Andressa Tomazini
Resquícios de tempos antigos e inquisitórios são sentidos constantemente pelos operadores do processo penal, isso porque os próprios operadores jurisdicionais, baseados, quando lhes convém, no Código de Processo Penal, ultrapassam os limites constitucionais do Sistema Processual Acusatório e de princípios e a própria função jurisdicional. Autorizados por dispositivos em vigor, porém não recepcionados pela Constituição Federal, perpetuam a mentalidade inquisitória no jogo, a qual começa bem antes de vestir o uniforme. Na academia, ensinam aos ingênuos ser, a persecução penal, composta de uma pré-partida inquisitória, da qual fala-se de maneira objetiva, evitando questionamentos, e de uma partida dita acusatória, norteada de lindos princípios que, nem teoricamente a tornam acusatória, porém amenizariam a prática inquisitiva de suas futuras ações jurisdicionais. Desse modo, “a partir da noção de princípio unificador, Coutinho sustenta que o dito sistema misto é um sistema essencialmente inquisitório”[1]:
Dentro de campo, já togados e não mais ingênuos, conhecem seu verdadeiro papel, ou seja, a função constitucional que deveriam realizar aqueles que “dizem o direito”, implicando, portanto, na leitura com um filtro constitucional, das regras do jogo, e sua aplicação nesse sentido, dentro dos limites do Sistema Processual (realmente) Acusatório, pretendido pela Carta Magna de 1988:
O limite pressupõe em “apitar” a partida, assistir ao jogo e não jogar. Entretanto, a busca, cada vez mais incansável da verdade processual, fala mais alto, demonstrando uma profunda dificuldade em manterem-se inerte, ocasionando, uma crise não de identidade dos juízes, pois como dito, estes sabem o que (não) deveriam fazer, mas sim de ansiedade ao cogitar que suas dúvidas não serão sanadas por quem as deveria sanar, restando o desejo condenatório insaciado, levando e justificando a colheita de provas de ofício:
Nas palavras de Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Jr, analisando a brilhante tese de doutorado do professor Salah H. Khaled Jr, aponta que, para ele, aquele que busca a verdade, inquisidor, ou que a encontra através de um método, sujeito do conhecimento, não se afastam, mas sim convergem[5]. Dessa forma, a “ambição de verdade” processual perpetua violências, discursos de ódio e o distanciamento de um Sistema Acusatório, visto que o que está em jogo nessa definição “não é uma mera etiqueta acadêmica: a concessão de poderes para que o juiz produza provas representa uma porta aberta para o decisionismo e para a reprodução da patologia inquisitória”[6], invertendo-se a ordem, ou seja, primeiro decide-se, depois vai atrás de provas que corroborem tal decisão, e somente destas. Portanto, a discussão deve tratar-se de reestabelecer a ordem constitucional e funcional do exercício do direito, e do lugar ocupado pelo magistrado no jogo processual, buscando, não uma aberrante verdade real, a qual mostra-se “algo contingente”[7], mas sim o respeito as regras do jogo e do devido processo legal, ou seja, um processo penal de verdade. Paulo Incott A questão do lugar que deve ser ocupado pela verdade no processo penal é bastante maltratada por aqueles que possuem a ligação mais direta com a manifestação de uma verdade, a da sentença ou do acórdão. Enquanto no ambiente acadêmico, no ambiente do discurso teórico, o assunto é amplamente debatido, permitindo influxos da filosofia, sociologia (com destaque para criminologia) e até para contribuições das ciências psi, no atuar jurisdicional nota-se certa desprezo por esta discussão, havendo preferência massiva por uma atitude condescendente, quase cínica, com a irracionalidade punitiva. O que se almeja, então, são as condições de possibilidade para que este debate seja trazido ao cotidiano daqueles que terão de concretizar a árdua tarefa de sintetizar versões processuais em um discurso de verdade. Que terão de assumir a corajosa opção de darem concretude ao in dubio pro réu. Que terão de "assinar" seus nomes na decisão de impronúncia em virtude da dúvida razoável. Que terão de adotar a presunção de inocência como muito mais do que mera "regra de tratamento", enfim, que terão a coragem e o espírito democrático para dizer não à sua própria “ambição de verdade” e ao clamor popular por vingança. Como realizar essa aproximação é a questão que mais atormenta os que este texto subscrevem. Depois de ter lido quase por completo a produção foucaultiana disponível em português, o desejo de escrever sobre processos de veridicção, sobre o uso da verdade como instrumento de poder, sobre a relação saber-poder e as estratégias de verdade que nascem com a modernidade, é um desejo intenso. Porém, propõe-se aqui uma abordagem que parte de um viés muito mais singelo: analisar a expressão popular “decisão salomônica”. Quer na voz