Michel Foucault construiu uma arqueologia da loucura. Em sua obra História da Loucura o filósofo francês não se limitou a fazer uma descrição cronológica linear do modo como os loucos foram, no decorrer da aventura humana, identificados e “tratados”. Foucault comportou-se como verdadeiro pesquisador científico ao negar a abstração fornecida para determinados comportamentos e determinadas pessoas (loucura – loucos) para procurar perceber nas mudanças como a sociedade abordou a loucura um retrato mais profundo do pensamento social vigente em cada época de análise.
As conclusões obtidas pelo filósofo são extremamente relevantes para uma série de estudos. Nestas linhas pretende-se destacar algo que foi percebido pelo autor como um dos motivos determinantes que fez com que os loucos recebessem duas grandes intervenções da era clássica até o Séc. XX; resultando em duas grandes fases de internamento. Ambas revelam um mesmo mecanismo de abordagem em relação àqueles que não são funcionais a sociedade. Foucault traduz essa abordagem na exclusão. Segundo elucida o autor a sociedade tende a se estruturar de forma a aproximar grupos que se identificam, particularmente com base em seu status social, oriundo não apenas de sua situação econômica, mas também do prestígio mútuo que experimentam por outros fatores (fama, força, influência, etc). Sabe-se obviamente que Foucault não foi o único autor a trabalhar esta noção de exclusão. Marx e Engels ao tratarem da questão das classes sociais se voltam justamente para formação das relações de produção e a segregação que disso decorre. Bauman escreve muito sobre consumismo, comunidades de iguais e xenofobia. Jock Young escreveu a brilhante obra “Sociedade Excludente” parta tratar especificamente desta temática. Enfim, diversos exemplos poderiam ser colacionados. O que se pretende enfatizar da obra de Foucault é o resultado do esforço feito por ele em discernir o modo como são vistos aqueles que não exercem um papel “útil” na sociedade. O autor percebe uma identidade no modo como são reproduzidas e tratadas diversas formas de exclusão. Surgem aí conclusões importantes para o estudo criminológico, uma vez que o tratamento dado aos loucos guarda semelhança indelével com o modo como são vistos e tratados os selecionados pelo sistema penal. Colhe-se um trecho interessante da obra já citada do filósofo (2014, p. 249 – grifo acrescentado):
Conforme Foucault elucida a loucura e o próprio louco é tido como “nada”, como um “não-ser”. Por muito tempo não haverá interesse nem mesmo em tentar curá-lo (Foucault concentra seus estudos no séc. XVIII e a passagem para o séc. XIX). Quando finalmente se manifesta o pensamento positivista surgirá uma mudança neste sentido, mas seu resultado imediato será ainda mais deletério porquanto as formas de abordagem de tratamento representarão violência ainda maior do que as perpetradas por esta segregação saneante da sociedade. O ponto que anima a escrita destas linhas se foca no fato de que o descaso e a degradação com que são tratados os loucos se fundamenta nessa percepção destes como sendo o “nada”. São inúteis, atrapalho, imprestáveis. Essa visão dá origem a horrendas práticas. Foucault fez um trabalho gigantesco de pesquisa para escrever sua obra, tendo lido centenas de prontuários, relatórios, além de um grande número de decisões judiciais, legislações e tratados médicos que abordavam o tema. Encontrou diversas descrições de como os loucos eram amarrados, empilhados e deixados nus em meio a seus dejetos. Para ficar apenas com um exemplo trazido pelo autor (2014, p. 150):
A questão levantada e trabalhada com maestria pelo filósofo é a construção mental, a percepção que permite que seres humanos sejam tratados desta forma. Ela se encontra justamente no fato de serem vistos como um “não-ser”. Sua loucura, ao afastá-los da razão prática (funcional) os excluía da comunidade de semelhantes para isolá-los como pertencentes mais ao reino animal do que ao seio da humanidade. A grande originalidade na obra de Foucault é demonstrar que isso nem sempre foi assim e que esta mudança não ocorreu de forma “natural”, mas como subproduto do pensamento político-econômico-social em que se inseriu este tratamento. Provoca-se então uma analogia