e com isso acaba “sendo”. Estabelecidos tais pressupostos, é possível se verificar os efeitos de tal adoção na legislação de drogas quando avaliado o sistema carcerário brasileiro, pois como já mencionado no artigo anterior, a maior parte da população carcerária brasileira é composta por jovens, negros/pardos, pobres, que possuem até o ensino fundamental.[8] Mas faz-se necessário o seguinte questionamento: Seriam esses os verdadeiros inimigos do Estado, ou seriam estes os inimigos que o Estado escolheu pela conveniência? A resposta, a princípio, pode parecer a mesma, mas há uma profunda diferença com um questionamento, o Estado pode escolher seus inimigos como lhe convém? Em caso afirmativo, amanhã o inimigo poderá ser você. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminalista Formado em Direito pela Universidade Positivo Pós-graduado em Direito Contemporâneo com Ênfase em Direito Público pelo Curso Jurídico Especialista em Direito Penal e Processo Penal Pela Academia Brasileira de Direito Constitucional Mestrando em Direito pela Uninter Referências BIANCHINI, Alice... [et al.] Luiz Flávio Gomes (Coord.). Lei de Drogas Comentada. 6ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2014. BIZZOTTO, Alenxadre; RODRIGUES, Andreia de Brito. Nova Lei de Drogas. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. HUSMAN, Louk. BRUNET, Amadeu Recasens i. SWAAININGEN, Rene Van. BERGALI, Roberto. ZAFFARONI, Eugenio Raul. CHRISTIE, Nils. YOUNG, Jock. Criminilogía Crítica Y Control Social. Juris. 1993. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. A Teoria do Labeling Approach como Metarregra Orientadora na Definição do Traficante. Pub. 10/04/2018. Disponível em: http://www.salacriminal.com/home/a-teoria-do-labeling-approach-como-metarregra-orientadora-na-definicao-do-traficanteAcesso em: 22/04/2018. OLMO, Rosa del. A Face Oculta da Droga. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990. ZAFFARANI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Trad. Vânia Romano Pedrosa; Amir Lopes da Conceição. 5ª Ed. 4ª Reimp. Rio de Janeiro: Revan. 2015. [1]BIANCHINI, Alice... [et al.] Luiz Flávio Gomes (Coord.). Lei de Drogas Comentada. 6ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2014. P. 161. [2]BIANCHINI, Alice... [et al.] Luiz Flávio Gomes (Coord.). Lei de Drogas Comentada. 6ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2014. P. 161. [3]OLMO, Rosa del. A Face Oculta da Droga.Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 34. [4]OLMO, Rosa del.A Face Oculta da Droga.Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 46. [5]ZAFFARANI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Trad. Vânia Romano Pedrosa; Amir Lopes da Conceição. 5ª Ed. 4ª Reimp. Rio de Janeiro: Revan. 2015, p. 130. [6]Cf. CHRISTIE: En todas las sociedades industrializadas, la guerra en contra de las drogas se há desarrollado en una que, concretamente, refuerza el control por parte del Estado sobre las clases potencialmente peligrosas.” (...)La guerra contra las drogas, en la práctica, ha preparado el camino para una guerra contra las personas percibidas como las menos útiles y potencialmente más peligrosas partes de la población, aquellos que como los há llamado Spitzer (1977) son la basura social. HUSMAN, Louk. BRUNET, Amadeu Recasens i. SWAAININGEN, Rene Van. BERGALI, Roberto. ZAFFARONI, Eugenio Raul. CHRISTIE, Nils. YOUNG, Jock. Criminilogía Crítica Y Control Social. Juris. 1993, p. 157 e 160 [7]BIZZOTTO, Alenxadre; RODRIGUES, Andreia de Brito. Nova Lei de Drogas. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 44. [8]LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. A Teoria do Labeling Approach como Metarregra Orientadora na Definição do Traficante. Pub. 10/04/2018. Disponível em: http://www.salacriminal.com/home/a-teoria-do-labeling-approach-como-metarregra-orientadora-na-definicao-do-traficanteAcesso em: 22/04/2018. Comments are closed.
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