de pessoas religiosas, quer como jargão jurídico, a idéia de uma decisão salomônica traduz a noção de um julgamento justo, equilibrado, revelador de grande sabedoria e perspicácia. Vale lembrar que, segundo o relato bíblico, Salomão é o rei ao qual Deus concedeu pedir o que quisesse, sendo-lhe conferida a sabedoria em grau superlativo como recompensa por não ter pedido riquezas ou uma vida longa. A expressão “decisão salomônica” traz consigo a referência, explícita ou implicitamente, a um julgamento específico daquele rei. O relato encontra-se, segundo o cânon bíblico, no primeiro Livro dos Reis, capítulo 3, versículos 16 ao 28. Vamos ao caso: duas prostituas, que moravam na mesma casa, deram à luz por volta da mesma época (com apenas três dias de diferença). Certa noite, uma das mulheres deita-se sobre seu filho, levando-o à morte. As duas mulheres solicitam uma audiência com Salomão, pedido que lhes é atendido. Ao descreverem o seu caso, ambas alegam que o filho morto é o da outra. Salomão, desejando dar fim à disputa, solicita que seja trazida uma espada. Propõe então o rei que a criança viva seja cortada em dois, dando metade a cada uma das mulheres. Nesse momento, uma das mulheres opõe-se fortemente à ideia e diz que a outra mulher pode ficar com a criança viva. Já a outra mulher concorda com a decisão de Salomão. Nesse momento, o rei intervém com sua magistral sentença, onde aponta a mulher que havia aberto mão da criança como a verdadeira mãe do filho vivo. O relato bíblico conclui com a descrição do efeito causada no povo por esta decisão, afirmando que todos ficaram impressionados e puderam perceber que com Salomão estava a sabedoria divina. O que nos interessa em especial é a seguinte questão: de quem era o filho vivo? Não sabemos. Temos apenas a sentença de Salomão. Não possuímos outros detalhes. Não sabemos se a mulher que afirmou que a criança não deveria ser cortada era realmente a mãe desta. Não sabemos nem se ela possuía condições absolutas de saber se havia deitado sobre seu filho ou se a troca realmente havia ocorrido. Não temos o teste de DNA, tão reverenciado por nossos tribunais como o ápice da verdade material. Então, o que temos? Uma probabilidade de certeza baseada nos fatos disponíveis e nas manifestações (e reações) das acusadas. O que realmente importa no relato é o que resultado satisfez, dentro do razoável, a percepção coletiva do que seria justo naquele caso. Parece haver muito a aprender com esta breve passagem. De modo bastante sucinto, a lição seria: nem munidos de sabedoria sobre-humana podemos chegar à “verdade real”. O que podemos (e devemos) é nos contatar com um processo penal de feição democrática, que nos permita julgar os conflitos sociais mais graves (merecedores de sanção penal) com um mínimo de coerência constitucional. Ao final de julgamentos assim conduzidos poderemos não ter satisfeita a nossa “ambição de verdade”, mas ao menos repousaremos aliviados de saber que nos aproximamos dos ideais de igualdade e dignidade que tanto afirmamos presar. Andressa Tomazini Graduanda de Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina Pós Graduanda em Direito Penal e Processo Penal Aplicado pela Escola Brasileira de Direito Pesquisadora Científica (Grupos de Pesquisa ZEITGEIST e UFSC) Conselheira Científica das Revistas: Artigos Jurídicos e Direito em Debate e Direito, Cultura e Processo e Colunista do Sala de Aula Criminal. Paulo Incott Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da World Complexity Science Academy Membro do Research Committee on the Sociology of Law Advogado [1] JR, Salah H. Khaled. Discurso de ódio e sistema penal. Belo Horizonte: Casa do direito: Letramento, 2016. p. 24. [2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda O papel do juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001 [3] JR, Salah H. Khaled. Discurso de ódio e sistema penal. Belo Horizonte: Casa do direito: Letramento, 2016. p. 23. [4] JR, Salah H. Khaled. Discurso de ódio e sistema penal. Belo Horizonte: Casa do direito: Letramento, 2016. p. 22. [5] ROSA, Alexandre Morais da e LOPES JR, Aury. Busca da verdade no Processo Penal: para além da ambição inquisitorial. Consultor Jurídico, 04 jul 2014. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-jul-04/busca-verdade-processo-penal-alem-ambicao-inquisitorial>. Acesso em: 17 nov 2017. [6] JR, Salah H. Khaled. Discurso de órdio e sistema penal. Belo Horizonte: Casa do direito: Letramento, 2016. [7] ROSA, Alexandre Morais da e LOPES JR, Aury. Busca da verdade no Processo Penal: para além da ambição inquisitorial. Consultor Jurídico, 04 jul 2014. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-jul-04/busca-verdade-processo-penal-alem-ambicao-inquisitorial>. Acesso em: 17 nov 2017. Comments are closed.
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