com a visão que se estende hoje aos selecionados pelo sistema penal. Aos desavisados fica aqui observado que não se está a comparar os detentos a loucos e muito menos em defender uma visão que defina todos os que estão cumprindo pena de reclusão como “pobres coitados”. Pretende-se apenas analisar de que modo se constrói a concepção que permite a existência de uma sociedade em que mais 700 mil pessoas são trancafiadas em condições piores que as de muito animais. Se acrescentarmos o fato de que esta sociedade acredita ter evoluído desde o período sobre o qual Foucault concentra seu trabalho a questão se mostra tanto mais pertinente. Parece haver de fato um ponto de contato muito nítido entre a análise de Foucault da loucura e a trabalhada pela Criminologia Crítica. O fato de pessoas serem tidas como “negativas” (não-ser) para o projeto político-econômico vigente ou como “inúteis” (nada) para seus semelhantes vigora como o fundamento pelo qual se aceita que essa situação permaneça e se agrave. Percebe-se em muitas pessoas o gozo em acreditar que aqueles que são selecionados pelo sistema penal são “diferentes”, “preguiçosos”, “indolentes”, “violentos”, ou seja, pertencem a uma outra qualidade, uma outra camada, uma outra condição, uma outra laia, quem sabe a uma outra espécie. São inferiores, drogadas, dados ao vício. São a escória. São o nada. Em muitos termos esta visão pode ser rechaçada e demonstrada como preconceituosa e hipócrita. Não se operará esta indústria no momento. O que se espera modestamente alcançar é um ganho de consciência a partir da percepção da necessidade de constantemente reformarmos (revalidarmos) a forma como enxergamos o outro. Para ilustrar a importância disso basta analisarmos o seguinte: a mulher foi vista em nossa sociedade por longo tempo como inferior. Hoje essa visão é tida, felizmente, como absurda e tirânica. Ainda que resquícios dessa forma de pensar possam ser apontados, não é possível negar que houve um avanço significativo no último século. De igual forma, espera-se que a humanidade possa avançar na forma como encara aqueles para os quais as oportunidades são muito próximas do nulo e que figuram como “clientes preferenciais” para o sistema penal. Resta estéril a discussão sobre as possibilidades de toda uma massa de marginalizados pelo capital calcarem melhor condições com suas próprias forças (algo como quer a meritocracia). Fato é que a distribuição de oportunidades é cada vez mais desigual e enquanto for essa a realidade continuará a ser produzida uma fila muito grande de candidatos à criminalidade. Como enxergá-los? Enquanto forem vistos como “nada”, nada se alterará. Ex nihilo nihil fit – nada surge do nada. Sem adentrar questões metafísicas, não se pode esperar daqueles a quem desde seu nascimento se atribui o signo de serem o “nada”, algo positivo. Nada pode vir de positivo da negatividade social a que uma massa muito grande de pessoas está submetida. Se tratamos seres humanos como um “não-ser”, quer seja a partir da segregação social quer seja através da forma como aplicamos a sanção “social” (pena), como podemos esperar que essas retribuam o tratamento dado com um comportamento que traga segurança? Se queremos negar direitos humanos a determinadas pessoas porque considerarmos que isso não passa de um discurso vazio, estamos dizendo que estes a quem se negará estes direitos são o que? “Não-humanos”? Não chegaram a categoria a partir da qual se elaboraram os direitos humanos? Se for argumentado que aquele que cometeu o crime não tratou com humanitarismo seu semelhante e em virtude disso não merece ser tratado com base em direitos humanos, estamos a aceitar que o Estado deixa de ser uma racionalidade dirigente da sociedade para se tornar um instrumento vingativo – ele paga ao delinquente na mesma moeda, com a diferença de que não faz isso num rompante ou movido por paixões e desejos; faz isso de forma sistemática e contínua. Enfim, ou muda-se a visão ou perpetua-se a violência. Nada surgirá do nada. Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Referências: FOUCAULT, Michel. Historia da Loucura: na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2014 Comments are closed.
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